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Hora da Verdade

Só jovens com bons salários beneficiam no crédito a habitação. "Bancos têm de emprestar a quem tem capacidade de pagar"

17 out, 2024 - 07:00 • Sandra Afonso (Renascença) e Rafaela Burd Relvas (Público)

Em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e jornal Público, o presidente da Associação Portuguesa de Bancos acredita que o aval do Estado para os jovens terem acesso a empréstimos para a casa deverá ficar disponível em qualquer banco. No entanto, só os que tiverem melhores salários deverão preencher as condições de acesso a este apoio. Vitor Bento admite ainda que a reputação do setor está a ser afetada pelo chamado “cartel da banca” e critica o “sinal simbólico” dado pelo governo na descida do IRC.

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Adesão da banca à garantia pública para crédito à habitação será “muito significativa, senão mesmo total”
Adesão da banca à garantia pública para crédito à habitação será “muito significativa, senão mesmo total”

Na semana em que a Associação Portuguesa de Bancos (APB) assinala o 40.º aniversário e em que arranca o julgamento do caso BES, dez anos depois da queda do maior banco privado do país, o Hora da Verdade entrevistou Vítor Bento, o economista que dá a cara pelos bancos em Portugal.

Em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e jornal Público, o presidente da APB faz o balanço da aplicação da garantia pública, uma medida que já tem a regulamentação aprovada, mas que ainda aguarda por decisões do Ministério das Finanças.

Comenta ainda os resultados da banca, justifica a gestão das comissões e da remuneração dos depósitos, fala sobre produtos de poupança e taxas de juro.

Com o chamado caso do “cartel da banca” ainda a fazer manchetes, Vítor Bento volta a explicar porque é errado chamar-lhe cartel e garante que é uma situação do passado.

Uma semana depois da apresentação da proposta de Orçamento do Estado para 2025, comenta algumas medidas, mas recusa analisar o documento, porque considera que o debate, neste momento, é político.

Vítor Bento foi o último presidente do Banco Espírito Santo, numa passagem rápida, mas sobre isso pouco diz. Prefere deixar o passado para trás e reserva também distância do Campus da Justiça, em Lisboa, onde decorre o julgamento do caso BES.

Uma semana depois da apresentação do Orçamento do Estado, ainda não há garantias de que será viabilizado e o debate público continua centrado nesta incerteza. Isto acontece porque o documento não tem muitas novidades ou o desfecho da votação é, no atual contexto político, o fator mais importante?

Neste momento, a discussão que tem estado em cima da mesa tem muito pouco ou nada a ver com economia. Isto é, não tem havido discussões de alternativas do ponto de vista de caminhos da economia. Basicamente, há aqui táticas políticas que têm a ver com os interesses dos jogadores políticos. E esse é um campo que não é o meu, pelo menos, neste chapéu com que estou aqui. Não tenho nada de útil que possa acrescentar sobre o tema.

E do ponto de vista económico, que avaliação é que faz do Orçamento do Estado?

É inútil estar neste momento a acrescentar ruído a essa discussão. Tudo aquilo que se diga não vai modificar nada sobre o orçamento. Acima de tudo, é preciso que o país tenha condições de governabilidade. Julgo que toda a gente gostaria de ter estabilidade política. Temos um Parlamento que é complexo. Daquilo que eu me lembro, e já vivi muita coisa, é talvez a composição mais complexa que o Parlamento teve, pelo menos em regime constitucional. Dentro dessa complexidade, o campo de ação é muito limitado e, portanto, a componente política é predominante. O jogo político é o determinante para o resultado do orçamento. Na fase de preparação poderia ter alguma utilidade, nesta fase, é só acrescentar ruído. Para isso, não vou contribuir.

As contribuições extraordinárias sobre o setor bancário mantêm-se neste Orçamento. Como é que lê esta decisão?

