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Entrevista Renascença/Ecclesia

"Todos temos um papel a desempenhar na defesa do desenvolvimento sustentável"

04 jun, 2023 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

João Antunes, do movimento Economia de Francisco, afirma que o apelo do Papa para o fim da era dos combustíveis fósseis "não é uma utopia", "passou a ser um imperativo". E quer aproveitar a Jornada Mundial da Juventude para encorajando os jovens a envolverem-se em ações e iniciativas focadas na sustentabilidade.

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Entrevista a João Antunes, membro do movimento Economia de Francisco
Ouça aqui a entrevista a João Antunes, do movimento Economia de Francisco

"Todos temos um papel a desempenhar na defesa do desenvolvimento sustentável”, defende João Antunes, do movimento Economia de Francisco.

Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, João Antunes considera que "os Estados e as empresas também façam caminho", porque "todos somos parte ativa deste processo".

Lembra que cada um individualmente "tem poder de influenciar positivamente a forma como queremos que as coisas aconteçam". “Se deixar de ir a uma determinada empresa, porque esta não tem práticas de sustentabilidade social e ambiental alinhadas com aquilo que são os meus valores, esta empresa perde clientes e, por isso, acaba por ser obrigada a mudar hábitos”, sublinha.

Consultor na área de gestão, estratégia e recursos humanos, João Antunes o apelo do Papa para o fim da era dos combustíveis fósseis "não é uma utopia", "passou a ser um imperativo".

Para setembro está já agendada uma nova Cimeira do Clima, com o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, a defender "ações climáticas novas, credíveis e sérias".

João Antunes diz que se trata de "uma necessidade urgente", com metas “sérias e que não sejam irrealistas ou tão longínquas”.

Noutro plano, João Antunes considera a Jornada Mundial da Juventude “uma ocasião significativa para a Igreja” e adianta que o problema dos abusos sexuais “é sempre constrangedor”, mas sublinha que “há vontade da Igreja em querer abordar o assunto na perspetiva do que é possível fazer diferente”.

Num dos apelos mais carregados de simbolismo de Francisco na defesa do ambiente, o Papa lembrou que "Deus deu um jardim" e que não devemos deixar "um deserto aos filhos".

Efetivamente, podemos estar a colocar aqui alguns entraves, sem dúvida alguma. Esta nossa inércia, individual e também global, não nos permite, muitas vezes, olhar para aquilo que é o desenvolvimento sustentável, como o Papa Francisco nos lembra.

Descuramos o cuidar desta casa comum, que é de todos, e que, na verdade, nos permite ter a vida que temos, hoje em dia. Quando pensamos no futuro, podemos não ter aquilo que temos hoje à nossa disposição…

Criticamos o pouco que os Estados fazem, mas essa reflexão crítica terá de começar por cada um de nós?

Sim, tem de começar por cada um de nós. É muito importante que, todos, individualmente possamos fazer esta reflexão crítica sobre as mudanças que devemos fazer, porque cada um de nós tem um papel a desempenhar neste desenvolvimento sustentável, independentemente da nossa idade, do nosso contexto profissional, social ou até económico.

Muitas vezes pensamos que isto deve ser só direcionado para os jovens, para novas gerações, mas isso está errado: todos efetivamente temos este papel a desempenhar, mas, em simultâneo, precisamos que os Estados e as empresas também façam este caminho. Já não temos tempo, propriamente dito, para que seja só numa lógica individual, local, tem de ser também pensado numa lógica global. Todos somos parte ativa deste processo.

Nós, individualmente, somos clientes, somos consumidores, pagamos impostos, portanto, também temos esse poder de influenciar positivamente a forma como queremos que as coisas possam acontecer. Um exemplo prático: se deixar de ir a uma determinada empresa, porque esta não tem práticas de sustentabilidade social e ambiental alinhadas com aquilo que são os meus valores, aquilo que eu acredito, esta empresa perde clientes e, por isso, acaba por ser obrigada a mudar hábitos.

