09 set, 2024 - 14:56 • José Pedro Frazão
Mario Draghi apresentou esta segunda-feira um documento, com 400 páginas, que pede uma aceleração da inovação, novos motores de crescimento para a Europa, redução dos preços da energia e melhor coordenação de políticas para reduzir dependências.
No relatório sobre a competitividade da Europa, encomendado pela Comissão Europeia, o antigo primeiro-ministro italiano avisa que, para digitalizar e descarbonizar a economia europeia e aumentar a capacidade de defesa, "a parte do investimento na Europa terá de aumentar cerca de 5 pontos percentuais do PIB, para níveis observados pela última vez nas décadas de 1960 e 70", o que representa algo de inédito.
Para comparar, Draghi lembra que os investimentos adicionais proporcionados pelo Plano Marshall entre 1948 e 1951 ascendem a cerca de 1% a 2% do PIB por ano. O economista italiano fala num "desafio existencial" advertindo que se a Europa não se tornar mais produtiva, será forçada a fazer escolhas.
"Não seremos capazes de nos tornar, ao mesmo tempo, líderes em novas tecnologias, um farol de responsabilidade climática e um ator independente na cena mundial. Não conseguiremos financiar o nosso modelo social. Teremos de reduzir algumas, se não todas, as nossas ambições", exemplifica Draghi, no cenário de nada ser feito.
O relatório descreve três grandes transformações necessárias na Europa. "A primeira é a necessidade de acelerar a inovação e encontrar novos motores de crescimento. Em segundo lugar, a Europa deve reduzir os altos preços da energia, continuando a descarbonizar e a mudar para uma economia circular. Além disso, a Europa deve reagir a um mundo de geopolítica menos estável, onde as dependências estão a transformar-se em vulnerabilidades e não pode mais contar com outros para sua segurança", pode ler-se no documento.
Para Draghi, aumentar a produtividade é essencial para preservar os valores fundamentais da Europa como a prosperidade, a equidade, a liberdade, a paz e a democracia num ambiente sustentável.
"Se a Europa já não puder fornecê-los aos seus cidadãos - ou tiver de trocar um contra o outro - terá perdido a sua razão de ser", adverte o antigo líder do Banco Central Europeu.
Uma das principais recomendações de Mario Draghi aponta para uma reorientação profunda dos esforços coletivos na Europa "para colmatar o fosso em matéria de inovação que a separa dos EUA e da China, especialmente no domínio das tecnologias avançadas".
Draghi sustenta que a Europa "está presa numa estrutura industrial estática", com poucas novas empresas a surgir para desmantelar indústrias existentes ou desenvolver novos motores de crescimento.
Para dar um exemplo, o relatório assinala que não há nenhuma empresa da União Europeia (UE) com uma capitalização bolsista superior a 100 mil milhões de euros que tenha sido criada de raiz nos últimos 50 anos, enquanto todas as seis empresas americanas com uma avaliação superior a 1 bilião de euros foram criadas neste período. As empresas da UE gastaram menos 270 mil milhões de euros em investigação e inovação do que as suas congéneres americanas em 2021, revela o documento agora divulgado.
Para Draghi, o bloqueio europeu na inovação ocorre quando esta não se transforma em comercialização. "As empresas inovadoras que querem expandir-se na Europa são prejudicadas em todas as fases por regulamentações incoerentes e restritivas", critica o economista italiano.
"Libertar o potencial de inovação" da Europa é fundamental para liderar em novas tecnologias, defende Draghi, também para integrar a Inteligência Artificial nas indústrias europeias existentes. "Com o mundo à beira da revolução da Inteligência Artificial, a Europa não pode dar-se ao luxo de permanecer presa às tecnologias e indústrias intermédias do século passado", pode ler-se no documento.
Neste ponto, Draghi pede uma aposta no reforço das competências na Europa de modo a que a tecnologia e a inclusão social andem a par. "Embora a Europa deva procurar igualar os EUA em termos de inovação, devemos procurar ultrapassar os EUA na oferta de oportunidades de educação e educação de adultos e de bons empregos para todos ao longo da vida", recomenda o relatório assinado pelo antigo primeiro-ministro italiano.
O relatório propõe uma nova estratégia industrial da UE baseada na "plena implementação do mercado único" e no desenvolvimento de políticas coordenadas com as dimensões de comércio e concorrência. A estratégia inclui o financiamento massivo das principais áreas de ação e a reforma da governação europeia, "aumentando a profundidade da coordenação e reduzindo a carga regulamentar".
Mário Draghi defende ainda um "plano conjunto para a descarbonização e a competitividade", avisando que, se a Europa não coordenar as suas políticas, "corre o risco de a descarbonização ser contrária à competitividade e ao crescimento".