Tem sido a posição da Associação Portuguesa de Bancos e dos associados do setor que essas contribuições extraordinárias são injustas porque são discriminatórias, quer relativamente a outros setores, quer relativamente aos concorrentes que não residem em Portugal, mas que atuam em Portugal. O acesso ao mercado bancário português é permitido a qualquer banco localizado na União Europeia. Pode intervir aqui e, grosso modo, cerca de 30% dos empréstimos que as empresas têm é oriundo do exterior. Essa discriminação fiscal desfavorável às instituições portuguesas, na prática, significa que o Estado está a favorecer quem cria emprego lá fora, quem paga impostos lá fora. A nossa posição tem sido sempre de achar que isso é injusto e seria indevido.

"Haverá uma adesão muito significativa, se não mesmo total à garantia pública para jovens"

Então esse é o único problema? Se as instituições que não pagam impostos cá também pagassem esta contribuição, considerariam que ela era justa?

Significaria, pelo menos, que o campo concorrencial estava nivelado. Em termos de justiça relativa, seria assegurada, em termos de justiça absoluta, não necessariamente, porque há muitos outros sectores que não pagam. A fiscalidade deve ser geral e ter regras gerais aplicáveis a toda a gente nas mesmas circunstâncias, o que não é o caso. Portanto, isto é uma discriminação que é desfavorável ao setor.

Há bancos que estão a impugnar o pagamento destas contribuições. A associação está a acompanhar estes processos?

A associação acompanha as notícias sobre os processos, mas cada uma das instituições atua por si própria, no seu processo decisório e por sua conta. São acções individuais.

Já houve três decisões do Tribunal Constitucional que deram razão aos bancos, o que leva a que, também como foi noticiado, o Ministério Público tenha suscitado a questão da uniformização da jurisprudência. A própria Provedora de Justiça já tinha, no ano anterior, feito uma recomendação ao ministro das Finanças para eliminar essa tributação em particular.

Estamos a falar do adicional de solidariedade, que foi criado durante a pandemia para atender a questões específicas da pandemia e que se tem mantido desde então. É quase uma espécie de um covid longo do ponto de vista fiscal, se quiser.

Mas essa é só uma. Estamos a falar também de todas as outras contribuições. A contribuição especial sobre o setor bancário, a contribuição para o Fundo de Resolução, enfim, uma série delas. Se somarmos tudo, desde 2011 os bancos pagaram mais de três mil milhões de euros.

Acha que é excessivo?

É excessivo porque é desigual. E porque está em cima do IRC, que os bancos pagam como todas as empresas pagam. E a banca é pagador último de IVA.

Tem mais facilidade em classificar como excessiva a tributação do que os lucros que têm sido registados pelos bancos?

Porque tenho um elemento de comparação nos lucros e, aqui, não tenho elemento de comparação. Posso comparar os lucros da banca em função do capital, isto é, quanto é que uma unidade de capital gera de lucros? Essa é que é a comparação sensível. Porque a banca é o setor individual que tem mais capital aplicado. A banca tem cerca de 40 mil milhões de euros em capital, que é mais do que qualquer setor individual.

Temos de comparar os lucros do capital em termos de taxa de rendibilidade. O que lhe posso mostrar é que todos os anos, com exceção de 2023, onde a diferença é marginal, a rendibilidade média das grandes empresas dos setores não financeiros foi sistematicamente superior à rendibilidade da banca. Este é um elemento de comparação que pode fazer sentido.

Por falar em tributação excessiva, a redução de IRC proposta pelo Governo fica aquém daquilo que era esperado?

A redução de IRC é importante para a economia em geral, nomeadamente a eliminação da progressividade do IRC. O que temos em Portugal, e isso é uma anormalidade, é que as empresas que têm mais lucros pagam uma taxa de imposto maior. Ora, em geral, as empresas que têm mais lucros são as empresas que aplicam mais capital. Portanto, estamos a taxar a acumulação de capital. Em resultado disso, temos uma estrutura económica que é baseada em pequenas e microempresas.

