04 nov, 2022 - 07:01 • João Carlos Malta
Krzemo e Agata sempre trabalharam de alguma forma através da internet e com a internet. Para este casal de polacos, a ideia de trabalhar de forma remota fermentou durante 15 anos, mas a decisão de rumar a Portugal aconteceu apenas no ano passado. No menu da escolha estiveram os ingredientes habituais: a comida, o sol e a hospitalidade.
E os impostos mais baixos que o novo visto criado pelo Governo traz para quem ganha mais de 2.800 euros brutos? “Isso não teve peso. Para quem gere uma empresa, como nós, se a escolha fosse pelos impostos havia soluções melhores”, explica à Renascença Krzemo Karpinski, numa pausa durante a visita à Web Summit.
Para o casal, Portugal foi uma escolha óbvia, mas nada teve a ver com questões fiscais. “Não é a primeira coisa que se analisa quando se pensa em mudar”, afiança. Tinham estado no país um par de vezes, e tinham gostado muito. Experimentaram ficar um inverno inteiro e tornaram-se fãs.
A escolha pela localidade algarvia foi fruto do acaso. Olharam para o mapa, e queriam uma cidade pequena que garantisse que, nos meses de frio, tinham algo para fazer. Lagos pareceu a opção perfeita, e foi mesmo a opção perfeita. “Há algo de mágico neste sítio, e não somos os únicos que o dizemos.”
Este sentimento de pertença a uma comunidade que ganhou raízes no sul, segundo Karpinski, foi-se criando em pequenas histórias como aquela que recorda de quando chegou a Lagos e, numa das primeiras reuniões do grupo de nómadas digitais da cidade, disse que ia ficar um mês. Os outros que estavam na sala riram-se.
“Disseram-nos que no ano passado, quando tinham chegado, diziam que ficavam 15 dias e já estavam há um ano no Algarve”, lembra.
Agora, Krzemo e Agata já planeiam viver seis meses em Lagos e seis meses em Varsóvia, na Polónia, de onde são originários. Pelo meio, não excluem a possibilidade de passar umas temporadas nos Açores e na Madeira. Um nómada digital costuma ficar entre três e nove meses no mesmo sítio.
“Isso não teve peso. Para quem gere uma empresa, como nós, se a escolha fosse pelos impostos havia soluções melhores”, Krezemo Karpinski, nómada digital.
Sentem-se felizes com este modo de vida, que lhes permite continuar a dar asas à 4DMIND, a empresa que lideram e que se dedica à produção de sites e aplicações.
Regressando ao tema do novo visto para nómadas digitais, Krzemo confessa que a início até lhe pareceu uma ideia apelativa, mas agora vê-a sobretudo como algo que pode entusiasmar as pessoas ligadas às criptomoedas, ou a alguém que está a pensar em reformar-se.
“Na minha opinião este programa devia ser também para os portugueses, que deviam ter os mesmos benefícios dos nómadas digitais.”
As críticas que este programa gera entre os jovens portugueses são inteiramente compreendidas por este polaco de 43 anos, que defende que o instrumento revela “política de vistas curtas”, de quem apenas olha para o curto prazo e somente “para quem traz e gasta dinheiro”.
“Ao falar com os jovens portugueses percebemos que como estrangeiros somos privilegiados, e não devia ser assim”, considera Krzemo.
A secretária de Estado do Turismo, Rita Marques, vai falar sobre o tema dos nómadas digitais esta sexta-feira, no último dia da Web Summit, mas antes concordou em falar sobre o assunto com a Renascença.
Durante a conversa considerou que, relativamente ao visto, não há espaço para falar de desigualdade de tratamento entre portugueses e estrangeiros. “Não vejo aqui uma situação de desigualdade fiscal entre quem trabalha em Portugal e quem vem de fora”, começa por dizer.
