Entrevista

​Lídia Jorge sobre a pandemia: “Estamos espantados e não sabemos se esta lição vai servir para alguma coisa”

19 jun, 2020 - 13:04 • Maria João Costa

“Em Todos os Sentidos” é o novo livro de crónicas de Lídia Jorge. A autora que perdeu a mãe com Covid-19 reflete sobre a pandemia e a relação do Homem com a Terra.

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“Tudo está completamente posto em causa”, afirma Lídia Jorge. A escritora acaba de lançar um conjunto de crónicas no livro “Em Todos os Sentidos”. A obra sai pouco depois da autora ter visto a mãe morrer com covid-19.

Em entrevista à Renascença, Lídia Jorge denuncia uma “atitude sanguinária” que o Homem tem tido na relação com a Terra que fazia adivinhar “qualquer coisa de desarmónico que viesse mostrar que o caminho está errado.”

Nestes momentos de isolamento, a autora afirma que “o mundo virtual ainda não nos satisfaz” e “ainda nos queremos abraçar”. Sobre a crise na cultura, Lídia Jorge mostra-se assustada com a “desmaterialização” do livro. Um mundo sem livros é mais “superficial” e sem “entendimento entre as pessoas”.

O que representa para si a arte da crónica, como estas que reúne agora no livro "Em Todos os Sentidos"?

A arte da crónica é difícil fazer teoria sobre caso. Mas o que me parece é que é, sobretudo, uma incursão no domínio da atualidade, no tempo que passa, mas envolve a subjetividade de quem escreve. A crónica relata um tempo, mas permite que a perspetiva do olhar fique muito viva. Essa perspetiva é como uma porta aberta para um dado biográfico que se insinua e acaba por ser o que dá, ou não dá, originalidade à crónica.

Mas a crónica é mais do que um texto de opinião?

É um género híbrido e, em geral, não tem uma teoria definida. O que acontece é que tem assinatura. Quando leio crónicas da Clarice Lispector, Agustina Bessa-Luís ou da Rosa Montero, sinto que são vozes muito próprias que falam sobre o correr do tempo. Claro, que depois há todo o género de crónicas, desde a política à de atualidade social, mas essas afastam-se daquilo que são as crónicas que partem dos autores.

A crónica de autor permite que essa subjetividade fique, que haja a alguma coisa parente do conto, não sendo conto; parente da notícia, não sendo nunca notícia; parente da nota histórica, não sendo nota histórica, mas tendo um pouco de tudo isso. Portanto, diria que é um género híbrido com forte assinatura de quem escreve.

Estas crónicas foram escritas para rádio, para serem lidas. Isso foi desafiante para si?

Não foi difícil, basta imaginar que alguém está presente e que nos ouve. De resto, é uma questão de simplicidade, de perceber que o princípio de uma frase não pode estar demasiado longe do final dessa frase. Aquilo que sustenta o ouvinte é uma compreensão que tem de ser fluida.

Tem de falar ao ouvido dos ouvintes?

É uma escrita mais ou menos oral que qualquer escritor já fez. Eu já fiz imensas experiências nesse domínio. É aliás muito interessante, porque o primeiro livro que escrevi há bastantes anos, o "Dia dos Prodígios", tem uma marcação de rádio. Os pontos finais são muitos e estão colocados no sítio das pausas. Esse livro é eminentemente oral. Também quando se faz poesia percebe-se que a parte sonora das palavras assume uma importância grande. Portanto, não é um sacrifício escrever crónicas para serem ouvidas. É apenas uma atenção que se dá a alguém que tem os olhos fechados, mas tem os ouvidos abertos.

"Há um desequilibro tão grande que se percebia que qualquer coisa iria acontecer"

Nas crónicas aborda temas muito diferentes, há a natureza, o planeta, as mulheres, o meio literário. Como é que os temas iam surgindo?

Há aí um fio do tempo. Essas crónicas foram escritas à medida dos temas do quotidiano, suscitados quer por visitas a determinados locais, quer por ter passado muito tempo ao longo de 2019, na casa da minha infância que é no meio do mato, no meio das árvores. Isso permitiu também pensar muito nos elementos da natureza, na relação com os animais, com plantas, com a falta de água. Tudo isso são temas do presente, mas que são iluminados por memórias do passado.

Acabam, no entanto, por gerar uma reflexão sobre o futuro.

Fazendo um balanço das crónicas percebe-se que aquilo que se perspetiva para o futuro tem muito de síntese daquilo que nós experimentamos no passado. Essas experiências passadas podem ser úteis para se perceber como alterar o futuro iminente que aí está.

A crónica que parte de uma tempestade fala sobre o problema das alterações climáticas.