As microempresas representam cerca de 40% do emprego. Ora, se não têm condições de produtividade e absorvem 40% do emprego, os salários têm de ser baixos, porque esta âncora afeta toda a economia.

Precisamos de ter empresas maiores, para isso tem de haver mais capital investido. Se tem de se pagar uma taxa de imposto maior, isso não vai acontecer. As empresas estrangeiras não vão querer vir para cá e as empresas residentes vão tentar manter-se fragmentadas para pagar menos impostos. Para podermos ter grandes empresas, que hoje não há, é que precisamos de ter um IRC que seja competitivo com o resto das localizações alternativas.

Não chegou a responder. Esta redução do IRC fica aquém do esperado?

Esta redução do IRC não toca na progressividade. Face àquilo que tinham sido os anúncios iniciais, é uma decisão marginal. Eu interpreto como um sinal simbólico que o Governo quer dar, num determinado sentido. O seu efeito fica aquém do que é necessário, para beneficiar as empresas que não há e de que nós precisamos, porque essas é que vão criar mais emprego e emprego mais bem remunerado.

Chegou a reunir com o ministro das Finanças para discutir o excesso de tributação, como pretendia?

Nós tivemos uma reunião de generalidades, de vários assuntos, porque o ministro das Finanças é novo. Foi um dos temas que referimos.

Qual é que lhe parece que é o melhor desfecho para o país, para a economia, em relação ao Orçamento do Estado?

Isso é um juízo de natureza política. Dependerá daquilo que forem as opções dos vários intervenientes. A Constituição tem soluções para qualquer que seja o resultado. A existência de uma crise política está dentro das possibilidades constitucionais. É óbvio que poderá levar a uma paragem do país, que poderá ser desfavorável, sobretudo porque temos um inconveniente muito grande que eu ainda não percebi porque é que não foi alterado. Nos outros países, quando é necessário recorrer a eleições, em três, quatro semanas fazem-se eleições. Nós precisamos de seis meses. É uma coisa que até hoje não consigo compreender.

Esta terça-feira, o primeiro-ministro tomou o pequeno-almoço com 12 economistas, onde se encontrava também. Que contributos é que podem dar para o desenvolvimento da economia e para a governação do país?

Não vou comentar o que foi dito lá dentro. Não é que tenha nada de grande novidade ou que tenha nada de muito surpreendente. Foi um gesto interessante, de tentar ouvir alguns representantes da sociedade civil. Desse ponto de vista, acho útil. Cada uma das pessoas que são ouvidas emite as suas opiniões e o primeiro-ministro ou os governantes selecionam aquilo que acham interessante, ou que podem utilizar, porque também admito que os agentes políticos, mesmo que achem muitas ideias boas, podem considerar que não têm condições políticas de as utilizar. Mas o facto de quererem saber o que se pensa é saudável.

"O que temos em Portugal, e isso é uma anormalidade, é que as empresas que têm mais lucros pagam uma taxa de IRC maior"

Quer destacar alguma ideia boa?

Não, não quero. Ideias boas há muitas, mas estaria a cometer uma inconfidência. E eu acho que nós estamos a entrar num mau caminho em Portugal. Com o excesso de comentários que se fazem, sobretudo sobre conversas que deviam ter uma natureza privada. Estamos a entrar por um caminho de deterioração das bases de confiança nas quais deve assentar o nosso desenvolvimento. E isso, confesso, é uma coisa que me preocupa.

Eu fiz parte do Conselho de Estado, onde está instituído que não se pode comentar cá fora o que se discute no Conselho de Estado. Na primeira vez que participei na reunião do Conselho de Estado, quando chego a casa e ligo uma das televisões, estava um jornalista a dizer o que eu tinha dito. Esse foi um episódio que me marcou institucionalmente. Isso é uma má prática e manifestar-se-á na deterioração da qualidade da sociedade.

A regulamentação da garantia pública está publicada, mas ainda faltam alguns passos. Estamos, neste momento, no período de adesão dos bancos. Como é que está a correr esse processo? Os bancos estão interessados em disponibilizar a garantia pública? Qual é que espera que venha a ser a adesão?