“Acima de tudo, aquilo que está a ser feito é para criar melhores condições para todos nós portugueses. Porque o facto de estes nómadas digitais virem para Portugal faz deles excelentes embaixadores do nosso país e, portanto, acabam por ser consumidores adicionais, turistas adicionais, investidores adicionais.”
"Não vejo nenhuma desigualdade. Aquilo que está a ser feito é criar melhores condições para todos nós portugueses", Rita Marques, secretária de Estado do Turismo.
Rita Marques afiança que “não os teríamos se não tivéssemos este visto também”. Por tudo isto, frisa que a “política fiscal serve justamente para incentivar alguns comportamentos”.
“Neste caso, estamos a falar de facto de condições interessantes a nível fiscal. Mas os benefícios que decorrem da sua instalação cá em Portugal superam largamente os benefícios fiscais que estamos a ceder”, conclui.
A questão está longe de ser consensual. Na Web Summit, a decorrer em Lisboa, outros nómadas digitais parecem não achar a ideia do visto extraordinária. É o caso de uma jovem portuguesa, de 30 anos, natural do Porto.
Para Francisca Cruz, a pandemia deu um empurrão definitivo a uma mudança que de certa forma já queria. A multinacional ligada ao setor do Turismo para a qual trabalhava fechou, e ela quis dar outro rumo à sua vida. Não queria ser controlada. Não queria sentir que lhe seguiam os passos a cada hora do dia. Queria ter liberdade. Conseguiu-a na Remote, uma empresa ligada a soluções de recursos humanos à escala global.
Em dezembro do ano passado, decidiu fazer do mundo a sua morada habitual. Seguiu para a América Latina, onde passou o inverno. Costuma estar pelo menos dois meses em cada país. No verão regressou à Europa, por onde andou de co-living em co-living (espaços onde encontra outros trabalhadores remotos). Depois destes dias em Lisboa para a maior feira global de tecnologia, Francisca quer voltar à America Latina.
Não pensa mudar de vida em breve, porque poder viajar de forma alargada enquanto trabalha trouxe-lhe felicidade.
Em relação à recente política de Portugal para atrair nómadas digitais classifica-a de “agridoce”.
Concede que “é uma coisa super importante, e eu adoro que haja esse tipo de iniciativas, não só do Governo português, mas de outros países, que permitem aos nómadas digitais terem outras condições”. Mas “por outro lado, acho que é muito importante, como nómada digital, perceber a responsabilidade que se tem quando se vai para outro país, porque eu, por exemplo, em Portugal, sei que não tenho o mesmo poder de compra do que um nómada digital que venha de outro país.”
Por essa razão, percebe as críticas dos jovens portugueses ao programa para atrair nómadas digitais ao país. “Apesar de ser um estilo de vida que eu pratico e que às vezes é vantajoso para mim, concordo que realmente não está bem. Há uma desigualdade muito grande e nós sentimos cada vez mais em Portugal que não temos o mesmo poder de compra, nem as mesmas condições de vida, que o estrangeiro tem”, lamenta.
Entre a Altice Arena e a FIL, encontramos Joana Glória que, no Algarve, criou uma das mais vibrantes comunidades de nómadas digitais, a Lagos Digital Nomads. Começou apenas por ser intermediária entre quem chegava de computador às costas e os operadores imobiliários locais, para que estes encontrassem casa.
"Em Portugal, sei que não tenho o mesmo poder de compra do que um nómada digital que venha de outro país." Francisca, nómada digital.
Tinha dois hostels e os conhecimentos para o fazer. Mas a pandemia, e a chegada em massa de mais e mais pessoas que queriam desfrutar da qualidade de vida do Algarve, fê-la perceber que havia um negócio para explorar.
Seguiram-se workshops, festas, sessões de mentoring, meet-ups na rua, sugestões de espaços de co-working e a ligação a restaurantes. Tudo o que promova a integração e interatividade da comunidade.
Uma cria turbinas eólicas para as cidades, outra m(...)
