Reportagem

Empregadas domésticas e a Covid-19. “A limpeza é agora fundamental, mas o medo de ter pessoas em casa é superior”

01 mai, 2020 - 10:57 • João Carlos Malta

A Renascença foi tentar perceber como o trabalho doméstico se está a adaptar à pandemia, desde as grandes empresas, às pequenas unidades, até à trabalhadora individual. Há situações em que quase nada mudou, há quem tenha ficado sem trabalho, mas também há quem esteja a ver oportunidades. Os especialistas de saúde pública ainda estão reticentes face aos perigos de ter álguem fora do núcleo familiar em casa, e o sindicato fala de um mundo em que os abusos se multiplicam.

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Ana Matias gere a WellClean, empresa de trabalho doméstico e de limpezas, há 12 anos. Passou pelo impacto da crise financeira de 2008, atravessou a gripe das aves, e agora vive o desafio mais difícil de todos, o da Covid-19. “Se passar esta, ultrapasso tudo”, desabafa, entre sorrisos, à Renascença. Ana liderava uma equipa de 14 trabalhadoras que ficou reduzida a quatro, depois de declarado o estado de emergência. E não foi a única a sentir o impacto da quarentena no setor. Os efeitos foram imediatos e vão perdurar no tempo.

A empresária conta que 80% do trabalho daquela pequena empresa da Parede, em Cascais, é doméstico. Não passou muito tempo desde que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, anunciou o estado de emergência, a 16 de março, até ao momento em que o telefone começou a tocar sem parar. A cada chamada, a mesma conversa: mais um cliente a pedir o cancelamento do serviço.

Ainda tentou avisá-los de que podiam contar com segurança e higiene redobradas, ou não fosse esse mesmo o propósito do trabalho que faz. Anunciou que passaria a haver máscaras, novos desinfetantes, luvas e os tapa pés, mas de pouco valeu.

“Apesar disso, o cliente tem medo e eu percebo bem. Eu também digo, muitas vezes, que se pudesse ficar em casa ficaria. Não sabemos nunca onde o apanhamos, e como o apanhamos, quem está e quem não está infetado. Percebo os meus clientes”, repete.

A redução de atividade foi de 80%, e, por isso, teve de pôr 10 trabalhadoras em "lay-off". Espera mais à frente poder retomar à normalidade, mas para já não é isso que se passa. Nem de perto, nem de longe.

Não poderia esta ser uma oportunidade para uma empresa de limpeza, num momento em que esse é um vetor fundamental para ultrapassar a pandemia?

A gestora responde a dois tempos. Primeiro, diz que espera que em maio, com o levantamento de algumas das medidas adotadas na quarentena, uma parte dos clientes possa voltar. Mas logo contraria o otimismo: “Tenho consciência de que nunca mais vai ser o que era, pelo menos até termos uma cura.”

Diz que também pensou que o mercado ia ter uma maior procura do serviço que vende, mas o que tem visto é que, se é verdade, que “a limpeza é agora fundamental, o medo de ter pessoas em casa é superior”.

Maior, mais oportunidades. “Crescer 20% a 30%”

Cândido Mesquita é gestor há 20 anos, 12 deles no setor das limpezas, que conhece como a palma da mão. O negócio cresceu, cresceu e ainda cresceu mais até somar mil trabalhadoras, e o rótulo de líder do setor residencial que coloca como carimbo para atestar a qualidade da House Shine. O grupo nasceu no Porto, mas está espalhado por todo o país em vários pontos de “franchising”.

Tal como na WellClean, o choque com a nova realidade na primeira semana pós-declaração do estado de emergência foi brutal: menos 60%, tanto de clientes como de faturação. Tentou aguentar o barco não despedindo, mas teve de optar por não renovar contratos. Foram 150 a sair, pelo menos para já. Cândido tem, no entanto, planos ambiciosos para o futuro.

