A Rússia de Putin explicada por um jornalista exilado. "Movimentos de oposição estão em silêncio, à espera de novas grandes manifestações"

09 set, 2022 - 22:00 • José Pedro Frazão

Roman Dobrokhotov é o fundador do jornal electrónico "The Insider" que tem publicado investigações sobre assassinatos suspeitos e casos de corrupção na Rússia. O projecto jornalistico já com 9 anos é liderado agora a partir do estrangeiro por este activista que faz oposição a Vladimir Putin desde 2005. Em entrevista à Renascença, registada à margem das Conferências do Estoril, Dobrokhov explica o que fazem os activistas que nos últimos anos chegaram a encher as ruas contra Putin e partilha pormenores sobre o jornalismo independente na Rússia.

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A guerra da Ucrânia aproxima-se do Outono num quadro económico que afecta também a Europa e a estabilidade mundial de preços. Com pouca informação consistente e independente sobre o que passa nos círculos próximos de Vladimir Putin, sobram interpretações sobre o que quer fazer o líder russo com base na sua forma d agir, inclusivé com a imprensa que se opõe ao Kremlin. Em entrevista à Renascença, Roman Dobrokhotov, fundador do jornal electrónico "The Insider", dá a sua perspectiva sobre a situação na Rússia e explica as razões da sua fuga há um ano do país onde nasceu há 39 anos.

Mora neste momento na Europa. Ainda tem receio pela sua vida?

Eu vivi toda a minha vida na Rússia. Agora, morando na Europa, sinto-me muito mais seguro do que há um ano, quando todos os dias, sempre que voltava para casa, precisava de olhar atentamente para ver se quem estava parado ao pé da minha porta era ou não uma pessoa suspeita. Era uma situação muito, muito tensa. Isto começou há muitos anos, porque a nossa primeira investigação importante aconteceu em 2018, quando, em parceria com o Bellingcat, encontrámos os indivíduos que envenenaram Sergei Skripal, em Salisbury, com Novichok, uma arma química. Quando identificámos os nomes reais dessas pessoas, muitos dos meus amigos disseram-me que eu não poderia continuar a morar na Rússia. Com o passar dos meses, a situação foi tornando-se cada vez mais perigosa por causa das nossas novas investigações. Envenenaram, entretanto, Alexei Navalny, a situação mudou em todo o país, suprimiram todos os média independentes, pressionaram os activistas dos direitos civis, etc . O ambiente foi-se tornando cada vez mais tóxico ao nosso redor.

Recebeu alguma ameaça directa?

Nunca se recebe uma ameaça do governo. Navalny também nunca recebeu uma ameaça. Se eles tentarem matá-lo, eles aparecem para fazer isso. Desta forma, nunca se sabe onde está a linha vermelha. Tivemos um crítico literário e escritor que também foi envenenado sem nunca ter sido organizador de manifestações de protesto, pelo menos nos últimos anos. Nem ele entende por que razão foi envenenado. Temos dezenas e dezenas de outros tipos de ativistas e nunca se sabe o que será perigoso aos olhos do governo.

A sua casa foi alvo de buscas. Foi nesse momento que percebeu que era tempo de sair?

Sim. Esperei até ao último momento. E eles não apenas revistaram a minha casa como levaram os meus computadores , os meus telefones e também o meu passaporte. Isso significa que eles não queriam que eu deixasse o país . E quando o FSB russo não quer que uma pessoa saia do país, é porque ela precisa mesmo de sair do país imediatamente, porque será morto ou preso. No espaço de dois dias, eu já estava na Ucrânia, que considerava um lugar seguro naquela época. Ninguém poderia prever esta guerra. Desde então, realocamos a maior parte de nossa equipa da Rússia. Temos cerca de 40 jornalistas no Insider e a maioria deles saiu do país.

Considera seguro viver na Ucrânia?

Agora não é seguro para ninguém na Ucrânia porque pode ser bombardeado, é claro, no meio da guerra. Mas os nossos jornalistas já não vivem na Ucrânia, mas em dezenas de países europeus diferentes ,

Mesmo vivendo na Europa, ainda está atento ao que o rodeia de uma forma muito próxima?

Sim, claro. Os outros jornalistas que estão a fazer trabalho de investigação sabem que assassinos governamentais podem vir atrás deles. Então temos que estar atentos. Claro que costumo olhar para tudo à minha volta, tal como costumava fazer em Moscovo, mas não sinto esse tipo de pressão e de ameaça. O ambiente era tão tóxico em Moscovo no último ano em que lá morei que percebi que era apenas uma questão de tempo até eliminarem todo os jornalistas independentes. Quando fomos classificados como "agentes estrangeiros" na Rússia, tendo como alvos alguns jornalistas ou organizações de direitos humanos, decidimos que não cumpriríamos essa lei, assinalando essa classificação no nosso site e nas nossas contas de redes sociais. De uma forma ou outra, eles iriam fechar o nosso site. Por que razão iríamos jogar esse jogo e tentar comportarmo-nos de acordo com essa nova lei? Ignorámos simplesmente essas novas leis. Muitos média russos decidiram tentar cumprir todas essas novas leis de Putin que restringem o nosso jornalismo. Sabe o que aconteceu? Começou a guerra e todos eles foram forçados a deixar o país. A nossa estratégia sempre foi a de não fazer compromissos com o governo. Vamos contar o que quisermos . Acho que é por isso que o nosso auditório confia em nós e entendem que somos jornalistas altamente motivados que acreditam numa Rússia nova e livre. É muito importante para nós, jornalistas, sermos não apenas comentadores imparciais que apenas observam o que está a acontecer, mas também acreditam que precisamos de alguma mudança no nosso país. Todos os outros simplesmente deixaram de ser jornalistas, porque consideram tudo muito perigoso e não é bem pago.

