30 mar, 2023 - 07:00 • Susana Madureira Martins (Renascença) e Helena Pereira (Público)
O presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP) admite que a medida do IVA zero acordada entre o Governo, a distribuição e a produção "tem algum impacto", mas antevê que a fiscalização "é uma dificuldade real" nas mercearias e pequenas lojas.
Em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal Público, João Vieira Lopes deixa o aviso aos "grandes operadores" da distribuição e da produção: "é também a sua imagem em termos reputacionais que fica posta em causa se houver muitos incidentes".
Quanto ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), é arrasado pelo dirigente da CCP, que acusa de estar "em ponto morto". Falta "eficácia" por parte do Estado e "não há capacidade técnica, há falta de quadros qualificados, há concursos que ficam vazios porque estão desfasados da realidade nos custos e nos preços", acusa Vieira Lopes.
No dia em que o programa "Mais Habitação" é aprovado em Conselho de Ministros, João Vieira Lopes considera que o pacote "é excessivamente superficial" e que "não vai resolver a questão".
Nesta entrevista ao Hora da Verdade, que pode ouvir na Renascença a partir das 23h00 e ler na edição desta quinta-feira do jornal Público, João Vieira Lopes anuncia que vai reunir-se com os grupos parlamentares para que atuem junto do Tribunal Constitucional e peçam a fiscalização sucessiva da Agenda do Trabalho Digno recentemente promulgada por Marcelo Rebelo de Sousa. O Conselho das Confederações Empresariais pediu um parecer ao professor Pedro Romano Martinez e são precisos 23 deputados para fazer acionar o pedido.
Usando uma expressão do Presidente da República, acha que é operacional o IVA zero? É fiscalizável?
É uma medida que tem algum impacto, quer em termos de opinião pública, quer em alguns descontos que são úteis. Faz alguma pressão sobre o comércio para ter atenção à temática dos preços. Agora, é dificilmente fiscalizável no sentido de manter os preços estáveis, porque o IVA é uma das componentes do preço, mas muitos destes produtos têm nível baixo e há outros fatores de produção que evoluem. Por isso é que nós sempre defendemos junto do Governo que devia tentar-se acordar que as empresas não aumentassem as margens de comercialização, porque, naturalmente, se outros fatores de produção aumentarem, elas vão ter que refletir.
É possível as pequenas lojas e as mercearias adaptarem-se à mudança nos preços? Acha que na prática não vai acontecer nada?
Em Portugal existem, neste momento, 14 mil operadores independentes de pequena e média dimensão. As associações que agrupam esse setor comprometeram-se a incentivar a que isso seja praticado. O mercado português é bastante concentrado. Tem dois operadores que fazem quase 60% e seis operadores que fazem 80% e por isso esse tipo de estabelecimentos, apesar de representarem 15 a 20% do mercado, não tem peso negocial.
A medida vai durar para lá de outubro? O que é que antevê?
Não sabemos se a inflação terá tendência a baixar, se baixará muito, se baixará pouco. Para além disso, também tem a ver com a disponibilidade que o Governo tem de investir nessas áreas e, nomeadamente, apoiar a produção agrícola, porque é um dos fatores de produção que pode determinar o custo do preço final dos produtos.
Falou-se muito das negociações entre o Governo, a negociação tripartida entre o Governo, a distribuição e a produção. Onde é que ficaram aqui o comércio e os serviços? Foram tidos e achados nestas negociações?
Nós participamos através da plataforma de acompanhamento do sector alimentar, onde estão representadas quer a indústria quer as diversas áreas do comércio, assim como diversas áreas agrícolas. A negociação final foi feita diretamente com os grandes operadores.
Para si, fica claro quem é que fiscaliza o cumprimento deste IVA zero?
Essa é uma dificuldade real porque as margens médias finais que todos os operadores têm são uma média entre o preço normal, o preço em promoção, o preço em grande promoção. Há sempre aqui uma zona bastante fluida. No entanto, pelo menos, da parte dos grandes operadores, acho que, se se comprometeram, é também a sua imagem em termos reputacionais que fica posta em causa se houver muitos incidentes.