Se também pressionarmos, globalmente, sejam Estados, sejam empresas, instituições, a fazer a mudança, ao mesmo passo que nós, individualmente, também o fazemos, esta mudança tem um impacto muito maior e torna-se possível.

"Se pressionarmos, globalmente, Estados, empresas, instituições, esta mudança tem um impacto muito maior e torna-se possível"

Na última semana ‘Laudato Si’, o Papa divulgou a sua mensagem para o próximo Tempo da Criação, apelando ao fim da era dos combustíveis fósseis. É uma utopia?

É uma questão sempre difícil, acredito efetivamente que não é uma utopia, já passou a ser um imperativo, se quisermos prevenir piores impactos das mudanças climáticas. Portanto, isto implica que haja uma transição para fontes de energia renováveis e limpas, já temos biocombustíveis, cada vez mais temos um conjunto de ferramentas e de opções disponíveis. Acredito que é possível, se trabalharmos em conjunto para que isso aconteça, para que não seja só uma utopia.

O João e a sua mulher, Rita Nascimento, têm apostado, particularmente, na capacitação das novas gerações, para que cresçam com novos comportamentos sustentáveis. Que desafio é esse?

É verdade, é um desafio. Só para dar algum contexto: é um desafio que começou em casa, a pensar nos nossos filhos. Quando tivemos o primeiro filho, o Manuel, há oito anos, começamos a repensar também um bocadinho o que é que fazia sentido também para de herança, para os nossos filhos. Aí começamos a pensar num projeto que pudesse, não só educá-los para o futuro, mas também já neste momento: que impactos, que alterações é que podemos fazer, hoje em dia, e que estão nas nossas mãos. Portanto, não precisamos aqui de de terceiros para o fazer. E que possam trazer também este impacto que queremos.

Começou em casa, com os nossos filhos, e o objetivo passou para uma lógica de educação, para as escolas, apoiando jovens na educação para uma ecologia integral, um pensamento mais global em torno da sustentabilidade.

Durante a pandemia, como casal, criaram o projeto Treethis.com, respondendo à vontade de criar consciência e “apagar a pegada carbónica” através da plantação de árvores em locais onde a desflorestação acontece. Que balanço faz da experiência?

É um balanço muito positivo. Nós próprios não tínhamos consciência, quando começamos o projeto, do impacto real que, por exemplo, a reflorestação traz. A verdade é que pensamos, muitas vezes, só nesta lógica da pegada carbónica - e tem um impacto muito positivo, claramente a plantação de árvores é uma forma de repor algum equilíbrio a tudo o que vamos destruindo, no nosso dia a dia - no entanto, fomos percebendo que o impacto também era a nível social e económico.

O facto de haver reflorestação, em determinadas zonas do mundo onde há um défice muito grande em termos sociais e económicos, permite também apoiar um conjunto de pessoas, que ganham emprego, portanto, passam a ter um trabalho que é digno, e passam a ter um salário e que lhes permite ter uma sustentabilidade financeira que não tinham, até esse momento.

Aliamo-nos a um parceiro internacional, que tinha este cuidado de procurar zonas frágeis, vulneráveis, onde fosse necessário também empregar pessoas e ajudar comunidades, não só numa lógica de educação, mas também de lhes proporcionar um trabalho. Quase que sem querer, fomos tendo ganhando esta consciência real daquilo que que pode existir em termos de impacto social, também nas comunidades que estávamos aqui a apoiar.


Este ano iremos ter mais uma Cimeira do Clima, com o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, a defender “ações climáticas novas, credíveis e sérias” que ajudem a reverter a crise ambiental. Só assim valerá a pena avançar com a iniciativa?

Às vezes, esse tipo de argumentos ou de frases já caem no vazio. Já os ouvimos há tanto tempo, sempre da mesma forma, e muitas vezes não acreditamos que haja realmente um interesse ou um propósito real de fazer alterações, aquilo que é necessário. Avançar com ações climáticas significativas é uma necessidade urgente, para combater esta crise climática, independentemente do progresso de qualquer iniciativa mais específica.