A experiência dá-lhe autoridade para falar sobre o que pensam os nómadas digitais das recentes medidas do Governo. À pergunta sobre se são os benefícios nos impostos que os fazem escolher Portugal, é categórica na resposta: “Não são incentivos fiscais que atraem mais pessoas para Portugal”.
“O que nós precisávamos era que mais entidades públicas investissem em campanhas, em publicidade, em infraestruturas para termos melhores condições para os receber. Porque eles já estavam cá, e não era por causa deste novo visto”, garante.
“Não é esta taxa fixa de 20% que vai atrair pessoas a quererem trabalhar em Portugal”, sublinha, garantindo que se fosse por isso, optariam pela Estónia ou por Malta, onde os impostos são mais baixos.
Segundo dados da InvestPorto (plataforma de investimento da Câmara do Porto), publicados pelo Expresso no início de outubro, o total de chegadas de nómadas digitais este ano será de 145 mil em Lisboa e de 40 mil no Porto -- números que representam um crescimento, em comparação com 2021, na ordem dos 95% para Lisboa e dos 129% para o Porto.
Calcula-se que haja, em todo o mundo, uma comunidade de 35 milhões de nómadas digitais. E a capital portuguesa já surge no topo dos melhores destinos, nas listas da plataforma InstantOffices e nas votações da comunidade NomadList.
A chegada de tantos em tão pouco tempo cria uma pressão no acesso à habitação. Em Lisboa, o vereador com o pelouro da Economia, Diogo Moura, começa por relativizar e afirmar que “nós temos de perceber que o mercado imobiliário está em constante dinâmica e transformação”.
Moura soma a este fenómeno o impacto do turismo regular e a imigração qualificada, que vão “mudando os preços do mercado”.
"Não é esta taxa fixa de 20% que vai atrair pessoas a querer trabalhar para Portugal", afirma Joana Glória, fundadora do Lagos Digital Nomads.
Para ajudar a atenuar os efeitos da disrupção, Diogo Moura tem para apresentar “não só as residências para estudantes, mas também os programas de renda acessível”.
Olha para as medidas restritivas que foram criadas no alojamento local para controlar o disseminar de espaços pela cidade e promete ir monitorizando o que se passa, para poderem atuar no caso de um excessivo peso de nómadas digitais na habitação da capital.
No entanto, o vereador justifica que o raio de ação da autarquia não é grande, e que muitas das políticas públicas para poder minorar os impactos do aquecimento do mercado imobiliário são do Estado central. “Eu acho que é necessário fazer esse equilíbrio, e ele tem de ser encontrado pelo Governo”, afirma.
A secretária de Estado do Turismo, Rita Marques, não foge ao temae diz que a estratégia de atração de nómadas digitais “tem de passar naturalmente por uma dispersão dos mesmos no território nacional”.
"A política fiscal faz-se para incentivar alguns comportamentos. Os benifícios que temos com a sua instalação cá, superam largamente os benefícios fiscais que estamos a dar", Rita Marques, secretária de Estado do Turismo.
O Governo sabe que Lisboa, o Porto, e a Madeira têm suscitado especial interesse por parte destes novos povoadores. Rita Marques assinala, no entanto, que há que fazer um esforço no sentido de evidenciar vantagens para se poderem instalar noutras zonas do país, “designadamente as menos litorais”.
Diz que esse esforço está a ser feito também pelo Turismo de Portugal. “Temos vindo justamente a trabalhar várias campanhas de promoção para instigar a descoberta das nossas aldeias, as nossas vilas e havendo aqui infraestruturação tecnológica de excelência em muitos destes sítios, entendemos que há condições para acolher lá os nómadas digitais”.
Questionada sobre o porquê de os incentivos à fixação de pessoas que escolheram esta forma para trabalhar não se centrarem nas zonas menos densamente povoadas, Rita Marques não exclui a possibilidade de haver ajustamentos no programa.
