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Entrevista

Negócio bilionário "nas sombras". "Reguladores europeus não estão em lado nenhum quando se trata de matérias-primas"

03 out, 2022 - 07:00 • Sandra Afonso

Vendedores de "commodities" "não querem saber de política, fazem negócios com ditadores de direita e de esquerda". A única cor que lhes interessa é o verde das notas de dólar, afirma à Renascença Javier Blas, coautor do livro "O Mundo à Venda".

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Negócio bilionário "nas sombras". "Reguladores europeus não estão em lado nenhum quando se trata de matérias-primas"

São bilionários, muito poucos, desconhecidos do público e repartem entre si o mercado global das matérias-primas. São eles que compram a quem produz e entregam a quem tem dinheiro para comprar. Contornam sanções, ditaduras e todo o tipo de obstáculos. Não fixam preços, mas ganham com as subidas e descidas, e negoceiam à margem do radar dos reguladores. São as empresas que abastecem o mundo de energia, alimentos e metais.

Em entrevista à Renascença, Javier Blas, jornalista da Bloomberg e um dos autores de “O Mundo à Venda” (Ed Casa das Letras), explica como se mantêm estas empresas na sombra e como acumulam milhares de milhões sem fazer disparar os alarmes dos reguladores e políticos.

De passagem por Lisboa, este investigador, que segue o mercado das matérias-primas há duas décadas, aponta o dedo sobretudo às autoridades europeias, que nem fiscalizam nem regulam. Um trabalho que está a ser feito pelos norte-americanos.

As sanções nunca impediram estas empresas de negociar, nem no passado nem hoje, exemplo disso são as mercadorias que continuam a sair da Rússia.

A pandemia, a guerra na Ucrânia e a inflação mostraram como o mundo está dependente das matérias-primas. Neste livro mostram o pouco que sabemos sobre este negócio. Como é possível que recursos essenciais sejam distribuídos por um número limitado de pessoas e com tanto sigilo?

É absolutamente surpreendente que ao longo dos anos ninguém tenha sabido quase nada sobre os comerciantes de "commodities", as empresas que compram e vendem matérias-primas em todo o mundo, o que na economia global é absolutamente essencial.

E eles conseguiram porque é difícil saber coisas sobre eles, essas empresas fazem muito para manter os negócios em segredo, não divulgam muita informação, são propriedade privada não cotada em bolsa, por isso não têm obrigação de divulgar informação.

Por outro lado, muitos governos não fizeram realmente as perguntas certas. Ao fim de contas, o problema é que nós, os consumidores, e nós os governos da Europa e dos Estados Unidos não fizemos as perguntas a essas empresas.

Que empresas são estas?

São empresas como a Glencore, Cargill, Trafigura, Vitol. São as maiores negociantes de matérias-primas do mundo. O negócio delas é comprar aos países produtores e enviar a mercadoria através do alto mar para os centros consumidores da Europa e da América.

Que tipo de produtos negoceiam e até onde vão para os comprar?

Eles são os maiores compradores e vendedores de petróleo, de metais, de produtos agrícolas. E compram a países produtores como Nigéria, Angola, Brasil, Rússia, Arábia Saudita.

O modelo de negócios é muito simples. Comprar os produtos físicos, as cargas reais, um navio-tanque cheio de petróleo bruto, alguns contentores cheios de fio de cobre, um comboio carregado de trigo e transportá-los do centro de produção até aos centros de consumo.

Para estes intermediários, tudo é uma oportunidade de negócio. Eles negociam com todos os tipos de regimes e em todos os cenários, até conflitos armados. Há vários exemplos no livro, pode exemplificar?

Para os comerciantes de “commodities”, qualquer situação de perigo é vista como lucro potencial. Talvez, surpreendentemente, eles veem uma guerra civil como uma oportunidade de negócios. Fui repórter em conflitos armados, em guerras no Iraque e na Líbia, e assisti a executivos destas empresas a negociar lá.