A expectativa que tenho é que a adesão seja elevada. Mas gostava de ressalvar que a decisão de aderir ou não aderir a essa medida é individual, de cada um dos bancos. Não há nenhuma concertação sobre o assunto, nenhuma combinação. O Governo, enquanto entidade legisladora, ouve as partes interessadas sobre a matéria no sentido de tentar evitar que haja problemas de operacionalidade na implementação e nós demos o nosso contributo a esse nível.

Não vi manifestação de ninguém adversamente à medida. Tenho a expectativa de que haverá uma adesão muito significativa, se não mesmo total, das instituições bancárias à aplicação da medida.

Depois do prazo de adesão, os bancos ainda têm dois meses para operacionalizar a medida. O que é que pode impedir que ela funcione na prática?

Eu julgo que não há nada que vá impedir os processos, hoje está tudo muito automatizado. É preciso alterar programas, alterar a estrutura informática. E isso, ao que me dizem, é sempre complicado, até porque tem de haver testes e as pessoas têm de ser treinadas. Bancos que tenham uma rede de agências grande, têm de definir normas para assegurar que a medida é aplicada de forma uniforme em todo o lado.

Há ainda um detalhe que está por definir que é o montante máximo da garantia pública, que vai ser definido por despacho do ministro das Finanças. Esse valor está a ser discutido com a banca? Qual é que vai ser?

Isso é uma decisão unilateral do Ministério das Finanças, porque tem a ver com fatores que não dependem da banca nem a banca intervém, que estão relacionados com os limites de garantias públicas que o Estado pode dar.

Parece haver a intenção de fazer uma espécie de alocação de quotas aos bancos. Não sei se vai acabar por ser assim ou não. Isso é uma das coisas onde a associação não vai intervir. O Governo poderá utilizar os critérios que entender adequados. Julgo que esses são pormenores que o Governo ainda estará a dirimir, para assegurar que a medida é o mais transversal possível e o mais alargada possível em termos de espaço de aplicação.

O governador do Banco de Portugal tem lançado alguns alertas sobre esta garantia pública, nomeadamente a taxa de esforço a suportar pelo beneficiário. Acha que há motivo para preocupação? Justificam-se estes alertas sobre a possibilidade dos bancos concederem crédito a mutuários com maior risco?

A taxa de esforço acaba por ser um travão. Isto é, se a pessoa que vai endividar-se não tiver capacidade de suportar essa taxa de esforço, mesmo com a garantia do Estado, isso funciona como um travão ao próprio crédito. Há aqui travões complementares e, portanto, o espaço onde possa haver esse aumento de risco é um espaço menor.

A própria norma prudencial permite que isso aconteça em circunstâncias especiais que sejam devidamente explicadas. E este é um daqueles casos onde a quantidade determina a qualidade, isto é, depende dos montantes que vierem a ser envolvidos.

Esta taxa de esforço também não funciona de outra forma, deixando de fora os jovens com salários mais baixos, que são a maioria? Dito de outra forma, quem cumpre os critérios precisa da garantia pública para ter acesso ao crédito à habitação?

Pode ter um jovem, por exemplo, que tenha um bom emprego, que tenha começado agora a trabalhar, mas que não tem poupança acumulada e, portanto, não tem capacidade de pagar a entrada, mas tem capacidade de pagar o empréstimo. Esse, na minha interpretação, é o segmento que pode usufruir da medida.

Quem não tem capacidade de pagar um empréstimo já não tinha, essas são questões de insuficiências têm de ser resolvidas noutro campo. Se forem consideradas um problema social, não são resolvidas no campo do crédito.

Mas acha que a medida chega a quem de facto precisa de apoio para comprar casa?

A banca não tem uma atividade assistencial, tem uma atividade comercial. E tem de assegurar a solvabilidade dos seus créditos. Se não assegurar, voltamos a 2008, 2009, 2010 e vamos passar a ter bancos insustentáveis. Não é isso que queremos. Os bancos têm de emprestar a quem tem capacidade de pagar. Os problemas de ordem social compete à sociedade, através do Estado, resolvê-los.