Para já fiquemos no passado recente. Os clientes residenciais, a quem fornecem os serviços de empregadas domésticas, valem 70% do trabalho da House Shine. “Apesar das nossas medidas de segurança, as pessoas não sentiram confiança suficiente para manter as limpezas. A travagem foi absolutamente a fundo”, reconhece o gestor.

Isso obrigou a empresa a entrar em "lay-off", mas Cândido olha para o momento que a empresa passa como apenas uma pausa entre o antes e o depois do novo coronavírus. "A nossa expectativa é voltar a empregar estas pessoas rapidamente. Entendemos que isto é uma ponte, apesar de achar que a crise económica que se vai abater é grande.”

O empresário diz que para já a empresa começou a adaptar-se, a começar com alterações drásticas nos sistemas de segurança. “Todas as profissionais trabalham com óculos ou viseira, máscara cirúrgica, luvas e tapa pés. Passámos a usar esses Equipamentos de Proteção Individuais (EPI)”, refere. Também passou a ter comunicação permanente com o cliente residencial, com o envio de pequenos vídeos didáticos.

A isso juntou a tentativa de ir ao encontro do que o mercado pede. Elaborou um sistema de desinfeção em caso de Covid-19 positivo, e passou a fazê-lo em instituições grandes e residências.

"A nossa expectativa é voltar a empregar estas pessoas rapidamente. Entendemos que isto é uma ponte, apesar de achar que a crise económica que se vai abater é grande"

“Desenvolvemos esse serviço. Já tínhamos, no passado, para casos de H1N1, mas a desinfeção para a Covid-19 é outra, nova metodologia e outros produtos. Iniciámos um processo de prospeção a outras empresas. Começámos a fornecer a farmácias, que aumentaram a atividade e passaram a ter outros cuidados de limpeza”, explica Cândido Mesquita, que lidera a rede de várias empresas do grupo.

Por esta razão, e com a queda de muitas pequenas empresas que não aguentaram o impacto inicial da crise, a recuperação começou. Para a próxima semana, a quebra em relação ao pré-pandemia será de 40%, mas Cândido sente que há um ambiente de retoma.

Os nossos clientes, que tinham o conforto de ter alguém que lhes limpava a casa, estão desejosos para que voltemos. Fazem um teste para ver como estamos a trabalhar, e muitos voltam mesmo. Mas também temos clientes novos”, reconhece.

A forma de fazer o trabalho também mudou. Há mais desinfeção. “Não aumentámos o preço, mas as limpezas que não incluiam desinfeção passaram a tê-la em puxadores de portas, interruptores e corrimões. São áreas de que as pessoas se esquecem”, lembra.

O dono da House Shine afirma que, neste mercado, os muito grandes – que se dedicam as limpezas industriais e trabalham em contratos de grande escala com margens esmagadas – e os muito pequenos, com estruturas débeis, serão os que mais dificuldades vão ter. Ele acredita que, no meio, o negócio que gere vai florescer. E explica.

“Os cuidados com a limpeza são muito superiores ao que eram no passado. Estamos até a pensar em abrir escritórios em algumas cidades para a procura que aí virá.”

E para esse novo passo, com o reforço de trabalho, pensa que recuperará todas as pessoas que dispensou para além de “aumentar em 20 a 30% os postos de trabalho, num espaço de seis a nove meses”.

O mesmo empresário dá um exemplo prático de onde pensa que virá esse crescimento. “Um escritório que no passado fazia uma limpeza por semana, e estava tudo bem, nesta fase não vai fazer isso. Se calhar devia fazer uma ou duas limpezas por dia. Não a limpeza com o mesmo formato do passado, mas uma desinfeção”, exemplifica Cândido Mesquita.

Já podemos chamar as domésticas? As dúvidas de um médico

Mas se os negócios deste setor começam já a tentar preparar-se para o que aí vem, há quem olhe ainda como muitas reticências para o que fazer na próxima fase. É o caso do médico especialista em Saúde Pública do Instituto Ricardo Jorge, Ricardo Mexia.

