​Entrevista a Ramon O’Callaghan

Líder da Porto Business School defende melhores salários e menos impostos para reter talento

11 jul, 2022 - 22:43 • Sandra Afonso

Em entrevista à Renascença, Ramon O’Callaghan fala sobre os fundos europeus, a inflação, o impacto da subida dos juros, as previsões de recessão e da semana de quatro dias, que pode ser uma "autêntica revolução social e laboral".

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Melhores salários e menos impostos para reter talento. É o que defende Ramon O’Callaghan, "dean" da Porto Business School (PBS), uma das melhores escolas de gestão do país, segundo o “Financial Times”. Esta é ainda a única escola de gestão no Norte a atingir um lugar no cobiçado ranking do jornal britânico.

Em entrevista à Renascença, a primeira de um ciclo a "deans" de escolas nacionais, o líder da PBS fala sobre os fundos europeus, a semana de quatro dias, a inflação e o impacto da subida dos juros.

Admite que podemos estar a caminho de uma nova recessão e defende a diminuição da carga fiscal em Portugal e da subida dos salários, mas como um esforço coletivo e não imediato para reter talento e reforçar o poder de compra da classe média.

Ramon O’Callaghan fala ainda da gestão e do norte empresarial.

A Porto Business School está nos rankings do Financial Times desde 2011. Lidera uma das melhores escolas de gestão do país, mas é a única no Norte, apesar desta ser uma região fortemente empresarial. O Norte fica muitas vezes para trás, como diz o presidente da Câmara do Porto?

O ano de 2020 foi difícil para todos, para Portugal e para o mundo. O Norte manteve um excedente comercial de quatro mil milhões de euros, com uma taxa de cobertura de 128%, enquanto a média nacional ficou nos 79%.

O Norte e as suas empresas caracterizam-se por um forte espírito de resiliência e uma capacidade de reinvenção e de adaptação. O setor têxtil é um exemplo, para fintar a quebra das vendas dedicou-se à produção de máscaras certificadas, conquistando um aumento nas vendas.

É uma região empresarial e, pela sua geografia, está distante do poder central. Se ficamos ou não para trás, esta é uma questão antiga. Mas, o mais importante é que os diversos agentes, empresas, academia, Governo, sejam capazes de antecipar, gerir e ultrapassar os desafios presentes e futuros do mundo em transformação e cada vez mais digital.

Durante muito tempo o ensino e as empresas andaram desencontrados. Esta relação já funciona melhor? Os alunos estão a ser preparados para o mundo do trabalho?

É importante investir na capacitação de competências de gestão. E nesta área, as escolas de negócios nacionais, reconhecidas nacional e internacionalmente, têm um papel fundamental.

A Porto Business School foi criada pelas empresas e para as empresas. Somos uma escola que se distingue pela sua forte componente prática e pela relação próxima com as empresas. A PBS é um parceiro de referência para as empresas responderem aos desafios da capacitação do talento, “upskilling” e “reskilling”.

Criámos programas para que as empresas e os profissionais consigam responder às necessidades de gestão. Estamos comprometidos a apoiar as empresas e preparar os gestores e futuros líderes do país, proporcionando uma oferta formativa adequada às necessidades atuais.

Se queremos implementar melhorias concretas e efetivas nas empresas, potenciando a qualidade de gestão das empresas portuguesas, é essencial investir em formação e no desenvolvimento de competências dos gestores.

Já falou do Governo. Como é a ligação da Porto Business School com o Governo?

Somos uma associação privada, sem fins lucrativos e de utilidade pública. Por isso, não estamos dependentes de financiamentos governamentais. Mas, a nossa relação com o Governo pauta-se pelo padrão que caracteriza a nossa relação com uma comunidade, não com o país. Ou seja, contribuir para uma economia mais forte, mais competitiva, apoiando as empresas e os profissionais na capacitação de competências para gerir, para antecipar, os desafios do mundo em que vivemos.

Uma questão que tem sido muito discutida atualmente, como é que garantimos que o talento não sai do país?

O ponto relevante é o salário. Isto é claro. É importante considerar também a carga fiscal sobre o trabalho, em especial dos jovens talentos e, numa abordagem mais global, também dos salários médios.

O relatório "Deep-dive into the Portuguese tech market", elaborado pela Landing.jobs em parceria com a Volkswagen Digital Solutions, dá conta de um salto remuneratório sem precedentes do chamado talento tecnológico.

Apesar da remuneração elevada, sete em cada dez profissionais consideram mudar de emprego nos próximos três meses. Reter talento é um desafio, mais ainda quando as empresas nacionais têm que competir com empresas estrangeiras.

Outro fator relevante é o regime do trabalho, por exemplo, a possibilidade de trabalhar para uma empresa estrangeira a partir de Portugal permite uma maior flexibilidade aos colaboradores e uma gestão diferente da vida profissional e pessoal e tem um forte impacto na disponibilidade de talentos localmente.

Devia haver um alívio dos impostos?

Deveria, sim.

"A semana de quatro dias pode materializar uma autêntica revolução social e laboral"

O primeiro-ministro quer um aumento de 20% no salário médio nos próximos quatro anos. Não deve começar por dar ele próprio o exemplo?

É meritório lutar para uma maior igualdade salarial para todos. Apesar dos desafios que temos enfrentado, para os próximos anos é necessário um esforço conjunto do Estado, da sociedade e das empresas para que o peso dos salários dos portugueses no PIB seja, pelo menos, semelhante ao da média europeia.

Ou seja, subir dos 45% para os 48%. Isto significa um aumento de 20% no salário médio do nosso país e espero que nos próximos quatro anos esta situação dos aumentos salariais seja concretizada adequadamente.