Eles não querem saber de política, fazem negócios com ditadores de direita e com ditadores de esquerda. Um executivo da indústria disse-me uma vez que não se importava se negociava com os vermelhos ou os azuis, a única cor que lhe interessava era o verde das notas de dólar.

Ao longo dos anos ajudaram Fidel Castro a trocar charutos cubanos por petróleo no mercado internacional, ajudaram Saddam Hussein a contornar o embargo da ONU, também mantiveram o regime do “apartheid” da África do Sul a obter “commodities”, particularmente petróleo, ultrapassando o embargo europeu e americano. Ajudaram ainda Augusto Pinochet, do Chile, a vender o cobre no mercado internacional. Esquerda, direita, guerras civis, tudo é lucro e negócios.

"Os comerciantes de 'commodities' têm sido cruciais para apoiar o regime de Putin"

Não mencionou Putin, mas ele também é uma peça deste jogo.

Os comerciantes de “commodities” têm sido cruciais para apoiar o regime de Vladimir Putin, particularmente desde a invasão da Crimeia, em 2014, e a imposição da primeira sanção séria contra a Rússia, há menos de dez anos.

Estes negociantes desempenham um papel muito importante na continuidade da movimentação das matérias-primas russas para o mercado internacional, fornecendo financiamento às empresas russas quando os bancos internacionais deixam de fazer negócios com a Rússia.

Um papel que continuam a desempenhar?

Ainda hoje, continuam a movimentar as “commodities” russas para o mercado internacional. Tudo legal, porque as sanções, particularmente as europeias, foram anunciadas, mas ainda não são eficazes. Uma empresa pode importar petróleo russo para a Europa até dezembro e diesel russo até fevereiro. Os negociantes de matérias-primas têm aproveitado a oportunidade para continuar a negociar com Vladimir Putin.

Qual tem sido o papel ou contribuição destas empresas, especificamente, na guerra na Ucrânia?

Eles compram “commodities” russas, Moscovo é um dos maiores produtores mundiais de muitas matérias-primas e está entre os cinco maiores em muitos deles, mas é, particularmente, um grande produtor de petróleo, produtos refinados, gás, trigo, alumínio, níquel. Nestes mercados a Rússia está entre os maiores produtores do mundo e os comerciantes de commodities compram estas matérias-primas que enviam depois, financiam as operações e colocam os produtos no mercado internacional.

Encontram compradores interessados. Quando a União Europeia reduziu a quantidade de crude que comprava à Rússia eles encontraram novos clientes na Índia, que passou de comprador marginal, com uma aquisição diária de cerca de 100 mil barris de petróleo, para os atuais mais de 800 mil barris diários, oito vezes mais no espaço de três meses.


Também movimentam estas matérias-primas, mesmo quando não o podem fazer?

Já assistimos a isso, em alguns casos, na história. Não digo que esteja a acontecer atualmente, na Rússia, até porque hoje é legal. Mas, em alguns casos, comerciantes de “commodities” ajudaram ditadores a evitar embargos e sanções para as Nações Unidas. Aconteceu durante várias décadas, por exemplo, com Saddam Hussein. Os comerciantes de “commodities” ajudaram Saddam a vender petróleo ilegalmente no mercado internacional.

E onde estavam os reguladores e os políticos? Ninguém viu, ninguém vê? O que se passa?

Os reguladores europeus não estão em lugar nenhum quando se trata da negociação de matérias-primas. Não é que não estejam a regular o setor, que estão, mas não estão atentos, eles ainda têm de descobrir o que está a acontecer realmente no comércio das matérias-primas para começarem a regular. Ainda estamos nessa primeira fase.

Até agora, é apenas o Departamento de Justiça dos Estados Unidos que está a usar o dólar como ferramenta, como alavanca para regular alguns dos piores casos de acidentes na negociação de “commodities”, já depois de cometido o delito.

