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Em Nome da Lei

"Gouveia e Melo violou os seus deveres", acusa defesa dos militares do NRP Mondego

25 mar, 2023 - 08:00 • Marina Pimentel

A polémica na Marinha é o tema do Em Nome da Lei desta semana, com os advogados Garcia Pereira e Fernando Ferrador, o general Brandão Ferreira e Vitor Gil Prata, antigo subdiretor da PJM.

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Polémica na Marinha O dever de obediência é absoluto?

Os 13 militares do navio NRP Mondego desconhecem ainda o que consta, quer dos processos-crime quer dos processos disciplinares que lhe foram movidos pelo Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), almirante Gouveia e Melo.

A indicação é deixada pela a defesa dos quatro sargentos e nove praças que recusaram cumprir a ordem do comandante para patrulharem um navio russo, a norte da Ilha de Porto Santo, alegando falta de condições de segurança da embarcação.

Em declarações ao programa "Em Nome da Lei", da Renascença, o advogado Garcia Pereira afirma que, no processo disciplinar, os seus constituintes já estão condenados à partida, porque nenhum militar da Armada se atreverá a contestar a sentença de Gouveia e Melo”.

"A única coisa que sabemos dos processos disciplinares é que a postura do senhor almirante Gouveia e Melo ao acusar, sentenciar, condenar e executar na praça publica os militares em questão, naturalmente, condicionou os desfechos desses processos disciplinares, porque, como é obvio, nenhum militar da Armada que for nomeado instrutor do processo se atreverá a contestar a condenação prévia que já foi feita pela mais alta instância da hierarquia”, afirma Garcia Pereira.

O advogado diz que a reprimenda que o Chefe do Estado-Maior da Armada deu aos 13 militares, perante as câmaras de televisão, é não só um ato de humilhação eticamente inaceitável, mas também uma violação dos seus deveres.

"Aquele desconchavo e aquela humilhação pública a que foram sujeitos os nossos constituintes de serem submetidos a formar na coberta, com as televisões chamadas a filmar a reprimenda de dedo em riste que o almirante Gouveia e Melo decidiu prestar-lhes, exatamente pelo espetáculo mediático que isto representa, é um ato de humilhação intolerável do ponto de vista legal e constitucional. E, além disso, representa ele próprio uma violação dos deveres que se impõem a qualquer superior hierárquico militar. Mais ainda quando estamos da chefia máxima da Marinha”, argumenta Garcia Pereira.

No "Em Nome da Lei", o advogado e major reformado Fernando Ferrador, especialista em disciplina militar, admite que a condenação pública feita por Gouveia e Melo compromete a imagem de independência que este deveria ter enquanto instância de apelo de um eventual recurso hierárquico que os 13 militares venham a fazer, caso sejam condenados no processo disciplinar.

”Se estes militares forem acusados e se o relatório e conclusões provar que há ilícito disciplinar e vierem a ser punidos, eles podem reclamar para o autor do ato administrativo da punição e têm o direito ao recurso hierárquico necessário que é o chefe do Estado-Maior da Armada. No fundo, ele vai decidir sobre uma coisa em que ele à priori já se pronunciou”, sublinha Fernando Ferrador.


“Gouveia e Melo violou os seus deveres”, acusa defesa dos militares do NRP Mondego
“Gouveia e Melo violou os seus deveres”, acusa defesa dos militares do NRP Mondego

”Neste país toda a gente fala demais"

Defendendo que os militares violaram uma ordem da hierarquia e isso tem consequências disciplinares e penais, também o tenente-coronel na reforma Brandão Ferreira admite que o chefe de Estado Maior da Armada devia ter reagido com maior recato.

”Neste país toda a gente fala demais. Ninguém pode ver um microfone à frente. Os governos todos, não é só este, governam para o telejornal das 20h00. E o cúmulo é que temos um Presidente da República que ainda não percebeu que não é comentador. Não sei porquê mas não percebeu. Ou não quer perceber. E, portanto, toda a gente fala. E não estou com isto a dizer que concordo com o que o almirante Gouveia e Melo fez. Eu tinha-me recatado. Deixava a cadeia hierárquica ir resolvendo o problema. Quem deu a ordem para a missão foi o comando naval. Era o comando naval que tinha de instaurar o processo”, afirma.

Brandão Ferreira reconhece no entanto que o CEMA pode sempre avocar o caso. Como aconteceu.

Além do processo disciplinar, os militares que recusaram cumprir a ordem do comandante do navio patrulha NRP Mondego são objeto de inquérito crime, cuja investigação, por estarem em causa crimes militares, é da competência da Polícia Judiciária Militar, mas é dirigido por um magistrado do Ministério Público.

Garcia Pereira, um dos dois advogados dos militares alegadamente insubordinados, entende por isso que “o processo criminal oferece outras condições de independência”. E explica o facto de os 13 militares terem sido convocados para comparecerem na segunda-feira na Polícia Judiciária Militar (PJM), mas a diligência ter sido anulada com eventuais necessidade de recolha de prova por parte do magistrado titular do processo.