“Não está fora de hipótese fazê-lo. Nós, neste momento, estamos numa primeira abordagem ao desafio. O Governo está sempre disponível para analisar e para verificar o que se pode melhorar. Podemos até corrigir em função do apetite que estes vistos possam suscitar junto dos interessados e, portanto, vamos caminhando.”
Joana Glória, que todos os dias promove a região do Algarve como o destino ideal para os nómadas, é ela também, aos 32 anos, uma jovem que se depara no dia-a-dia com o aumento do preço das casas. O paradoxo leva-a a assumir que durante uma semana andou a lidar mal com a situação. Mas teve de seguir em frente.
“Não me posso sentir minimamente culpada, porque a culpa não é minha, a culpa é do Governo e eles é que têm de tomar medidas para que os portugueses vivam com qualidade.”
Francisca Cruz, que não vive em Portugal há um ano, não deixa de se condoer com os preços das casas no país.
“Na habitação é uma coisa que se sente imenso. E por isso concordo, apesar de perceber a perspetiva de quem vem aproveitar essas condições, porque eu estou a fazer exatamente o mesmo. Daí dizer que quem pratica este estilo de vida e o mundo digital deveria ter uma consciência do que é que as suas decisões estão a implicar naquele país e deveria atuar de maneira a que conseguisse balançar o que se quer fazer com o mercado onde estamos inseridos”, explica.
Joana Glória diz que a sua experiência demonstra que há na comunidade essa vontade de devolver o que lhes é dado. Há quem se tente integrar um pouco mais com a cultura, tente conhecer alguns locais, e perceber como é que as pessoas vivem.
“Alguns procuram fazer voluntariado com crianças ou com idosos. Há ainda os que vão limpar as praias. Eles sabem que vêm para Portugal, que nós lhes damos muito, mas eles também gostam de dar. E é o que acontece nos workshops também. Eles gostam de poder contribuir para a comunidade local”, afiança.
Geração Z
É o retrato por Daniel Carapau, dirigente da Assoc(...)
Para Joana, a estadia destas pessoas em cidades mais pequenas de Portugal devia ser aproveitada por quem lá mora para participar nas atividades que são feitas, a maior parte gratuita, e em que conhecimento das mais diversas áreas do saber é partilhado. “Infelizmente isso não acontece muito”, lamenta.
O vereador da Economia da autarquia de Lisboa, Diogo Moura, traz o mesmo testemunho. “São pessoas que têm habilitações académicas elevadas, mas querem sempre partilhar o seu know-how connosco, com as nossas empresas, e acabam por entrar no ecossistema empreendedor da cidade”, analisa.
Entre custos e benefícios, o programa de atração de nómadas digitais está para ficar. É o que se depreende das palavras do primeiro-ministro, António Costa, que na Web Summit o defendeu, ao mesmo tempo que admitiu o fim dos vistos Gold, dizendo que “provavelmente já cumpriu a função que tinha a cumprir”.
"Podemos corrigir o programa mediante o apetite que ele suscistar nos nómadas digitais", Rita Marques, secretária de Estado do Turismo.
E se Costa fugiu às questões de possível desigualdade que o programa cria entre quem está e quem vem no pagamento de impostos, com um conjunto de programas criados para os jovens como o IRS Jovem, ou o programa Regressar, Fernando Medina, numa entrevista ao Expresso em outubro, foi direto ao assunto.
Conrontado com a pergunta sobre as diferenças e desequilíbrios no regime de residentes não habituais, o ministro das Finanças respondeu:
“Portugal não pode desperdiçar nenhum elemento de competitividade na capacidade de atrair capital, capacidade produtiva, quadros qualificados, rendimento. Sou defensor de que houvesse, a nível europeu, uma harmonização fiscal muito mais avançada. Defendo, aliás, a rápida aprovação da proposta que estabelece a tributação mínima de 15%. Mas esta realidade ainda não existe. E Portugal não deve ficar numa situação de desvantagem.”
O primeiro-ministro diz que, "provavelmente", o re(...)