E, recentemente, vimos algumas grandes empresas desta área a admitir o pagamento de subornos e lavagem de dinheiro, porque o Departamento de Justiça dos EUA descobriu esses casos.


"Os americanos estão a incriminar empresas europeias por irregularidades em África, na América Latina, por pagarem subornos durante muitos anos. Onde andam os governos europeus?"

Eles estão a seguir o dinheiro?

Sim. Os americanos estão a usar o dólar e a seguir o dinheiro. Mas é muito interessante. Estão a incriminar empresas europeias por irregularidades em África, na América Latina, por pagarem subornos durante muitos e muitos anos. Onde andam os governos europeus? São empresas sediadas na Europa, com sede em Londres, na Suíça. Onde estão os britânicos, onde estão os suíços, onde estão as autoridades da União Europeia? Porque são os norte-americanos que andam a apanhar empresas sediadas aqui na Europa?

E não estão a chegar ao objetivo, que são essas grandes empresas que dominam o mercado das matérias-primas?

O principal problema é que algumas das sanções que temos aplicado, algumas das penalidades pagas pelas empresas, são muito pequenas.

A Vitol, por exemplo, admitiu ter subornado funcionários em três países latino-americanos por mais de uma década, e continuou a fazê-lo até julho de 2020. A pena total foi de cerca de 300 milhões de dólares (309M€). Os lucros da Vitol no primeiro semestre de 2022 são de 4,5 mil milhões de dólares (4,6MM€). As penalidades são pequenas, são mais uma despesa na maneira de fazer negócios.

Até que os governos fiquem um pouco mais sérios, esta forma de fazer negócios vai continuar, porque a dissuasão simplesmente não existe.

Também há subornos na Europa?

Não sabemos. Não encontrámos nenhum caso. Temos ouvido de executivos, já na reforma, que nos anos 90 pagavam subornos também aqui na Europa. Isso continua? Iria surpreender-me. Mas, pode acontecer? Sim.

Estas empresas têm contacto, ligações com políticos? São profundas?

Vimos isso em alguns dos casos descobertos pelo Departamento de Justiça, estão descritos no livro. Subornavam políticos locais ou executivos de empresas públicas, em alguns casos eram parentes de políticos, executivos de companhias petrolíferas estatais ou públicas. Não vimos exemplos fora da América Latina ou de África.

Não podemos também esquecer que a par do comportamento ilegal a que assistimos é necessário um grande negócio jurídico. É preciso um comerciante de matérias-primas que movimente a mercadoria, do ponto A para o ponto B.


Estas pessoas e empresas que negoceiam com matérias-primas ganham mais do que as grandes multinacionais?

São grandes empresas em termos de lucros. Estamos a falar de empresas que fazem milhares de milhões de dólares em lucros, todos os anos. Não era o caso há 20 ou 30 anos, mas agora existem grandes empresas, extremamente lucrativas e detidas apenas por poucos indivíduos.

A maioria dessas empresas não está listada na bolsa de valores, ainda são propriedade de uma ou duas famílias, que controlam o negócio, ou são os executivos que dirigem as empresas que são os donos da empresa. São muito rentáveis.

Simplesmente, por motivos que realmente nos escapam, conseguiram manter o negócio nas sombras. Ninguém ouviu falar deles. Como é possível que muito poucas pessoas conheçam o maior negociante de petróleo do mundo, uma empresa que acumula todos os anos mais de 4 mil milhões de dólares (4.1MM€) de lucros, mais do que algumas das maiores empresas de países como Espanha ou Portugal.

Eles aproveitam eventos concretos, como o crescimento industrial da China. Têm que ter bons relacionamentos com países com posições fortes em organizações como a NATO ou a OMC?

O que temos assistido é que a China tem sido um país muito lucrativo para quem comercializa matérias-primas, devido aos volumes transacionados no país. Há 20 anos, a China importava tanto cobre quanto um pequeno país europeu como a Bélgica. Hoje, a China é metade do mercado global de cobre.

