19 jul, 2024 - 07:10 • Sandra Afonso , Arsénio Reis
A presidente do Conselho das Finanças Públicas (CFP) assume que é “favorável à descentralização”, porque “há áreas em que se justifica plenamente” entregar a gestão ao poder local. No entanto, em entrevista ao programa Dúvidas Públicas, da Renascença, Nazaré da Costa Cabral questiona todo o processo e aponta várias reservas.
A transferência de competências da administração central para os 278 municípios de Portugal continental começou no final da década de 1990, mas o programa foi relançado em 2018 já com o executivo de António Costa.
O processo inclui a passagem para as autarquias da gestão de mais de 20 áreas, algumas delas estratégicas e com grande peso financeiro, como a educação, a saúde e a ação social. “Trata-se de matérias que podem ser muito mais bem geridas em proximidade, faz sentido que seja o governo local a assegurar essa gestão, mandam os princípios e manda a teoria”, sublinha a presidente do Conselho das Finanças Públicas.
A economista diz ainda que “tinha esperança de que estas áreas, descentralizadas, podiam ser mais bem geridas, indo ao encontro das necessidades reais das populações de cada localidade, porque o país é muito diversificado e as necessidades não são as mesmas”. Esperava também que este “fosse um passo para o desenvolvimento e o crescimento mais harmonioso do país”.
Por isso, admite que “a forma como este processo acabou por ser conduzido, designadamente nos seus termos financeiros, acabou por me desiludir e causa-me algumas preocupações”.
"Descentralização? A forma como este processo acabou por ser conduzido, designadamente nos seus termos financeiros, acabou por me desiludir e causa-me algumas preocupações"
São receios que acabam de ser reforçados pelo último relatório do CFP, segundo o qual em 2023 as autarquias apresentaram um excedente orçamental de apenas 24 milhões de euros, que compara com os 353 milhões registados um ano antes. Mesmo assim, a dívida apresenta só uma descida ligeira. Resultados que Nazaré Cabral diz que lhe deixam “alguma inquietação”.
Havia o pressuposto de “uma gestão mais eficiente da despesa pública” com a descentralização, que o município fizesse o mesmo mas “sem gastar tanto”, através da eliminação de desperdícios.
Perante as contas dos municípios em 2023, a presidente do CFP questiona agora “como foi avaliado o custo de transferência das competências, o que foi feito?” Levanta ainda dúvidas sobre “se houve rigor” no processo e pergunta se estão a ser dados incentivos para que “os municípios façam mais e melhor, se calhar com menos”.
“Essa avaliação técnica, de rigor, não sei se este processo de descentralização a fez. Tenho as minhas dúvidas. Esperemos que a situação possa vir a ser diferente”, conclui.
O primeiro-ministro, Luís Montenegro, já prometeu “aprofundar o processo de descentralização” durante a legislatura, tal como prevê o Programa do Governo, o que passa também por “revisitar” a Lei das Finanças Locais.
Os mais atentos não terão ficado surpreendidos com a recente auditoria da Tribunal de Contas, que deu como perdida a última década, no que diz respeito à redução da despesa pública. Segundo o relatório, o sistema de incentivos implementado ainda com a troika (2013), foi “totalmente ineficaz”.
Relatório antecipa excedentes orçamentais até ao f(...)
Não foi o primeiro organismo a pronunciar-se, o CFP já tinha feito “imensos alertas”, garante a presidente. Já tinham defendido que “ o que existia não era um verdadeiro sistema de revisão da despesa, era um sistema que permitia, aqui e ali, de forma muito irregular e esparsa, obter algumas poupanças, algumas migalhas em certas rubricas de despesa ”, explica.
Questionada sobre o que é preciso para implementar um sistema eficaz de controle e redução da despesa pública, Nazaré Cabral defende que será “muito difícil”, enquanto as despesas não estiverem “verdadeiramente estruturadas por programas orçamentais”.
Hoje sabemos em que é que o Estado gasta o dinheiro ou faz despesa (remunerações, aquisição de bens e serviços, bens de capital, etc), mas não sabemos “para que serve essa despesa, para fazer o quê, onde, qual é o fim e o objetivo”.
Faltam programas orçamentais com objetivos de despesa e indicadores de desempenho associados, “que permitam saber se o programa é bem executado, se é necessário e se satisfaz objetivos que se propunha”. Só assim é possível garantir “as tais poupanças públicas”, explica a presidente do Conselho das Finanças Públicas.
São algumas das declarações de Nazaré da Costa Cabral em entrevista ao programa Dúvidas Públicas, onde falou ainda sobre as finanças do país e o Orçamento do Estado para 2025, as taxas de juro e a crise na habitação, entre outros temas.
Uma entrevista que pode ouvir na íntegra no sábado a partido do meio-dia, na antena da Renascença, e que fica depois disponível online e em podcast.