Em entrevista à Renascença, o especialista considera que a situação epidemiológica “ não mudou assim tanto”, e mesmo com o fim do estado de emergência há um conjunto de coisas que se deve pensar se se pode ou deve retomar.

Temos de ter alguma cautela nas próximas semanas, sob pena de pormos em causa aquilo que evitámos até agora que é o crescimento exponencial. Tem de ser tudo muito bem ponderado”, avisa.

No caso das domésticas, quando se puder avançar para o desconfinamento, há que ter ou manter um conjunto de medidas genéricas, que Mexia enumera: distanciamento físico, etiqueta respiratória, higiene das mãos, e a utilização das máscaras.

O especialista alerta ainda para a necessidade de maior desinfeção das estruturas mais manipuladas, que devem ser alvo de uma higienização mais regular para se reduzir o potencial da transmissão da doença.

Todas as atividades que pressupõem algum contacto têm um risco associado, temos de perceber se esse risco é elevado ou pode ser mitigado”, sublinha Ricardo Mexia, alertando que no desconfinamento os próprios trabalhadores vão ter de se deslocar para as casas das famílias “e esse trajeto não é isento de risco”.

Pagas pela metade

Isabel Almeida é há vários anos a porteira de um prédio com dezenas de apartamentos nas Pedralvas, na freguesia de Benfica, em Lisboa. Conhece bem o trabalho doméstico e quem nele trabalha, ela que pontualmente também o faz. Mas na torre de apartamentos em que trabalha são várias as empregadas que deixaram de ir trabalhar.

"As pessoas estão exaustas e querem as domésticas de volta"

“Só uma ou duas pessoas é que continuou com as empregadas, as restantes não quiseram. Muitas delas perguntaram a minha opinião sobre se achava bem que pagassem 50% do salário? Eu achei que sim, porque isto é um problema para a doméstica, mas também é para o patrão.”

Agora, um mês e meio depois de decretado o estado de emergência, todos os relatos que vai ouvindo são de que "as pessoas estão exaustas e querem as domésticas de volta”.

Isabel não tem estado, ela mesmo, a fazer o trabalho de limpeza das zonas comuns do prédio como fazia. Apenas se dedica à desinfeção das zonas em que as pessoas tocam mais. A opção do condomínio foi a de a deixar mais resguardada. Encaram-na como uma mais-valia, porque ela faz muitos “pequenos recados” a quem não pode, com os idosos à cabeça.

Numa outra zona da capital, nas Laranjeiras, Isabel Duarte, de 61 anos, trabalha há dois anos para a mesma família. No início da pandemia mandaram-na para casa. Pagaram-lhe o ordenado de março, e em abril como ainda tinha quatro dias de férias em débito do ano passado, disseram-lhe para os gozar na primeira semana do mês que agora acabou.

Nos últimos 15 dias já tem trabalhado, mas só uma vez por semana. “A doutora está em casa em teletrabalho, os meninos estão na escola, através dos computadores”, afirma.

Passou a usar máscara e a pôr gel desinfetante. “Voltei porque ela acha que a situação já não é tão grave. Eu ofereci-me sempre, nunca me neguei a ir trabalhar, disse sempre ‘Oh doutora quando precisar de mim já sabe’.”

Quando lhe perguntam se tem medo, responde que não. “Nunca me senti em risco. Aliás, eu não vou de transportes, isso foi logo o que ela me pediu. Como o meu marido está em 'lay-off', eu vou com ele de carro e depois vai-me buscar”, declara.

Um setor sem um retrato claro

Vivalda Silva é coordenadora do Sindicato dos Trabalhadores dos Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e Atividades Diversas (STAD).

À Renascença, reconhece que, durante esta crise, “não estamos a ter grande conhecimento sobre a condição das trabalhadoras domésticas”. “Não temos estas trabalhadoras a vir muito ao sindicato, nem a questionar”, reconhece.


O retrato mais aproximado que tem da realidade é dado ao STAD pelas trabalhadoras que fazem serviços de limpeza em empresas e depois “trabalham como domésticas”. “Algumas delas ficaram sem trabalho”, anuncia.