Ter uma grande posição na China é extremamente importante para todas estas empresas, ter boas relações com o governo chinês é importante para elas. Mas já são empresas que estão geralmente próximas do poder, porque "commodities" é sinónimo de dinheiro e dinheiro é sinónimo de poder.

Elas operam em áreas que estão muitas vezes em conflito, por isso tentam ter um bom relacionamento com todos, sejam americanos, europeus, chineses, países produtores no Médio Oriente. Eles tentam ser amigos de todos, porque é uma forma de assegurar os negócios.

"Do que eles realmente gostam é da volatilidade do mercado. Ganharam muito dinheiro nos últimos meses"

Elas poderiam ter um papel nesta crise energética? Podiam mudar as regras do jogo?

Não diria que podem mudar ou criar as regras do jogo. Eu acho que eles beneficiam com o jogo. A perceção popular é que os comerciantes de “commodities” beneficiam com os preços altos. Eles realmente não se importam com o nível de preços. Eles também ganham muito dinheiro quando os preços estão muito baixos.

Do que eles realmente gostam é da volatilidade do mercado, muitos altos e baixos, e o mercado nos últimos meses tem estado altamente volátil o que permitiu que eles ganhassem muito dinheiro.

Concluindo, não diria que eles criam as circunstâncias, mas eles são os melhores a explorar as condições atuais do mercado, como na energia, para ganhar dinheiro.

Mas eles podem alterar o preço?

Não, eles não podem alterar o preço. Eles podem empurrar os preços, por curtos períodos, para cima ou para baixo do que exigem as condições de mercado? Sim, eles podem fazer isso, mas serão apenas alguns dias.

Mas estamos com preços altos há meses, quase um ano, e isso não é responsabilidade destes negociantes de matérias-primas. Eles lucram com esses preços, mas não criam nem distorcem o mercado.

Vão conseguir ficar na sombra por muito mais tempo?

Lentamente, estamos a arrastar as empresas para campo aberto, para a luz. Penso que "O Mundo à Venda", o nosso livro, faz parte desse processo.

Recentemente temos visto muito interesse por parte de reguladores europeus e americanos em torno dos comerciantes de “commodities”. A Reserva Federal dos EUA escreveu um relatório sobre eles, com o Banco da Inglaterra e o Comité de Basileia, um grupo de reguladores.

Mas, tendo em conta o peso económico e empresarial que eles têm, acho que é muito pouco o que temos até agora e surpreende-me que, até a rentabilidade de algumas destas empresas, permaneça em segredo. Algumas nem publicam as contas, não sabemos nada. Quem é exatamente o dono dentro da família? Considerando a importância das empresas, é fascinante o pouco que sabemos!

Partindo dos lucros destas empresas, da mercadoria que movimentam e da pouca regulação a que estão sujeitas, podem ser um risco para a economia e para os investidores?

É um dos últimos refúgios da economia global, após a crise de 2008, que permanece por regular, apesar da enorme importância para os negócios e a economia global. As matérias-primas fazem parte da nova vida diária, se não tivéssemos quem transportasse, comprasse e vendesse e enviasse as mercadorias até às nossas casas, não tomávamos café pela manhã nem tínhamos cereais para o pequeno almoço, não tínhamos gasolina para o carro nem bateria para o telemóvel.

Eles são essenciais e não ter ninguém de olho no que estão a fazer parece-me perigoso. Por isso, é bem-vindo que alguns reguladores europeus comecem a investigar e as autoridades americanas também. Surpreende-me que ninguém esteja a prestar atenção.

É ainda bom para os investidores mais informação. Eles praticamente não estão a colocar dinheiro nestas empresas, mas são afetados pelo que elas fazem, todos são afetados pelo preço do petróleo, pelo preço da eletricidade, pelo preço do cobre, pelo preço do café.

Eles podem iniciar ou influenciar uma recessão, por exemplo?

Não, não acho. Eles não definem os preços, eles tiram proveito deles, não fixam preços.

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