16 out, 2024 - 15:00 • Alexandre Abrantes Neves
São “viscerais”, queremo-nos tratar “e ao mesmo tempo não queremos” e atacam principalmente quem é “obstinado” pelo rigor e pela disciplina. Provocam medo quando lhes ouvimos o nome, aparecem nas séries e nos filmes e também atingem os homens.
Os distúrbios alimentares afetam mais de um quinto das crianças e adolescentes (22%) a nível global e, apesar da crescente sensibilização, os últimos números são assustadores. Segundo o estudo publicado no ano passado pela consultora Deloitte, uma pessoa morre a cada 52 minutos na sequência destas perturbações, que têm a segunda taxa de mortalidade mais elevada entre doenças psiquiátricas, logo a seguir à toxicodependência.
Neste episódio do Geração Z da Renascença e EuranetPlus, abrimos um consultório improvisado com o psiquiatra Tiago Duarte, especialista no tema, e a investigadora Carolina Ferreira Baptista que, além de já ter passado pela doença, analisou o discurso de cerca de vinte mulheres com diagnóstico de anorexia nervosa.
Na tese de doutoramento em Ciências da Comunicação, esta académica identificou um padrão – a doença habitualmente surge depois de um momento de trauma.
Reportagem
Há cada vez mais crianças que sofrem de anorexia. (...)
“Normalmente, vem de um pequeno momento de trauma emocional, de stress em que há a sensação de que o mundo existe e eu não controlo. Então, surge uma resposta inversa: eu vou controlar aquilo que consigo controlar. A pessoa engradece ali. Na verdade, eu estou a mudar-me. É uma coisa visceral e é tão visceral que permanece”.
Muitos dos pacientes têm em comum a excelência académica e profissional, o que lhes dá o rigor e a disciplina necessários “para fazer algo tão antinatura como controlar a fome”. Para Tiago Duarte, esta missão de controlar o apetite tornou-se mais difícil na pandemia – e levou a um aumento das complicações provocadas pela doença.
“No período da pandemia, o grau de psicopatologia foi enorme. As pessoas estavam fechadas em casa e tinham de interagir com os familiares. Os familiares começaram a aperceber-se de que havia alterações na forma como elas se alimentavam. Depois, não têm forma de sair de casa e ir espairece... Tudo acaba por colidir”, assinala.
As tensões com a família, amigos e namorados são normais entre os doentes, mas este psiquiatra assinala que “na verdade, não discutem uns com os outros, estão a discutir com a doença”.
“A pessoa que tem uma anorexia é como um telemóvel que está em modo poupança de bateria, não está no total das suas capacidades. Está em estado de guerra e qualquer coisa que altere esse padrão a pessoa responde em modo guerra”, esclarece.
Em Portugal, os casos de distúrbios alimentares são pouco quantificados, mas números enviados no não passado pelo ministério da Saúde ao semanário Expresso mostram que os internamentos por anorexia e bulimia triplicaram entre 2018 e 2022, ano em que também e atingiu o pico de diagnósticos, mais de nove mil.
Para Tiago Duarte, estes números podem ser resultado do “trabalho adicional” que o Serviço Nacional de Saúde tem feito, ao direcionar mais psiquiatras e nutricionistas para o diagnóstico. Ainda assim, a falta de camas e a pressão para internamentos não desapareceu – em grande parte, devido à falta de resposta do SNS nos cuidados primários.
“Se há menos consultas e menos prestação de cuidados nos cuidados primários e as pessoas não conseguem ter uma consulta de médico de família ou de psiquiatria, acabam por chegar com uma doença de comportamento alimentar num estado mais grave e poderão precisar de internamento”, clarifica.
O doente está em modo poupança de bateria, em estado de guerra
Entre as doenças do comportamento alimentar, as mais comuns são a anorexia e a bulimia nervosas. Enquanto na primeira os doentes restringem de forma exagerada a quantidade de comida que comem para chegar a uma imagem de magreza que construíram, na segunda os pacientes ingerem comida de forma excessiva, compensando depois com mecanismos, como vómito ou prática de exercício físico em excesso.