O programa Mais Habitação é aprovado esta semana. Há imóveis que, segundo este pacote, estão atualmente destinados a atividades comerciais que vão poder ser convertidos facilmente em habitação. Qual é a posição da Confederação sobre isso?
Essa é uma medida marginal. Sobre habitação, defendemos que deve haver, como em vários países da Europa, uma lei do arrendamento comercial ou empresarial. Todas as medidas que têm a ver com com despejos, com cessação de contratos por obras, por remodelações, no caso do comércio, têm que ter em conta duas vertentes: investimentos físicos, como o frio na restauração, e mudanças devido a encerramento de edifícios, etc. Em termos de indemnizações, tem que haver especificidades como existem em vários países. É um tema que queremos introduzir. Já tivemos um projeto de lei mas, com as mudanças dos governos, ficou pelo caminho.
"IVA zero tem algum impacto na opinião pública e em alguns descontos que são úteis. Agora, é dificilmente fiscalizável "
Queria retomar a discussão sobre essa legislação?
Sim e, por outro lado, também há a questão do alojamento local.
É o grande sacrificado?
É, é o grande sacrificado. Deve-se respeitar aquilo que foi autorizado e o alojamento local pode, em particular nas zonas do interior, ter um papel muito importante na dinamização e no povoamento do interior. A medida foi excessivamente radical.
A medida ainda pode ser mudada até à aprovação final?
Acho que sim. Todo este programa foi um programa para provocar impacto mediático. Em Portugal, há um problema claro de oferta [de habitação] e se não se atuar sobre a oferta, não se resolve. E as medidas do Governo atuam pouco em termos de oferta. Se não se aumentar a oferta, os preços não baixam. Não vale a pena ter ilusões. O programa, no seu conjunto, é excessivamente superficial, não vai resolver a questão.
Algumas medidas são positivas e são aproveitáveis, mas são claramente pouco ambiciosas em relação à situação global do mercado. Aliás, isso corresponde a uma das críticas que nós fazemos ao Governo. O Governo, que é um Governo de uma legislatura, por vezes, reage no dia a dia com medidas conjunturais. Não é que sejam negativas mas, ao fim de todos estes anos, não há uma visão estratégica e nem parece um Governo que tem uma maioria absoluta.
Sobre o acordo de rendimentos que foi assinado no ano passado, a UGT já veio admitir acionar a cláusula de salvaguarda deste acordo e pedir a revisão antes de outubro, que é o que está previsto. Faz sentido uma revisão antes do tempo, por exemplo, na sequência do aumento intercalar dos salários que o governo agora prevê em 1% para os funcionários públicos e a nova estimativa de inflação por parte do Banco de Portugal, agora fixada nos 5,5%?
Globalmente, ainda é cedo para se fazer um balanço. Se for reaberta a discussão, nós vamos à discussão, mas temos que garantir que a discussão tem que ser alargada, não pode ser só sobre temas salariais. Nesse sentido, tem que ser reaberta a discussão em relação à reorganização do tempo de trabalho.
"O PRR tem estado em ponto morto, vamos ver se arranca agora "
Está a falar dos horários dos estabelecimentos comerciais ao fim de semana?
Podem ser perfeitamente discutidos os horários, os bancos de horas, as horas extraordinárias. Se se reabre, discute-se tudo.
Incluindo política fiscal?
A política fiscal que está neste acordo de rendimentos não é o ponto forte. Estamos mais preocupados com tudo o que tem a ver com a organização do tempo de trabalho, com a organização das empresas, com a proibição de 'outsourcing'. Julgamos que é inconstitucional. O Conselho das Confederações Empresariais pediu um parecer ao professor Pedro Romano Martinez e serão contactados os grupos parlamentares, já que para nós foi uma desilusão a posição do Presidente da República...
... ao promulgar a Agenda do Trabalho Digno.
Exatamente. Contactaremos todos os grupos parlamentares. A fiscalização sucessiva de constitucionalidade pode ser pedida por 10% dos deputados, ou seja, 23. Iremos ver se há recetividade ou não para assinar um pedido de fiscalização sucessiva.