Subsistem jornalistas livres na Rússia ?

Trabalham de forma anonima. Não se pode viver agora na Rússia e assinar pelo seu nome e ser livre. Há literalmente zero jornalistas nesta condição actualmente na Rússia.

Qual é o conhecimento que um russo normal tem sobre a guerra na Ucrânia ?

Não existe uma "Rússia normal", como ideia. A Rússia está dividida em diferentes partes e há uma pequena parte, eu diria, de cerca de 15, possivelmente 20% que realmente acreditam nas narrativas do Kremlin, que pensam que precisamos invadir a Ucrânia e outros países pós-soviéticos e atingir a América. Isso é uma minoria, apesar de o Kremlin tentar apresentá-los como russos comuns normais. Esta é uma minoria principalmente de idosos e de algumas regiões.

Há uma maioria silenciosa na Rússia ?

Não creio na ideia da maioria silenciosa, mas também há cerca de 30% dos russos, que são estritamente contra a guerra, que têm valores pró-europeus, entendem o que está a acontecer na Ucrânia e não podem dizê-lo em voz alta porque serão presos. E no meio há também cerca de 40% de russos que tentam ficar longe das conversas políticas. Eles simplesmente percebem que não podem influenciar a política de forma alguma, porque não temos eleições livres. Por isso tentam ignorar toda essa parte política e apenas acostumar-se a essa nova realidade , com sanções, proibições de viagens, etc. Eles simplesmente não pensam em questões ideológicas ou sobre valores. Eles pensam apenas na forma como podem sobreviver esta nova realidade.

Podemos dizer que a Rússia está a enfrentar os tempos mais repressivos desde a ascensão de Putin ao poder ?

Acho que estes tempos só podem ser comparados com a Rússia de Stalin que, claro, era muito mais cruel. Ele matou milhões de russos, mas, se compararmos mesmo com a União Soviética nos anos 1970, que também foi muito mau , porque as pessoas podiam ser presas por causa das anedotas políticas que contavam umas às outras na cozinha, acho que hoje em dia o governo russo é ainda mais agressivo porque força as pessoas a mostrar a sua lealdade. E também há muitos assassinatos políticos ou ataques etc. Possivelmente, os tempos soviéticos eram um pouco mais rigorosos, mas a situação era tão estável e as regras do jogo eram tão claras, que ninguém simplesmente mostraria os seus pensamentos de oposição. Mas não foi um problema, todos habituaram-se a isso naquele momento. Hoje em dia, temos uma geração jovem que absolutamente não aceita a ideologia de Putin que está a empurrar-nos de volta para a União Soviética. Entre pessoas com menos de 30 anos, o nível de apoio de Putin é extremamente baixo, mas temos essa geração mais velha que, pelo menos, têm alguma nostalgia da União Soviética e realmente pensam que a América é o nosso inimigo.

Onde estão as pessoas que se manifestavam nos últimos anos nas ruas com riscos para as suas vidas ? Estão escondidos? O que aconteceu a esses movimentos?

Muitas dessas pessoas deixaram o país, algumas estão na prisão como criminosos e muitas outras estão apenas em silêncio, esperando o momento em que novos tipos de processo irrompam. Eles querem ficar escondidos numa grande multidão de manifestantes, quando os riscos de serem presos é mais baixo. Por exemplo, com duas mil pessoas na rua, só conseguem prender apenas um milhar. Eles estão à espera de um momento em que estejam muitas pessoas. Ninguém sabe quando, todas as revoluções são muito imprevisíveis. Falei com as pessoas da Ucrânia que iniciaram a chamada Revolução da Dignidade em 2014 e quando começaram os protestos eles não estavam à espera do que aconteceria depois. Esperavam apenas parar a integração com a Rússia e voltar ao tratado de integração europeia, não faziam ideia de que seria possível derrubar Yanukovich. O mesmo acontece com a Rússia. Quando não há um protesto organizado, mas existe um estado de espírito de milhões de pessoas, nunca se pode prever quando esse protesto pode romper.

O que pensa que Putin quer nesta guerra na Ucrânia?

Penso que os objetivos de Putin mudaram porque, no início, ele foi aconselhado pelos seus serviços de informação e recebeu uma imagem muito errada do que está a acontecer na Ucrânia. Ele esperava invadir a Ucrânia em vários dias. Ele sentiu que seria apoiado por muita gente e todas as outras pessoas seriam apenas passivas. Ele não esperava um poderoso espírito ucraniano. Agora o seu objetivo mudou. Ele quer fazer um referendo no Donbass e tomar todos os territórios ocupados depois de fevereiro para que façam parte da Rússia. Possivelmente isso será suficiente para ele parar a guerra, obtendo alguns novos territórios, reivindicando que agora são territórios russos, organizando referendos da mesma forma que fez na Crimeia, que serão , obviamente, referendos falsos.

Pensa que Putin está preparado para uma longa guerra de resistência na Ucrânia ?

Não creio que ele tenha uma estratégia, mas apenas táticas. A sua tática agora é obter o controlo total desses territórios e afirmar que agora são territórios russos.

Mas penso que Putin vai perder, porque a Ucrânia agora tem o apoio de todo o mundo e a Rússia está a ficar sem recursos que, penso, devem esgotar-se até ao final deste ano.

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