Quais são as perspetivas de lucro na banca para este ano?

As indicações, até agora, é que este continuará a ser um ano onde a rendibilidade continua a ser favorável. E a expectativa que se tem é que, no próximo ano, comece a descer.

No último ano, os bancos apresentaram lucros extraordinários, os melhores resultados de sempre. Este ano deverá, em linha com o ano passado, superar esses resultados?

Os bancos não apresentaram resultados extraordinários. Os bancos apresentaram resultados correspondentes à sua atividade. E os bancos nunca tiveram tanto capital como têm atualmente. Mais uma vez, não podemos olhar para os lucros em valor absoluto. Temos de olhar para os lucros relacionados com o capital que gera esses lucros. E, aí, não estou certo de que tenha, necessariamente, sido o melhor ano de sempre.

Foram os maiores lucros de sempre.

Não tenho o valor comparativo. Em termos absolutos, podem ter sido. O ano passado foi o maior PIB em termos absolutos, foi o maior investimento, foi o maior ano de tudo em termos absolutos. É um facto. Mas quando se diz [maiores lucros de sempre] de determinada forma está a ser qualificado moralmente, é essa parte que eu quero evitar. Temos de pôr as coisas na devida perspetiva. Quando a economia cresce, todas as variáveis tendem a crescer. Depois, temos de encontrar padrões de comparação para poder fazer um juízo sobre essas variáveis.

Estamos a olhar para os dados como eles são.

Sim, mas eu estou a qualificar.

E tendo em conta esse contexto, a melhoria da rentabilidade e os lucros a crescer, porque é que os bancos não dão alguma folga às famílias, nomeadamente através da redução de comissões, que continuam a aumentar, ou de uma melhor remuneração dos depósitos?

Os bancos, como qualquer outra atividade, funcionam num mercado em concorrência e procuram obter remuneração dos recursos que põem a funcionar. Se olharmos para as comissões, mais uma vez comparadas com o capital, temos um rácio inferior à média europeia. Portanto, não, as comissões não são elevadas desse ponto de vista. Obviamente que serão mais elevadas em termos absolutos, porque o volume de negócio também é maior. O PIB é maior, o negócio bancário é maior, portanto, tudo é maior.

Se compara as comissões com a média europeia, também pode comparar os juros dos depósitos, que são inferiores em Portugal.

Não digo que não. Aceito a sua base de comparação. Não digo o contrário. É uma comparação objetiva, não rejeito. O que acontece é que nós, em Portugal, temos uma situação que difere da Europa. Os bancos têm um excesso de liquidez e, portanto, precisam menos do que precisam os outros bancos de disputar recursos junto do mercado. Os bancos, atualmente, por cada euro de depósitos, têm 0,80 cêntimos aplicados em empréstimos.

Concorda que há aqui uma penalização ao consumidor?

Não, não, não, não, não. Não há penalização nenhuma porque o cliente pode ir à procura de outros instrumentos em qualquer lado e pode concorrer.

Acontece é que toda a banca aplica as mesmas práticas.

O excesso de liquidez é comum a praticamente todas as instituições. Haverá umas que têm menos, outras que têm mais, mas, se for ver individualmente, as taxas dos depósitos de cada banco não são iguais.

"Cartel da banca? Caso teve lugar há mais de 12 anos. Não tem nada de contemporaneidade"

Mas a tendência [de baixa remuneração] mantém-se em todos os bancos.

Os bancos, em geral, em Portugal, têm um excesso de liquidez. Isto é comum a todos. Significa que têm menos interesse do que terão noutros países da Europa em disputar ativamente a captação de recursos. Há de haver sempre bancos que precisam de crescer mais do que os outros, que querem ter quota de mercado e, portanto, vão ter sempre um incentivo para pagar melhor.