Com o brilharete nas contas públicas e com a atual receita fiscal, espera um acordo no futuro sobre a redução transversal do IRS?
Somos favoráveis à baixa do IRC, mas temos centrado a nossa prioridade em termos de baixa da tributações autónomas. O ministro da Economia, nesta área, não se tem posto muita resistência, isto é das Finanças.
O Ministério das Finanças é uma força de bloqueio?
O Ministério das Finanças tem que ser um contraponto em relação aos outros ministérios. É o primeiro-ministro que tem que arbitrar isso.
Tem saudades do anterior ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, no sentido em que teria mais peso no Governo do que o atual?
Nós não fulanizamos. Para nós, é a política do Governo. Há ministros que, pela sua postura e maneira de ser, facilitam...
E pela orgânica do Governo. Pedro Siza Vieira era o número dois.
Sim. Sob esse contexto, a Economia perdeu peso político.
Teve uma reunião da Concertação Social esta quarta-feira. Como é que correu?
Voltámos a mostrar claramente a nossa preocupação quanto ao ritmo de execução dos fundos europeus. Temos a sensação que toda a temática de fundos europeus está num ritmo muito, muito aquém do necessário. Diria que o PRR tem estado em ponto morto. vamos ver se arranca agora, e o Portugal 2030 nem sequer ligou o motor.
Esse retrato é dramático.
É. Da parte de muitos organismos há boa vontade, mas não há capacidade técnica, há falta de quadros qualificados, há concursos que ficam vazios porque estão desfasados da realidade nos custos e nos preços, nomeadamente, na construção. Temos uma sensação de falta de eficácia, uma incapacidade de resolver estes problemas e isso é uma questão grave.
"Há um problema claro de oferta [de habitação] e se não se atuar sobre a oferta, não se resolve. E as medidas do Governo atuam pouco em termos de oferta "
Mas o problema está onde? A culpa é de quem?
Não estou sempre à procura do culpado. O que sucede é que, neste momento, o Estado não tem quadros qualificados à medida que se vão reformando. Há falta de gabinetes técnicos.
Para a apreciação das candidaturas?
Das candidaturas, para fazer os regulamentos. No PRR, tudo o que tenha a ver com os bairros digitais, houve um concurso há um ano e ainda não começou, nos aceleradores digitais ainda não há regulamentos. Neste momento, há, de facto, uma certa incapacidade. É um problema que o Governo tem que resolver. Há outra questão de fundo, que é uma crítica que temos feito a todos os governos: em Portugal chama-se taxas de execução a se se gastou ou não o dinheiro e não a uma avaliação qualitativa, se esse dinheiro teve eficácia na economia.
Isso ninguém mede?
As medições têm sido nulas ou fraquíssimas. Gastou-se, ao longo dos anos, centenas de milhões de euros. Teve efeitos positivos numa série de áreas, mas não permitiu a Portugal dar o salto qualitativo.
A perceção da CCP é que a estabilidade política está em causa ou que a maioria absoluta garante que isto chega até 2026?
Os empresários gostam muitos de duas coisas: estabilidade e previsibilidade. A maioria absoluta deu-nos inicialmente uma ideia que estas duas questões estariam garantidas por uma legislatura. Infelizmente, por razões internas ao Governo, já se verificou que houve bastante turbulência.
A contestação social a que temos assistido em França não é comparada com aquilo que se passa em Portugal. Acha que é uma questão de tempo até começar a haver um protesto mais musculado?
Os países têm histórias diferentes, características diferentes. A perturbação que está a haver neste momento em França é por um tema que em Portugal foi resolvido pacificamente: a idade da reforma.
E cá, não é preciso voltar a olhar para a sustentabilidade da Segurança Social?
É, aliás, a CCP levantou essa área, fez até várias conferências. Estamos convencidos que tem que se arranjar novas fontes de financiamento. Deve ser analisado em profundidade e fazer um financiamento misto que entra em conta não só com os trabalhadores, mas também com o valor acrescentado líquido. É evidente que o aumento da esperança média de vida obrigará a subir a idade da reforma e a arranjar outras fontes de financiamento. A esperança média de vida hoje está 20 anos para além da idade de reforma.