Ainda assim, Vivalda acredita que há “um conjunto grande de trabalhadoras com rendimentos diminuídos”. “É uma situação preocupante aquela que se passa com as trabalhadoras domésticas, muitas delas não têm outro rendimento que não seja esse.”

As dificuldades de chegar a estas profissionais emerge do facto de as próprias não saberem os direitos que têm. “Pensam: ‘Contratou-me e agora não precisa de mim e pode mandar-me embora’”, explica Vivalda.

Sobre este tema, o da precariedade do trabalho doméstico, o secretário-geral da ONU, António Guterres, escreveu num artigo de opinião no Observador que “as mulheres estão desproporcionalmente representadas em empregos mal remunerados e sem benefícios, como trabalhadoras domésticas, trabalhadoras temporárias, vendedoras ambulantes e em serviços de pequena escala, como cabeleireiros”.

“A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que quase 200 milhões de empregos serão eliminados apenas nos próximos três meses, muitos deles exatamente nestes setores. À medida que perdem o seu emprego remunerado, muitas mulheres lidam com um grande aumento da sua carga de trabalho enquanto cuidadoras devido ao encerramento de escolas, à sobrecarga dos sistemas de saúde e às crescentes necessidades das pessoas idosas”, pode-se ler nesse texto do antigo primeiro-ministro.

É a própria OIT que escreve que as “trabalhadoras(es) domésticas(os) representam uma parte significativa da força de trabalho global no emprego informal e estão entre os grupos de trabalhadoras(es) mais vulneráveis”.

Governo cria apoio

Entretanto, para apoiar os trabalhadores do serviço doméstico com filhos pequenos e que tenham contratos de trabalho – lembre-se que há uma grande quantidade de pessoas sem contratos nesta atividade − vão poder ficar em casa com eles e ter direito ao apoio excecional à família já criado para trabalhadores por conta de outrem.

A medida faz parte de uma alteração ao diploma inicial, de 13 de março, e foi publicada na passado dia 27 de abril à noite em Diário da República.

De acordo com o diploma, o apoio para os trabalhadores do serviço doméstico "corresponde a dois terços da remuneração registada no mês de janeiro de 2020", uma vez que se trata, em regra, de trabalho de duração variável, pago de acordo com o número de horas cumpridas em cada mês.

Tal como já acontecia para a generalidade dos trabalhadores por conta de outrem, o apoio a que se refere o número anterior tem por limite mínimo uma remuneração mínima mensal garantida, ou seja, 635 euros.

Precisam de nós para falar

Maria Jesus tem 58 anos e muitas décadas como doméstica. Atualmente divide-se por três casas e três prédios em que lava escadas.

Toma conta de uma senhora de 89 anos, no Cacém, que não tem mais ninguém no mundo. Faz o mesmo com um homem de 75 anos, que vive sozinho, em Lisboa. Trabalha ainda na casa de um casal com filhos. Neste último caso, mostraram sempre grande vontade que ela continuasse por lá. “A patroa dizia que precisava de ver pessoas”, lembra.

Nunca parou, não vai parar, e não sente o perigo, afiança a trabalhadora. A idosa, diz Maria, já não sai de casa desde 5 de março, e o outro senhor também já não o faz desde a mesma altura.

E tem medo de os infetar por andar de um lado para o outro? “Eles não têm nenhum”, diz. “Íamos falando e sempre lhes disse que se não quisessem que fosse, não ia, mas eles queriam que eu fosse.”

Maria diz que, no caso das duas pessoas mais velhas com quem trabalha, nem são os serviços em casa o mais importantes. “O que querem é ter alguém com quem conversar.

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  • Antonio
    01 mai, 2020 Porto 14:07
    Título da notícia é presunçoso, além de só dizer meia verdade " O MEDO DE LIMPAR A CASA DOS OUTROS A TROCO DE TOSTÕES " pois é tramado. Cada um que limpe a sua sujeira enquanto o contágio está em alta.

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