A concorrência processa-se dos dois lados. Os próprios clientes também têm de ser agentes ativos da concorrência e, se estão insatisfeitos, podem ir procurar outras instituições que remuneram melhor ou que oferecem melhores condições. O facto de, em Portugal, termos tido uma preferência pela taxa variável significa que, nos últimos 21 anos, entre 2003 e 2023, em média, a taxa de juro dos empréstimos para a habitação em Portugal foi quase 1% inferior à média da zona euro.

Não é isso que acontece agora. A média portuguesa está, neste momento, em linha com a média europeia.

Mas como os empréstimos à habitação são de longa duração, houve um ganho efetivo das famílias durante esse período todo. E esse ganho efetivo durante 21 anos é de cerca de 20 mil milhões de euros.

Isto não é necessariamente mérito da banca, também tem a ver com as preferências que as pessoas tiveram. Tivemos uma preferência por taxa variável que só muito recentemente é que se mostrou desfavorável. Mas, tendo em conta o caminho que as taxas de juro estão novamente a tomar, vamos voltar àquilo que foi a tendência geral destes 20 e tal anos.

Ou seja, vamos voltar a preferir taxa variável?

Num momento de pico de taxas de juro, talvez não seja o melhor momento para passar para taxa fixa, por exemplo. Nenhum de nós sabe qual vai ser o futuro. Eu não sei dizer, posso ter uma expetativa, mas não sei dizer se para o ano ou para o outro ano as taxas de juros vão ser maiores ou mais baixas do que são atualmente.

O Governo voltou a mexer nas condições dos certificados de aforro. Agora que estamos numa situação em que os juros estão de novo a baixar, acha que este produto do Estado vai voltar a competir com os depósitos da banca?

Esse produto compete permanentemente com os depósitos da banca, como compete com outras fontes de aplicação de liquidez. Pode ter condições melhores, mais vantajosas. Conjunturalmente, têm outras condições. Basicamente, os certificados de aforro, tirando os primeiros três meses, são depósitos à ordem.

Mas admite que haja uma fuga dos depósitos?

Não sei. Aliás, em Portugal, temos poucos instrumentos para a aplicação de poupança, pura e simplesmente. Temos um mercado de capitais muito incipiente e há poucas alternativas à aplicação de poupança. E, se calhar, também há uma preferência da parte de quem aplica a poupança por instrumentos de grande liquidez. É aí que os depósitos se apresentam como alternativa que dá liquidez, dá segurança.

O Banco de Portugal vai aumentar a chamada reserva contracíclica de fundos próprios em 2026. É um nome grande para dizer que, na prática, os bancos vão ter de criar uma almofada de capital adicional. Estamos a entrar num ciclo de maior risco que justifica esta maior preocupação?

Julgo que não, sinceramente. Os bancos portugueses, hoje, têm um nível de capital muito elevado, compara muito favoravelmente com a Europa e, eventualmente, os rácios de capital são ainda maiores do que parecem. As taxas de risco que são aplicadas aos ativos portugueses são mais elevadas do que no resto da Europa, o que implica que, para o mesmo volume de crédito, os bancos portugueses têm de ter mais capital.

Essa é uma preocupação do Banco de Portugal. Se faz sentido ou não, é uma coisa que será vista. Nós achamos que é demasiado, sobretudo o salto quantitativo, porque, normalmente, nos outros países quando essa medida foi aplicada, começou por ser aplicada na base de 0,5%. E aqui dá-se logo o salto para uma reserva de 0,75%.

A pergunta é se há o risco de entrar em nova crise.

Não, não, não, não. Até porque a medida é uma reserva contracíclica, para preservar deteriorações do ciclo económico e tentar criar a almofada quando o ciclo está favorável, para quando o ciclo se degradar. Não significa nenhum juízo de que estamos na iminência seja daquilo que for.

