Hora da Verdade

Se Costa chumbar revisão constitucional do PSD, "é mesmo verdade" que tem "tendência para interferir nos poderes independentes"

24 nov, 2022 - 07:01 • Manuela Pires (Renascença) , Liliana Borges (Público)

Miguel Poiares Maduro é o coordenador do projecto de revisão constitucional do PSD e desafia o primeiro-ministro a provar a sua posição quanto à separação de poderes aprovando as propostas de revisão constitucional do partido liderado por Luís Montenegro. Não quer tirar o "socialismo" do preâmbulo, porque "pertence à própria história da Constituição", mas quer, por exemplo, reforçar a independência do governador do Banco de Portugal para limitar "os riscos de interferência do poder executivo".

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Poiares Maduro crítica PR e PM. "Não deviam ir" ao Mundial do Qatar
Imagem: Maria Costa Lopes/RR; Foto: Daniel Rocha/Público

Em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e do jornal Público, o antigo ministro de Pedro Passos Coelho arrasa as deslocações ao Qatar do Presidente da República, Presidente do Parlamento e do primeiro-ministro porque entende que Portugal "não tem que ser cúmplice" de autocracias. No dia em que a seleção nacional de futebol entra em campo frente ao Gana, Miguel Poiares Maduro lamenta que a FIFA limite a liberdade de expressão "em vez de usar o poder que tem para permitir que os jogadores se manifestem no sentido favorável à diversidade"

Disse que o Presidente da República, o primeiro-ministro e o presidente da Assembleia da República não deviam ir aos jogos da seleção. A votação decorreu esta semana no Parlamento e o PSD votou a favor. Se fosse deputado, votaria contra?

Isto tem a ver com questões constitucionais. Temos de entender qual é o objetivo desta norma. No meu ponto de vista, a Constituição não pode permitir que seja o Parlamento a decidir qual é a agenda de viagens do Presidente da República. Essa norma existe para garantir que o Presidente da República não faça um exercício desse poder que entre em conflito com os poderes do executivo em matéria de política externa, por exemplo. Ou seja, que vá fazer uma viagem que conflitua com aquilo que o Governo estabeleceu como prioridades de política externa.

Acha que a norma deveria ser retirada da Constituição?

Não porque essa norma é uma norma-travão para situações em que o Presidente possa abusar das competências que também tem em matéria de relações externas para se intrometer nas competências de outros órgãos de soberania. Mas é só nesse contexto que esse poder deve ser decidido pelo Parlamento. Acho estranhíssimo que esteja a transformar isto numa questão sobre saber se o Parlamento devia ou não autorizar. A questão fundamental é que o Presidente da República vai e não devia ir. O primeiro-ministro vai e não devia ir. E o presidente da Assembleia da República vai e não devia ir. E isto não é uma questão constitucional nem de exercício de poderes.

Não deviam ir porquê? Porque é que essas autocracias pagam tanto dinheiro para utilizar junto das suas populações, mas também o seu capital e projeção internacional, chamando celebridades, chefes de Governo e chefes de Estado?

Portugal tem de ter relações diplomáticas com todos os Estados, incluindo com o Qatar e muitas outras autocracias. Mas não tem de ser cúmplice. E os seus chefes de Estado e chefes de Governo, não têm de ser cúmplices com esta estratégia de reforço de capital e de promoção de um regime autocrático, associando-se a um evento desportivo desta natureza. Isto não tem nada a ver com relações diplomáticas.

Foi por isso que decidiu publicar um apelo aos chefes de Estado europeus?

Felizmente temos seguimento de vários chefes de Governo e chefes de Estado. A presidente da Comissão Europeia, presidente do Conselho Europeu, os chefes de Estado e chefes de Governo da Alemanha e da Dinamarca. E são países que têm relações diplomáticas com o Qatar. Mas isso não tem nada a ver com ser cúmplice com uma estratégia de promoção que vai ajudar esse regime político do Qatar a reforçar o seu poder, que é uma autocracia, dentro desse país.

A FIFA em vez de usar o poder que tem para permitir que os jogadores se manifestem no sentido favorável à diversidade, está, pelo contrário, a usar isto para reprimir esse tipo de expressões, de forma até contrária aos estatutos da FIFA.