Se a inflação média anual ficar acima de 6%, todos os portugueses vão perder poder de compra. Os salários deviam subir já?

Desde fevereiro, com a guerra na Ucrânia, a situação agravou-se seriamente, fazendo disparar os preços da energia. Dois terços dos trabalhadores já estavam a perder poder de compra, no primeiro trimestre o salário médio líquido subiu mais de 4%, mas a inflação homóloga já absorveu este aumento porque os preços subiram na mesma proporção.

Este ano, 2022, a perda de poder de compra dos portugueses vai rondar os 3,5%, naquela que é a maior redução desde a troika e uma das maiores nos 33 países da OCDE.

Em Portugal, a inflação muito alta veio confundir as contas, o poder de compra interno, a capacidade das empresas e também começa a causar estragos num país endividado e dependente da importação de energia.

Temos que evitar a espiral inflacionista. Aumentar os salários poderá não ser o caminho para combater a inflação. É difícil para as empresas, em particular para as PME e para as microempresas, acompanhar esta subida de preço.

É necessário um conjunto de medidas complementares e, algumas delas, decorrem no contexto da União Europeia. A compra conjunta de energia, por exemplo, ou a procura de meios alternativos para o fornecimento de energia. É necessário um esforço conjunto do Estado, das empresas e da sociedade.

O aumento dos juros anunciado pelo Banco Central Europeu é suficiente para combater a inflação? Que efeito terá na economia?

A taxa de inflação chegou aos 8%, a mais elevada desde 1993. O Banco Central Europeu admite que a inflação permanecerá elevada durante algum tempo, embora espere uma moderação dos custos da energia e o alívio das perturbações das cadeias de fornecimento, derivadas da pandemia, e a normalização da política monetária, levando ao declínio da inflação.

A pandemia e depois a guerra na Ucrânia, fizeram disparar a inflação e as nossas carteiras já estão a sentir. Para combater a inflação o BCE vai começar a aumentar as taxas de juro em julho e no final do terceiro trimestre deixarão de existir taxas negativas. Temos notícias menos boas para aqueles que têm créditos, com o aumento dos juros, as mensalidades vão encarecer.

A retoma já começou, mas muitos setores queixam-se de falta de mão de obra, uma situação que atinge todo o tipo de qualificações. Esta é também uma responsabilidade das empresas?

A falta de mão de obra é um problema global, sendo a restauração um dos setores mais afetados. A Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal aponta já para a falta de 4.000 profissionais.

Também na construção civil verifica-se a falta de mão e o Sindicato da Construção de Portugal aponta para a falta de 80.000 profissionais no setor. Na distribuição, no sector dos vinhos, o cenário repete-se.

Ainda pelo trabalho. O que pensa da redução do horário semanal para quatro dias?

É uma questão que tem múltiplas dimensões, carece de uma análise profunda para uma implementação consciente e justa. É importante olhar para o quadro geral porque, com a digitalização, a fronteira entre a vida pessoal e a vida profissional está a dissipar-se. Mas, no mundo em que vivemos, e aproveitando as aprendizagens que a pandemia nos trouxe, a semana de quatro dias pode materializar uma autêntica revolução social e laboral.

"Temos que evitar a espiral inflacionista. Aumentar os salários poderá não ser o caminho para combater a inflação"

Portugal vai receber, entretanto, o maior volume de sempre de fundos europeus. Quais são os setores estratégicos para o investimento que garantem que este dinheiro não é desperdiçado?

Já ouvimos falar muito sobre o PRR, o Plano de Recuperação e Resiliência, para retomar o crescimento económico sustentado após a pandemia. De acordo com o Conselho das Finanças Públicas, da verba de 690 milhões de euros, Portugal executou apenas 13% da despesa prevista, em comparação com o ano anterior, o que significa que ainda temos um longo caminho a percorrer.

É importante que estes fundos sejam orientados para o financiamento de projetos altamente inovadores, que visem apoiar a transição climática, por exemplo, através da redução da dependência das energias fósseis, e a transformação da economia nacional numa economia forte, mais competitiva e mais digital.

Portugal também não escapa aos efeitos da guerra na Ucrânia. Já sentimos o aumento do preço dos cereais e da energia. Este conflito tem mais impactos económicos?

O Fundo Monetário Internacional já alertou para os efeitos económicos devastadores desta guerra para o mundo. Estes efeitos podem ser diretos ou indiretos, numa espécie de efeito dominó.

O aumento do preço dos cereais e da energia aumenta ainda mais a pressão inflacionista da retoma pós-pandemia e as disrupções das cadeias mundiais de abastecimento. Este aumento de preços terá impacto em todo o mundo, em particular nos agregados familiares mais pobres.

O FMI alerta também que em muitos países esta crise está a criar um choque na taxa de inflação e na própria atividade económica, em especial nos países que têm uma maior relação comercial com a Rússia e a Ucrânia.

Além de produzirem um terço do trigo e da cevada do mundo, a Ucrânia e a Rússia são grandes exportadores de metais e com a guerra na Ucrânia a União Europeia reduziu a previsão de crescimento de 4% para 2,7%, e aumentou também a sua previsão de inflação. Há uns meses, a previsão de inflação rondava os 3,9%, agora prevê-se uma média de seis a 8%.

Não podemos fazer futurologia e, por isso, não sabemos quanto tempo nem com que gravidade estes efeitos vão continuar a manifestar-se.

Mas podemos estar à beira de uma nova recessão?

Sim. Há muitos observadores internacionais que falam desse cenário como possível, depende de quanto tempo esta situação vai durar, mas ninguém pode antecipar neste momento.

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