Como o próprio secretário-geral das Nações Unidas indicou, precisamos destas ações climáticas, que sejam novas, credíveis, que sejam sérias, que não seja mais do mesmo, metas irrealistas ou tão longínquas que não tenhamos noção de participação – porque nos parecem estar tão longe que acabamos por não estar comprometidos.

É necessário repensar estas ações climáticas e aquilo que é necessário ser feito, de forma credível, de forma séria. Aqui, a Economia do Francisco, pelo seu propósito e pelo seu objetivo de reformular um pouco o sistema económico, para o tornar mais justo e mais equitativo…

Sobre a forma como as pessoas percecionam este tipo de iniciativas, por vezes cria-se uma certa banalização deste tipo de encontros em que as pessoas, à partida, já julgam que nada de concreto vai sair delas?

Sim, sem dúvida e, por isso, aqui torna-se importante que saiam coisas concretas. Que saiam soluções, iniciativas concretas e que seja algo que possa comprometer não só meia dúzia, um conjunto de Estados, de pessoas ou de organizações, mas sim de forma global, com toda a gente. Que haja ações focadas também na educação. Coisas que sejam concretas e que permitam pensar no estado em que estamos atualmente, e naquilo que é necessário fazer hoje, e também naquilo que é necessário garantir para o futuro e as mudanças que são necessárias fazer. Portanto, eu acho que tem que ser claro e tem que ser credível para que se torne sério e para que seja possível reverter esta crise ambiental.

Os temas que estão que são mais queridos à Economia de Francisco, como a sustentabilidade ou a ecologia integral, têm merecido uma discussão deficiente em Portugal, sobretudo entre as novas gerações, ou a Jornada Mundial da Juventude é um momento de esperança também para esse debate?

Há aqui um pouco das duas coisas. Eu creio que em Portugal continua a ser um pouco deficiente esta discussão. O debate sobre uma economia mais justa e sustentável continua a ser necessário. E eu até diria que é vital.

Claramente, a pandemia evidenciou aqui algumas falhas do nosso sistema atual, mas também colocou muitos destes temas na atualidade. E claramente que a Jornada Mundial da Juventude cria uma plataforma onde podemos também impactar um conjunto de pessoas, muita gente, muitos jovens que depois localmente poderão também fazer mudanças. Portanto, poderão também implementar, seja individualmente, seja depois também dentro do seu contexto social e profissional, poderão também lutar um pouco por estas mudanças, e implementar aquilo que é necessário. Claramente ainda há muito espaço para discutir e para criar mais ações, e fazer diferente.


"Precisamos de ações climáticas, que sejam novas, credíveis, sérias, que não seja mais do mesmo, metas irrealistas ou tão longínquas que não tenhamos noção de participação"

Quando se fala em sustentabilidade é preciso começar a pensar para além da ecologia e das finanças? A dimensão espiritual, particularmente na teologia católica, pode dar um contributo próprio neste debate?

Sem dúvida. A sustentabilidade é um conceito multidimensional que engloba aspetos ambientais, sociais, económicos e também a dimensão espiritual que às vezes parece que é esquecida, ou não é tida tanto em conta. Mas a dimensão espiritual da sustentabilidade também diz respeito aquilo que é o nosso relacionamento connosco próprios com os outros, com o mundo à nossa volta, e por isso somos convidados sempre a refletir sobre os nossos valores, sobre o nosso propósito, sobre qual é que é o nosso lugar nesta casa comum que é o nosso planeta. E em muitas tradições religiosas, tanto na teologia católica como noutras a sustentabilidade é vista como uma expressão de princípios espirituais fundamentais. É algo que é fundamental não é.

Como um estilo de vida também?

Exatamente, não pode ser dissociado. Nós somos um só e faz parte daquilo que é a nossa natureza. E por isso nós sentimo-nos bem quando estamos junto da natureza e quando temos aqui um conjunto de estímulos também vindos desta natureza, e somos muitas vezes convidados a cuidar dela, não é? E por isso não podemos dissociar uma coisa da outra, e por isso é tão importante esta dimensão espiritual.