E até há adeptos que estão na bancada [a usar elementos proibidos] e as seleções vão ser penalizadas por isso. E, nesse contexto, o chefe de Governo, o chefe de Estado português, ainda vão ao evento? Acho lamentável.

De todos os partidos que já apresentaram projetos de revisão, o PSD é o que é mais alterações quer fazer. Propõe mexer em 71 artigos. O PS apenas 20. A revisão constitucional só avança com 154 deputados. Vamos ter uma revisão minimalista da Constituição?

Espero que não. O PSD apresentou aquilo que acha que é necessário em termos de atualização da Constituição face aos desafios que o país enfrenta, permanecendo, por um lado, fiel à identidade histórica da Constituição. Não eliminamos expressões que, do nosso ponto de vista, até estão desatualizadas.

O “socialismo” no preâmbulo?

Por exemplo. Várias expressões desse género, mas que são datadas historicamente, pertencem à própria história da Constituição, merecem respeito nesse sentido. Não é que o país atualmente seja dirigido por esse tipo de expressões, mas não faz sentido também estar necessariamente a abandoná-las. Procuramos atualizar a Constituição na questão da sustentabilidade ambiental, da coesão territorial, da coesão e intergeracional, da mobilidade social com o pré-escolar.

Sabemos que os níveis de satisfação dos cidadãos com a democracia têm vindo a diminuir. Nas avaliações internacionais, Portugal tem mecanismos insuficientes e que têm vindo a piorar na separação de poderes, no escrutínio de poderes e com a intromissão nas entidades independentes. Sabemos também que há uma perceção dos cidadãos de que administração pública não é suficientemente isenta e imparcial e isso coloca em causa a confiança e relação de confiança entre cidadãos e o Estado.

A ideia de que a missão pública está partidarizada e é suscetível de controlo partidário. Essas são questões de melhoria da qualidade da democracia que o nosso projeto procura responder. Acho importante que se pense dessa forma. Naturalmente que o resultado final será sempre um compromisso. A melhor Constituição não é a Constituição que mesmo o constitucionalista ideal, que não sou eu, iria escrever. É aquela que representou o melhor compromisso político e societário num determinado contexto.

E acha que o PS está disponível para esse compromisso mais alargado?

Só o PS pode responder. Deveria estar disponível para isso. Há dois temas onde parece existir esse compromisso. Dizem respeito à questão dos metadados e ao confinamento por razões de saúde pública.

O melhor compromisso não é o mínimo denominador comum. É, nalgumas matérias, o mínimo denominador comum e noutros um máximo denominador comum. É esse compromisso que nós temos de procurar. Se for o mínimo denominador comum não vamos responder aos desafios que a nossa sociedade e a nossa democracia têm.

Mas também aqui há diferenças. O PSD defende que para decretar o confinamento é necessário existir uma decisão judicial e o PS fala apenas de uma garantia de recurso urgente à autoridade judicial. Não lhe surgem dúvidas constitucionais acerca de uma regra de confinamento coerciva?

Se o processo for urgente acho que é admissível que possa existir uma decisão, mas tem de ser sujeita a uma confirmação do juiz quase imediata. Vejo aí, por exemplo, uma possibilidade de compromisso. Já acho mais difícil o que está no projeto do PS e que fala não apenas em casos de doença infetocontagiosa, mas sim um conceito muito indeterminado, que diga “em risco disso”. A medida de confinamento é, em certa medida, uma medida de privação de liberdade e tem de sujeita a mecanismos de garantia, não apenas judiciais, mas quanto à delimitação do poder público nessa matéria muito estritos. É isso que nós fazemos no nosso projeto. O PS não tem essa preocupação.

Tem levantado dúvidas nos deputados socialistas. Aí o PSD tem de fazer finca-pé?

Isso é claramente o que está no nosso projeto constitucional, pois não me competirá a mim fazer essa negociação com o PS. O meu partido está a ter um compromisso com este projeto e seguramente que é nessa linha que se vai comportar.

Já falámos aqui numa revisão que poderá ser minimalista. O PSD quer mexer até no sistema político. Acha que o PS estará disponível nesta altura para avançar com estas alterações, nomeadamente a nomeação do procurador-geral da República e governador do Banco de Portugal? Ou esta matéria está só na revisão constitucional do PSD porque é uma matéria que tem de mostrar ao país, mesmo não tendo condições para avançar agora.

