Reportagem

Pode a cerveja sem álcool tornar-se uma moda?

02 jun, 2023 - 08:30 • João Carlos Malta *

No centro da Europa, onde o consumo de cerveja é maior, o mercado das bebidas 0% álcool já vale dois dígitos em percentagem. Portugal, um mercado menor, ainda está longe deste cenário. Mas, à medida que mais e mais jovens não bebem álcool, o futuro aponta para um maior peso das bebidas não alcoólicas.

A+ / A-

Mais de duas em cada dez pessoas na Europa não bebem bebidas alcoólicas. Nos jovens a percentagem sobe para o dobro, são quatro em cada dez pessoas. A realidade está a mudar e as bebidas alcoólicas, como a cerveja, estão a apostar no mercado de bebidas 0% álcool para não perder vendas.

No Centro e Norte da Europa esta transformação é um tema que está na ordem do dia e as bebidas sem álcool são um mercado em ascensão. As marcas já não o podem ignorar, diz à Renascença Lenka Kralova, diretora da área de novos negócios da Plzeňský Prazdroj, cerveja do grupo japonês Asahi.

Lenka Kralova afirma que já não é a indústria a tentar conquistar o mercado das bebidas não alcoólicas, mas “estamos interessados em mantermo-nos relevantes”.

Esta responsável da empresa checa, país em que cada cidadão bebe em média 142 litros de cerveja por ano (o valor mais alto em toda a Europa), acredita que é possível que, até ao final desta década, a venda da cerveja sem álcool valha 20% do total. Atualmente, está pouco acima dos 10%.

“O consumidor está-se a afastar cada vez mais do álcool e nós precisamos de nos manter atualizados. O nosso foco é quem bebe cerveja”, diz Lenka, uma das oradoras do Brewers Forum 2023, que decorreu em Praga na semana passada, e que juntou os mais importantes profissionais europeus do setor.

A especialista acredita que os mais jovens estão agora mais preocupados em ter “estilos de vida mais saudáveis” e estão a questionar-se “sobre coisas que nós não fizemos: Valerá a pena beber? Como me vou sentir amanhã?”.

"O consumidor está-se a afastar cada vez mais do álcool e nós precisamos de nos manter atualizados", Lenka Kralova, diretora da área de novos negócios da Plzeňský Prazdroj, cerveja do grupo japonês Asahi.

“No fundo, estão mais recetivos a pensar sobre o que acontece quando se ingere bebidas alcoólicas e quais os efeitos de tomar essa decisão, pensando se vale ou não a pena fazê-lo”, concretiza Lenka Kralova, diretora da área de novos negócios da Plzeňský Prazdroj.

A mesma acrescenta que estas cervejas, além do álcool, têm também menos açúcar e, portanto, menos 30% de calorias.

Portugal ainda muito longe

Em Portugal, esta tendência ainda está longe de ser real. E muito distante de se poder falar de uma moda. Quem o diz é o secretário-geral da Associação Cervejeiros de Portugal, Francisco Gírio.

O mercado está longe de valer os dois dígitos como acontece noutros países europeus. Neste momento, é um segmento que representa apenas 3% do total de vendas.

Francisco Gírio reconhece que se trata de um mercado em crescimento e para o qual as marcas estão a olhar com atenção, mas junta-lhe o das cervejas com baixo teor alcoólico, ou seja, abaixo dos 5% − valor tradicional em Portugal.

“O mercado tem vindo a subir gradualmente no consumo de cerveja sem álcool, mas não de forma muito significativa em Portugal. Ou seja, não estamos ainda longe dos exemplos que existem em Espanha e também na Polónia”, refere, apontando dois países em que as cervejas sem álcool já valem mais de 10% do mercado.

“Estamos longe e não conseguimos prever se vamos chegar a esses valores. Obviamente que nós estamos a tentar perceber as tendências do consumidor e estamos atentos aos nichos de mercado”, concretiza.

OuvirPausa

No mesmo painel sobre o futuro da cerveja sem álcool, no qual também Lenka Kralova foi oradora, estava o polaco Radosław Soszka que há 20 anos trabalha nesta área e que, de momento, é especialista e investigador do mercado cervejeiro no grupo IQS.

Radosław afirma que a Europa está a assistir a uma redução generalizada das vendas de cervejas com álcool e que, por isso, a indústria está a pôr muitas fichas neste mercado porque se trata de uma “forma fácil” de recuperar. “Têm o produto e têm a infraestrutura”, detalha.

“Têm apenas de arranjar formas para chegar ao consumidor, numa altura em que as cervejas sem álcool estão em linha com a moda de uma vida mais saudável. As pessoas estão cada vez mais interessadas com aquilo que comem e que bebem”, resume.

Radosław diz que tem existido um movimento de aposta e de investimento para fazer cervejas sem álcool de maior qualidade, porque, muitas vezes, era neste aspeto que os consumidores acabavam por rejeitar o produto. “Diziam que não sabia a uma cerveja a sério”, lembra. “Não só porque não tinha álcool, mas simplesmente porque não sabia bem”, acrescenta.

Lenka Kralova acredita que esses tempos já passaram. “Estamos num ponto em que nas provas cegas as pessoas preferem as cervejas sem álcool”.

No entanto, reconhece que há um facto com o qual este produto ainda tem de batalhar: a perceção.

"Diziam que não sabia a uma cerveja a sério (...) Não só porque não tinha álcool, mas simplesmente porque não sabia bem”, afirma Radosław Soszka, especialista e investigador do mercado cervejeiro no grupo IQS..

“Entre 80% e 90% da perceção do sabor ocorre antes de realmente provar a bebida, qualquer que seja o produto, a cor, a forma como é servido, a aparência, o cheiro”, descreve.

“Tudo isso cria a imagem mental na nossa cabeça de como seria o sabor antes de o líquido realmente tocar os nossos lábios. Agora imagine-se isso dizendo a alguém que essa cerveja não é alcoólica. A perceção cai muito”, avalia.

Questionada sobre como se muda a perceção de uma bebida que sempre foi conotada com o álcool, Kralova considera que essa não é a ideia. “Acho que não acontecerá nem em 100, nem em 200 anos. Mas também não é esse o nosso objetivo”, afirma.

“O que queremos é preservar tudo o que há numa cerveja e no aspeto social de beber uma cerveja, com todas as emoções positivas que estão relacionadas. Temos de o tornar relevante para todos os que não bebem álcool. É verdade que o álcool é parte da diversão, mas não é a única parte”, elabora a diretora de novos negócios da cervejeira checa.

Esta especialista acredita que a transformação está muito mais na perceção, e na parte social de beber uma cerveja, do que no sabor. “Ainda estamos longe do ponto em que as pessoas bebem uma cerveja sem álcool sem ter de explicar o porquê ou estarem quase a desculpar-se”, resume.

Também Radosław Soszka acredita que, agora, a qualidade das cervejas sem teor alcoólico é cada vez melhor. Soszka reforça que a indústria terá de enfatizar a ideia de que quando se bebe cerveja sem álcool, “ainda se está a beber cerveja” e “a pessoa continua parte da festa”.

Lenka Kralova, diretora da área de novos negócios da Plzeňský Prazdroj, cerveja do grupo japonês Asahi, acredita que a indústria não está a “tentar evangelizar a sobriedade”, “queremos apenas dar opções aos consumidores”.

Segundo a indústria, a cerveja é a terceira bebida mais consumida em todo o mundo a seguir à água e o chá.


* o jornalista viajou para o Brewers Forum 2023 a convite da Associação Cervejeiros de Portugal.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+