O que espera desta Jornada Mundial da Juventude depois de um contexto preparação tão difícil com a pandemia, a nível interno da Igreja Católica com a crise os abusos. O que é ela pode representar no cenário nacional para a Igreja?

Eu acho que é uma ocasião significativa para a Igreja Católica reunir aqui jovens de todo o mundo para celebrar a fé, para refletir sobre questões importantes e, acima de tudo, para construir pontes de compreensão, e também de solidariedade.

Eu creio que estes temas, e estes contextos difíceis que temos passado, não só estes, mas também outros que têm surgido no mundo, como a guerra, etc.... tudo isto tem sido difícil para os jovens. E creio que por isso, este acaba por ser um espaço de diálogo, de reflexão, onde podemos aqui claramente abordar as questões críticas que existem na nossa sociedade. Fazer aqui uma renovação de compromisso da própria Igreja com a justiça, com a transparência, com a preocupação com os outros, e fortalecer também o sentido comunidade e da fé.

E também alinhado com aquilo que é a visão do Papa Francisco dar aqui uma resposta e procurar ter aqui também este compromisso dos jovens para uma resposta à crise ambiental e de que forma é que podemos abordar esta questão encorajando os jovens a envolverem-se em ações e iniciativas focadas na sustentabilidade. Creio que é o momento de reflexão e de compromisso renovado.

De alguma forma, a polémica dos abusos não pode contaminar a real discussão que a jornada Mundial da Juventude deve proporcionar?

Sim. Obviamente que é sempre constrangedor. Mas não é um tema que esteja escondido, de maneira alguma. Eu acho que há transparência, há vontade da própria Igreja em querer abordar o assunto numa perspetiva também de melhoria, na perspetiva do que é que possível fazer diferente. Há claramente aqui a procura de assumir esta responsabilidade e de olhar para a frente e ver o que é necessário ser feito de diferente. E creio que é isso também que os jovens procuram.

É a esperança. É olhar para o futuro e perceber de que forma é que podem trabalhar em conjunto, como é que a Igreja também pode potenciar esta reflexão para nos fortalecermos enquanto comunidade. Apesar de ser um tema incomodo não põe em causa aquilo que é a força de uma Jornada Mundial da Juventude.

A nível global, quais são os próximos passos do movimento Economia de Francisco? Esta área da sustentabilidade e da ecologia integral é central para os jovens?

Sim, sem dúvida que é central para todos os jovens que estão envolvidos em termos daquilo que são os próximos passos da economia de Francisco. Estamos a falar de um movimento que é muito dinâmico e flexível e que procura ir respondendo também aquilo que vão sendo as necessidades e aquilo que vai também surgindo e que é necessário ser feito.

Assim de forma muito sucinta, teremos a 6 outubro um evento global. Ainda não há muitos detalhes, mas irá certamente permitir olhar para aquilo que foi o ano que passou desde o último encontro, e aquilo que devem ser também outros passos e iniciativas a serem feitas para o futuro.

Ao dia de hoje, os vários centros locais em cada país que estão a trabalhar localmente e que também aqui um conjunto de iniciativas e de ações pensadas para o futuro. O nosso, por exemplo, em Portugal está muito focado agora neste ponto da jornada Mundial da Juventude, tem outros temas também a correr em simultâneo para o pós-JMJ.

Temos também uma IOF Scholl, uma escola focada na Economia de Francisco que tem como tema: "Dos princípios à teoria e prática". Vamos ter uma escola de verão. Vamos realizando cursos e há um conjunto de cursos previstos na academia também da Economia de Francisco que vão permitindo falar sobre todos estes temas. Há um conjunto de iniciativas a correr e que estão previstas para ir aqui ao encontro, e cada vez mais a ajudar-nos a pensar global, mas a agir local.

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