O primeiro-ministro, perante casos que indiciam infelizmente o contrário, tem dito que ele respeita as autoridades independentes e respeita a independência do governador do Banco de Portugal. E, portanto, tem aqui uma oportunidade de mostrar que esse compromisso é sério e aceitar uma proposta de revisão constitucional que reforça essa independência que limita os riscos de interferência do poder executivo nessas autoridades e nessas entidades e instituições independentes.

Espero que o primeiro-ministro seja consequente com aquilo que diz e não com aquilo que alguns alegam que faz. Se não for consequente ao aceitar a proposta [de revisão] do PSD, o que temos a temer é que, afinal, todas as suspeitas que existem sobre o comportamento do primeiro-ministro relativamente à sua tendência para interferir nas autoridades e nos poderes independentes se calhar são mesmo verdade.

O PSD já disse várias vezes que a dimensão da revisão constitucional dependerá também da ambição do PS. Que propostas não abdicam o PSD para aprovar a revisão do PS?

Não posso responder a isso porque não tenho um mandato negocial. Acredito que o meu partido não irá aceitar compromissos relativamente àquilo que são os princípios fundamentais que os estruturam este projeto. Mas espero desde logo que este nem seja um tema sem que se tenha de ceder perante o PS. Porque é que o PS haverá de estar contra mecanismos que garantem maior independência, maior separação de poderes, maior escrutínio do poder? Porque é que o PS, apesar de ser contrário a mecanismos que garantem maior independência e isenção e imparcialidade na administração pública e, portanto, confiança dos cidadãos na Administração Pública? E porque é que o PS haverá de estar contra o alargamento do voto aos 16 anos?

Apenas três países na Europa permitem o voto aos 16 anos nesta altura. A Áustria, Estónia e Malta. Porque é que há resistência?

O número de países que estão a adotar o voto aos 16 anos tem vindo a alargar-se e a grande velocidade. Tivemos até um Supremo Tribunal da Nova Zelândia, que é o equivalente ao nosso Tribunal Constitucional, que chega ao ponto de declarar que não atribuir o reconhecimento de voto aos 16 e 17 anos é uma violação do princípio da igualdade e da não-discriminação na Constituição. Portanto, há tribunais constitucionais que estão a impor essa obrigatoriedade de voto

Talvez seja importante explicar às pessoas porque é que defendemos isso. O direito de voto é a consequência de alguém ser sujeito das políticas que são adotadas. É o princípio de autogoverno. Nós devemos ter voz sobre decisões que nos podem afetar e é óbvio que alguém com 16, 17 anos é afetado e nalguns casos até profundamente nas decisões que têm impacto a mais a mais longo prazo, por aquilo que o processo político está a definir.

A ciência diz-nos hoje que os processos cognitivos e a capacidade cognitiva que está associada à escolha e a capacidade analítica decorrente ou que é fundamental a uma determinada escolha surge, ou pelo menos já existe, aos 16 e 17 anos. E, aliás, por isso nós achamos que as pessoas são conscientes e responsáveis pelas suas escolhas que a responsabilidade criminal também já está definida aos 16, 17 anos. Tudo o resto de argumentos sobre uma menor experiência, menor informação, menor maturidade.

Bom, se as pessoas fossem consequentes isso levaria a excluir muitas outras pessoas do voto. Não é só os 16 e 17 anos. Existe uma sub-representação no nosso processo político, quer dos interesses das gerações mais jovens, que têm uma sensibilidade e temas preferenciais diferentes de outras gerações, quer dos interesses e dos temas das dos territórios com menos densidade populacional, portanto, das áreas, sobretudo do interior, das áreas menos urbanas.

Temos de agir no nosso sistema político para que ele seja plenamente representativo no sentido de criar formas de representação desse interesse. É por isso fizemos também a criação do Conselho da Coesão Intergeracional e Territorial: para trazer voz ao processo político desse tipo de interesses. E, já agora, em termos de coesão territorial, para além do Conselho, também introduzimos na norma relativa à definição dos círculos eleitorais, a possibilidade de se ponderar precisamente a necessidade de uma representação equitativa das diferentes parcelas do território.

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