Em qualquer um dos casos, estas doenças são “profundamente contraditórias”: “queremos ultrapassar a anorexia, mas, ao mesmo tempo, não queremos”, como aponta Carolina. A terapia começa sempre, por isso, com reservas – e, habitualmente, só com “muita pressão” pelo círculo mais próximo dos doentes.
Tiago Duarte pede, por isso, mais sensiblização através das escolas e da sociedade civil, para que haja “muita atenção” aos sinais da doença, que surgem de forma tímida e vão aumentando. Menos interação com amigos e família, quebra no rendimento escolar, prática de exercício físico repentina e exagerada ou um uso anormal das redes sociais são tudo fatores a ter em conta – mas, principalmente, “irritabilidade” quando se questiona alguma destas práticas.
Feito o diagnóstico, as opções de terapia são muitas e dependentes de cada caso, desde psicoterapia, terapia familiar e também medicação. Independentemente do acompanhamento médico, o importante é não baixar a guarda, mas normalizar a situação no dia a dia.
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“Quando se tem uma amiga com anorexia nervosa, devemos tornar o espaço de refeição um espaço de paz dentro do possível. Trazes a tua comida e vamos ajudar-te. Tens uma maçã para comer: então tu comes meia maçã, eu como meia mação e comemos um ao pé do outro”, sugere.
“Não há problema nenhum com o facto de vivermos, provavelmente, a vida toda com isto dentro de nós. Faz parte do nosso caminho pessoal”. O trajeto de Carolina com a anorexia nervosa começou em 2019, com uma fase de stress e nervos na faculdade. Foi um dos casos que se agravou com a pandemia e que, depois do confinamento, precisou de acompanhamento médico.
Carolina aponta que o caminho “é feito de desafios, mas vive-se bem com isso” e temos de “aceitar que o trajeto não é feito de perfeição”. Uma história como a de tantas outras mulheres – e homens, que também sofrem com a doença.
“Quantificamos as doenças do comportamento alimentar como sendo doenças femininas e isso ignora a possibilidade de se fazer os diagnósticos em homens. Muitas vezes, os homens também que não procuram estas consultas, por vergonha ou por não conseguirem identificar neles a possibilidade de terem uma doença do comportamento alimentar”, alerta.
Nos processos de recuperação, é comum as mulheres criarem nas redes sociais para falarem sobre a sua experiência. Carolina Ferreira Baptista recorda os resultados de uma investigação que realizou e onde provou que muitas das fotografias mostravam “pratos muito compartimentados, que não são normais”.
A investigadora acredita que estas publicações refletem uma “certa manutenção do problema, em que já recuperei, mas continuo a falar, não normalizo e não abandono”. Tiago Duarte concorda e acrescenta – podem levar a passos atrás no processo.
“Manter estas contas acaba por ser uma subsintomatologia. Não é expectável que uma pessoa que teve uma pneumonia aos 19 anos, fique até aos 50 a falar sobre a pneumonia, não é? Isso significa que a situação ainda não está ultrapassada a 100%. Em vez de avançarem, voltam para trás e começam a recordar o trauma”, remata.
Ao contrário das muitas políticas e programas direcionados à segurança e qualidade alimentar, a União Europeia não tem nenhuma iniciativa específica para combater os distúrbios alimentares – aparecem sempre integradas nos fundos e iniciativas para promover a saúde mental.
Em 2023, a Comissão Europeia disponibilizou mais de mil milhões de euros para prevenir e combater de “forma abrangente” as patologias do foro psíquico, nomeadamente através de projetos da sociedade civil.
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Carolina Ferreira Baptista aponta esta como uma das principais necessidades – dar condições para se criarem mais ONGs e acompanharem mais de perto estes doentes.
“Muitas vezes ouvimos falar de forma superficial em grupos que estão envolvidos com pessoas que passam por estas doenças. Mas, na verdade, plataformas de esclarecimento público sem fins lucrativos são necessárias para estabelecer diálogo com a comunidade de uma forma ampla, transversal e criteriosa”, defende.
Tiago Duarte assinala outra necessidade premente. O psiquiatra considera que “seria muito bom” alavancar e tornar os estudos sobre doenças do comportamento alimentar mais recorrentes.