01 jun, 2024 - 08:00 • Sandra Afonso , Arsénio Reis
“Qual é o título do programa do Governo? Construir Portugal. Portugal está construído". O alerta é deixado pela arquiteta Helena Roseta, que em entrevista ao programa Dúvidas Públicas, da Renascença. defende que o país não precisa de mais casas, mas de uma melhor gestão do parque habitacional existente.
Helena Roseta recorre várias vezes aos Censos 2021 e aos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) para demonstrar porque não faz sentido falar em "Construir Portugal", como solução para a atual crise habitacional. "Temos um milhão e tal de casas a mais, dois terços das casas vagas não precisam de grandes obras, uma parte até nem precisa de obras nenhumas", explica a arquiteta.
"Qual é o problema? Temos muitas casas vazias em sítios onde ninguém mora e muitas casas vazias onde a especulação é enorme”, admite a antiga deputada. Esta especulação cresceu com as sucessivas crises que levaram ao aumento da procura por investimentos mais conservadores, como o património. Portugal, com preços mais baixos, é um mercado atrativo, o que "cria uma alta artificial dos preços, não conseguimos controlar isso".
"Temos muitas casas vazias em sítios onde ninguém mora e muitas casas vazias onde a especulação é enorme"
Mas os preços também sobem com a teoria que circula. "Está sempre a passar a mensagem que há uma escassez de casas, não há uma escassez de casas", garante. O que falta são "casas acessíveis, baratas", explica. "Há uma falha de mercado, tem de ser regulado", sublinha.
A antiga presidente da Ordem dos Arquitetos acrescenta ainda que "hoje temos 6 milhões de casas, para 4,1 milhões de famílias. Vamos Construir? Está bem, mas talvez pudéssemos pensar em recuperar, reabilitar e reutilizar. Não vamos desperdiçar todo este património". Lamenta que este executivo tenha deixado cair estas medidas, que estiveram em destaque tanto no Governo de Passos Coelho como nos de António Costa.
Uma das promessas eleitorais do primeiro-ministro, Luís Montenegro, é a revogação de várias medidas do Mais Habitação. Algumas já foram mesmo aprovadas em Conselho de Ministros. No entanto, “o Governo ainda não revogou nada, o Governo decidiu que ia revogar", sublinha Helena Roseta.
Até ao momento, ainda não saiu nada em Diário da República, garante. Por outro lado, há medidas que "têm de ir ao Parlamento e o Governo, como sabemos, não tem maioria", explica.
Helena Roseta deixa dois exemplos concretos. "No caso do alojamento local, há o problema da contribuição especial, só pode ser revertida pelo Parlamento. O arrendamento urbano é matéria da competência da Assembleia da República”.
"As medidas de reversão são legítimas", admite, "qualquer Governo pode deitar fora o que já foi feito antes". No entanto, "têm de ser justificadas com estudos que expliquem que aquilo deu mau resultado. Onde estão?"
Helena Roseta diz ainda que não está contra parcerias público-privadas, uma das medidas defendida pelo executivo para a habitação, "se forem bem reguladas, se não forem para o privado ficar com o lucro e o público com o prejuízo". De acordo com a arquiteta "é muito frequente. O privado chama-lhe um naco e quando há prejuízo manda a conta. Tem de haver partilha de responsabilidades e de benefícios”, conclui.
Portugal precisa de uma "revisão geral" da tributação sobre o património, até de um "Código sobre o património", defende a arquiteta Helena Roseta.
Em entrevista ao programa Dúvidas Públicas, da Renascença, diz que “a fiscalidade sobre o imobiliário é completamente estapafúrdia, porque é feita do somatória de medidas tomadas avulso ao longo dos anos, sem qualquer cruzamento com a política da habitação e até com a política económica, às vezes”.
Defende ainda a revisão da Lei do Arrendamento, "que já está cheia de botox, se alguém quiser ler a lei do arrendamento não consegue perceber nada, tem que pagar a um advogado para perceber aquilo".
Segundo a Constituição, o Estado deve criar um sistema tendente a garantir que as rendas são compatíveis com o rendimento familiar, ou seja, tem de regular. Ao longo dos anos, o Estado limitou-se a remendar a lei.
Helena Roseta diz ainda que não é contra a garantia estatal para o crédito à habitação, até 15%, "é uma solução", mas não entende porque cai a garantia que evitava os despejos. Questiona porque é criada a primeira e revertida a segunda. Defende que qualquer uma das soluções pode ser boa, devem ser avaliados os impactos de cada uma e se podem coexistir.
No combate à corrupção, lembra que este fenómeno anda de mãos dadas com a burocracia e a solução não passa por retirar competências, mas aumentar a transparência e a fiscalização.
Com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) disparou o investimento público no país e o ministro da Coesão Territorial já anunciou que este verão ficam disponíveis mais de 2 mil milhões só para financiar construção. O que Helena Roseta questiona é quem é que vai executá-la.
"Lei do Arrendamento já está cheia de botox"
"Quando anunciam que vão lançar o Hospital Ocidental de Lisboa em 2025, ou os outros programas do PRR já têm os empreiteiros contratados ou não vai haver gente. Ou não fazem o hospital ou não fazem o resto", diz. "Tudo isto tem de estar interligado".
Em aberto está ainda a falta de mão-de-obra na construção, que já era uma realidade durante a pandemia e ainda está por resolver.
"Quem é que é trolha, quem é que é pedreiro, quem é pintor, estucador? Muita dessa mão-de-obra é imigrante. Temos forças políticas neste momento em plena campanha eleitoral a dizer que é preciso estancar a imigração. Mas, os filhos deles querem ir para as obras?”
Helena Roseta critica ainda a atuação do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), em geral, e responsabiliza alguns funcionários, em particular, pelo grave atraso nas candidaturas à construção de habitação pelas autarquias, financiada através do PRR. Pela primeira vez há fundos comunitários para construir casas e o IHRU "resolveu assumir uma fiscalização de candidaturas para a qual não tem competência nem pessoas".
O ministro Castro Almeida resolveu "e bem", segundo a arquiteta, aplicar a solução "ovo de Colombo". Os contratos vão avançar sem a avaliação, desde que as autarquias assumam a responsabilidade. Se depois faltar dinheiro, logo se resolve no futuro, refere a arquiteta.
A entrevista a Helena Roseta, antiga presidente da Câmara de Cascais e vereadora da autarquia de Lisboa, ao Programa da Renascença “Dúvidas Públicas” pode ser ouvida na Rádio Renascença este sábado, a partir do meio-dia, ou a qualquer hora no site da Renascença e nas plataformas de podcast.