O relatório dá como certa a preponderância dos combustíveis fósseis na definição dos preços da energia, "pelo menos durante o resto desta década". Por isso, esse plano é necessário para "transferir os benefícios da descarbonização para os utilizadores finais" e evitar o peso excessivo dos preços da energia sobre o crescimento.
O gás natural continuará a fazer parte do cabaz energético na Europa a médio prazo, assume Draghi, apontando para a necessidade de reduzir a volatilidade dos seus preços.
O relatório recomenda o reforço da contratação pública conjunta "pelo menos para o gás natural liquefeito" - para "alavancar o poder de mercado da Europa" e estabelecer parcerias a longo prazo com parceiros comerciais "fiáveis e diversificados" como parte de uma verdadeira estratégia de gás da União.
O plano sugere ainda a criação de um plano de ação industrial para o setor automóvel, descrito como "um exemplo fundamental da falta de planeamento da UE, aplicando uma política climática sem uma política industrial". O relatório defende que o "papel fundamental" que desempenha na descarbonização da economia europeia depende da capacidade de planeamento nesse sentido.
Draghi dá atenção específica à necessidade de aproveitar o potencial dos recursos internos "através da extração, reciclagem e inovação em materiais alternativos". Um dos casos citados no relatório é a necessidade de aproveitar a existência de depósitos de algumas matérias-primas críticas, "como o lítio em Portugal".
O antigo chefe de governo italiano defende que a Europa deve acelerar a abertura de minas, com redução de prazos de licenciamento e aumento da capacidade administrativa, "exigindo que recursos humanos predefinidos sejam alocados a projetos estratégicos".
O documento recomenda uma forte aposta na reciclagem de materiais incluídos em veículos elétricos ou aerogeradores. " A UE poderia potencialmente satisfazer mais de metade a três quartos das suas necessidades em matéria de metais para tecnologias limpas em 2050 através da reciclagem local", sustenta o relatório, em defesa de um "verdadeiro mercado único para os resíduos e a circularidade".
Olhando para fora, Draghi pede uma "verdadeira «política económica externa" que coordene os acordos comerciais e o investimento direto em países ricos em recursos críticos.
Esse objetivo está ligado à necessidade da Europa desenvolver uma "capacidade industrial de defesa forte e independente" que permita responder à procura crescente de meios e equipamentos militares e permanecer na vanguarda da tecnologia de defesa.
"A indústria europeia da defesa não só sofre de uma redução das despesas com a defesa, mas também de uma falta de ênfase no desenvolvimento tecnológico", escreve Draghi, lembrando que a paz " é o primeiro e principal objetivo da Europa" e que a UE é, coletivamente, o segundo maior gastador militar do mundo.
No entanto, o relatório assinala que "isso não se reflete na força da nossa capacidade industrial de defesa", sublinhando que esta "está demasiado fragmentada", o que prejudica a capacidade de produzir em escala, sofrendo ainda da "falta de normalização e de interoperabilidade dos equipamentos", que enfraquece a capacidade da Europa "para agir como uma potência coesa".
O relatório sugere desbloquear capital privado através de "uma verdadeira União de Mercados de Capitais" em que a Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados seja "um único regulador comum" para todos os mercados de valores mobiliários da UE, semelhante à Comissão dos Valores Mobiliários dos EUA.
Draghi sugere que os processos de governação e de tomada de decisão desta Autoridade sejam semelhantes à do Conselho do BCE " separando-os tanto quanto possível dos interesses nacionais dos Estados-membros da UE".
O economista italiano sugere ainda que a Europa deve "canalizar melhor as poupanças das famílias para investimentos produtivos", nomeadamente através de produtos de poupança de longo prazo ligados às pensões.
O ex-presidente do Banco Central Europeu defende ainda um aumento da capacidade de financiamento do setor bancário, através do "relançamento da titularização e a conclusão da União Bancária". Draghi defende que o orçamento europeu deve ser reformado "para aumentar a sua incidência e eficiência" e apoiar mais o investimento privado.
"A UE deve avançar para a emissão regular de ativos comuns seguros para permitir projetos de investimento conjuntos entre os Estados-Membros e ajudar a integrar os mercados de capitais", pode ler-se no relatório Draghi.
No relatório pedido por Von der Leyen, consta ainda a recomendação da nomeação de um novo vice-presidente da Comissão Europeia para a Simplificação, enquanto se adota simultaneamente uma "metodologia única e clara para quantificar o custo do novo fluxo de regulamentos" num contexto em que a carga regulamentar sobre as empresas europeias "é elevada e continua a aumentar".
Draghi apela ainda a que as votações do Conselho sujeitas a votação por maioria qualificada sejam alargadas a mais domínios." Se a ação a nível da UE for bloqueada, deve ser adotada uma abordagem diferenciada da integração", pode ler-se no documento.