Vitor Gil Prata, antigo subdiretor da PJM, não fica surpreendido com o facto de os militares não terem ainda sido ouvidos e constituídos arguidos. ”O Ministério Público poderá ter entendido que, neste momento, não se justificava a aplicação de qualquer medida de coação. Nem sequer o TIR [Termo de Identidade e Residência]. Por isso, não foram constituídos arguidos. O TIR serve para que os arguidos estejam localizados. Ora bem, no âmbito da justiça militar, o militar, arguido num processo, é sempre notificado pela chefia militar. Estes militares suspeitos estão colocados numa unidade, não sei qual é, mas estão colocados. Estão ao serviço e, portanto, estão acessíveis à notificação através do seu comandante.”

Este general na reforma defende que "nem seria normal começar um inquérito com a audição dos arguidos. É muito provável que antes sejam ouvidos o comandante, o resto da guarnição, e analisados os relatórios sobre o estado em que se encontrava o navio”.

Destruição da prova?

Questionado sobre uma eventual destruição da prova, defende que “a prova não se perdeu com o facto de a embarcação de patrulha ter sido entretanto reparada. Porque a primeira obrigação do comandante é preservar todos os indícios”. E lembra que “estamos a falar de um navio, não de um computador que se sela e se leva. Estamos a falar de um navio que faz parte do dispositivo operacional. Não pode ser selado. E a prova não se perde, até porque há relatórios anteriores que dizem qual é o estado do navio. E o comandante tem de manter permanentemente informado o comando naval sobre o estado da embarcação”, afirma Vitor Gil Prata.

Face aos factos que são conhecidos, o antigo subdiretor da PJM não tem dúvidas de que "os 13 militares praticaram um crime de insubordinação por desobediência, e com agravantes. Mas pese embora o facto de terem atuado em conjunto, considera “não estarem reunidas as características da insubordinação coletiva, porque o tipo criminal exige a prática de violência, o que não aconteceu”.

Também o antigo oficial piloto aviador João José Brandão Ferreira considera que a violação da ordem de comando representa um crime de insubordinação por desobediência. Mas num artigo recente que assina no seu blogue, ”O Adamastor”, fala sobre o desinvestimento nas Forças Armadas e lembra que os três patrulhas da classe Tejo foram comprados à Marinha dinamarquesa em 2014.

”Os navios foram construídos para navegarem no Báltico”, escreve, ”que é um mar fechado, pouco profundo, onde as condições de navegação não são tão exigentes com as do Oceano Atlântico, nomeadamente as da nossa ZEE, possuindo um fundo chato, de fibra de vidro e alumínio. Ainda se terá pensado em utilizá-los em águas mais calmas, como o Algarve, mas depois a realidade fez o resto.”

”Dever de obediência não absoluto"

O advogado Garcia Pereira refuta a avaliação que fazem os três antigos militares ouvidos pelo Em Nome da Lei sobre o comportamento dos 13 marinheiros e argumenta que o dever de obediência já foi noutros tempos um dever absoluto. Mas já não é. Os militares não têm apenas a possibilidade de não acatar uma ordem quando essa ordem os leve a praticar um crime.

”O dever de obediência ao contrário do que os meus colegas de painel sustentam, não é um dever absoluto. E tem limites. Não tinha noutras épocas. Mas agora com o nosso quadro jurídico e constitucional, tem limites. E não é só o direito de recusar uma ordem que implique o cometimento de um crime. Não é isso que a lei e a Constituição dizem, nem podia ser.”

Para ilustrar a que resultado pode levar a obediência cega, Garcia Pereira lembra a explosão ocorrida a bordo da corveta António Enes , em 1987, que provocou a morte de seis dos seus tripulantes, além de 11 feridos.

”O dever de obediência em relação à corveta António Enes, em que foi cumprida a ordem de navegar da Ilha Terceira para a Horta com inúmeros gases inflamáveis e explosivos a bordo, e que sofreu a explosão, vale de pouco dizer agora aos seis que morreram que cumpriram a ordem que lhes foi dada. E acrescento o seguinte: Quando se levantou a questão de ‘Por que é que isto ocorreu?’ Quem bateu com os ossos no Tribunal, porque houve um julgamento em que felizmente pode ser produzida prova, e eles acabaram absolvidos, foi o comandante do navio, foi o chefe de máquinas e o chefe da eletrónica”, diz o advogado. Não foi a hierarquia da Armada.

Declarações ao programa em Nome da Lei da Renascença que debate os factos ocorridos a bordo do navio de patrulha Mondego. O programa, da jornalista Marina Pimentel, pode ser ouvido aos sábados ao meio dia na Renascença ou a qualquer hora nas plataformas de podcast.

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