A Associação Portuguesa de Bancos surgiu há 40 anos. Alguns dos bancos fundadores já desapareceram. É o caso do BES, cujo julgamento arrancou esta semana. Sabemos que o negócio da banca foi evoluindo, mas podemos algum dia garantir que não voltamos a ter um novo BES?

Nisto, como em tudo na vida, nunca há certezas relativamente ao futuro. Amanhã podemos ter um terramoto igual ao de 1755 e ninguém está a contar com isso. A única coisa que podemos fazer é tentar extrapolar com base nas condições que temos e hoje temos condições muito confortáveis do ponto de vista de resiliência. Os bancos têm um nível de capital muito elevado, têm o balanço limpo, livraram-se dos ativos danificados ou que não geravam rendimento. Hoje, têm condições sólidas, estão seguros.

Não é previsível, com a informação que hoje existe, que possa haver uma situação como aquela que houve em 2008, 2009, 2010, 2011, 2012. Se passássemos por uma turbulência como aquela, com as condições de hoje, a turbulência seria passada com mais tranquilidade. É talvez a melhor comparação que possa ser feita, porque, entre outras coisas, houve também uma melhoria muito significativa na qualidade da governação societária dos bancos.

Arrependeu-se de ter aceitado o convite para liderar o BES?

Não tenho propriamente arrependimentos, porque nós quando tomamos decisões, fazemo-lo com base nas condições do momento em que estamos. Com base na informação que eu tinha na altura e aquilo que me foi dito e, de certa forma, assegurado, tomei a decisão que tomei.

Não vou dizer hoje que tomava a mesma, hoje tenho outro conhecimento. Mas não estou arrependido de o ter feito, independentemente de o resultado não ter sido aquilo que eu esperava da minha intervenção. Esperava ter tido outras condições e esperava ter tido outro tempo. Não posso fazer julgamentos sobre o momento da decisão com a informação superveniente. Isso é a mesma coisa que fazer o totobola à segunda-feira.

Esse é um rio que já correu, já passou a ponte, já é tudo irreversível.

O que não é irreversível é o julgamento do BES que agora começou. O que é que espera deste julgamento?

Espero apenas que a justiça funcione. Seja decidido justamente, em função dos dados que forem apresentados.

A reputação dos bancos está manchada com o caso que ficou conhecido como cartel da banca?

Eu julgo que não. Espero que não. A própria terminologia de cartel não é aplicável àquele caso. Isso foi reconhecido pela própria Autoridade da Concorrência.

A semântica pode não ser do agrado dos responsáveis da banca, mas aquilo que aconteceu, e que foi dado como provado, é que houve uma prática concertada de troca de informação comercial entre bancos que eram e são concorrentes. Isto foi o que aconteceu.

Não vou fugir à questão. Só estou a dizer que a semântica tem significado. Não podemos utilizar aleatoriamente definições de conceitos. Ponto um. Ponto dois, sobre essa troca de informações, também está assegurado que não resultou em prejuízo para os clientes. E o caso teve lugar há mais de 12 anos. Fala-se hoje nisso porque a justiça levou este tempo, mas isto não tem nada de contemporaneidade. A única coisa que tem de contemporâneo foi a decisão do Tribunal da Concorrência.

Obviamente que a forma como a coisa é relatada e noticiada, e a própria inflação que através do volume das multas foi dada, é óbvio que isso afeta a reputação, tem uma consequência reputacional, a meu ver, imerecida. Mas tem uma consequência reputacional.

E que garantias é que os clientes têm de que já não existe este tipo de prática no presente?

Todas as garantias. Primeiro, há a própria prática, a melhoria da governança que eu acabei de dizer. Segundo, a consequência da experiência que estamos a relatar. Terceiro, a própria atuação da Autoridade da Concorrência sobre isso. Se houvesse qualquer indício dessa natureza, haveria essa indicação.

Na associação não se discute absolutamente nada que tenha a ver com a política comercial dos bancos. É um tabu dentro da associação discutir seja aquilo que for nas reuniões de direção, tudo o que tem a ver com política comercial está completamente "off limits". É tabu absoluto.

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