Quando o clima está em mudança no Sul do país e está passando para uma fase que anuncia uma desertificação, o facto de ter surgido uma tempestade acabou por ser muito forte e vivo para poder escrever sobre a falta de água. As pessoas não gostam de chuva, e no fundo é realmente necessária, fundamental. Portanto, essas crónicas não foram apenas suscitadas pelo grande mundo social e literário, ou pelas questões de política nacional e internacional. Também aparece, por exemplo a posição histórica e triste para nós, que é o Brexit. Mas não foram só os temas da atualidade que me tocaram, foram também os elementos mais íntimos e relacionados com a natureza.

Há neste livro algumas crónicas que, sem imaginar uma pandemia, parece que já falam dos dias que hoje vivemos.

De certa forma, há algumas crónicas que anunciam isto. Não anunciam a Covid-19, ninguém tinha ouvido falar nisso, nem sequer tinha sido batizado assim. Mas o que se percebia é que havia alguma coisa que iria acontecer. Não sabíamos é que era de natureza biológica. Sabíamos que qualquer coisa estava para acontecer, porque há um desmando na relação entre a Humanidade e a Natureza.

Percebia-se que a atitude sanguinária que temos tido em relação à Terra, iria acabar por chamar qualquer coisa de desarmónico que viesse mostrar que o caminho está errado. Não sabíamos é que iria ser assim. Há um desequilibro tão grande e um perigo tão iminente que se percebia que qualquer coisa iria acontecer.

A última crónica do livro é uma reflexão sobre o futuro, o ano 2020.

Ela fala, precisamente, de qualquer coisa que vai acontecer em relação ao nosso futuro e com o mundo tecnológico que estamos a preparar. O momento presente tem páginas aqui que estão não adivinhadas, mas pressentidas. Aliás, acho que quase todos os escritores perceberam e o pressentiram. Há imensos livros que falam de qualquer coisa que teria de criar uma noção de paragem e rutura.

É nesta "soleira" da porta que nós estamos olhando para o interior sem saber se o mundo que estamos a criar vai ser mais humanizado ou se, pelo contrário, até haverá o perigo de podermos simplesmente desaparecer. Agora sabemos, perfeitamente, que a Terra pode passar perfeitamente sem nós, vimos imagens disso. Isso está nessa crónica, como se a tivesse escrito nos dias de hoje.


Há dias, a propósito desta pandemia, Jorge Silva Melo dizia em entrevista à Renascença que vivemos na “era da desconfiança”. Partilha da ideia?

Observando o comportamento das pessoas, acho que não estão desconfiadas umas das outras, elas estão desconfiadas da própria vida. Esse é o desafio que estamos a ter. É um desafio deontológico sobre a nossa relação com a vida, sobre o projeto que existe sobre nós mesmos.

Ao ver estas filas de pessoas, não acho que estejamos desconfiados uns dos outros. Quando olhamos nos olhos, acima da máscara, acho que nos compreendemos. Sorrimos, temos piedade uns dos outros. Sobretudo, estamos espantados com o que aconteceu.

Interrogamo-nos sobre o futuro?

Não sabemos se esta lição vai servir para alguma coisa, ou não. Estamos em dúvida sobre a relação com a vida e com a Terra. Tudo está completamente posto em causa. Isto está minando os dias que passam. Ainda para mais aconteceu uma coisa extraordinária durante o confinamento. Foram retomadas as viagens do Homem ao espaço. E é a primeira vez que sentimos que de facto os homens querem fazer uma experiência verdadeira fora da Terra. E quando a Terra parece querer expulsar-nos, dá a impressão de que há um novo projeto que está a nascer e tudo isto é uma interrogação enorme. Nós temos os pés na Terra. O mundo virtual ainda não nos satisfaz, ainda nos queremos abraçar, discutir rosto no rosto, sentarmo-nos à mesa uns com os outros. O corpo nega que o virtual seja uma solução e que o artificial venha a responder por inteiro à vida.

Tem tido tempo e cabeça para escrever neste momento da pandemia?

Sabe, é duro porque a minha mãe morreu com Covid-19 e, portanto, estes tempos para quem foi atingido devem ter uma cor talvez mais dramática, do que para as pessoas que apenas estão em casa. Mas penso que se consegue pensar e reagir para além daquilo que nos diz respeito, porque a noção que se tem é que a comunidade inteira da Terra está passando pelo mesmo. Isso faz a pessoa refletir e escrever. Eu tenho escrito considerações sobre o que se está a passar, sobretudo reações porque me têm pedido textos.

"É duro porque a minha mãe morreu com Covid-19 e estes tempos para quem foi atingido têm uma cor talvez mais dramática"

Mas acha que isto poderá inspirar um futuro livro?

Sem dúvida alguma que o momento que estamos a viver é alguma coisa que irá dar para muitos escritores e para os artistas, obras, livros, obras de arte que já não serão filhas do momento a quente, mas possivelmente à distância isto permitirá criar uma relação com o pensamento metafórico muito importante.

Não podemos saber o que vai acontecer, espero que aconteçam obras magníficas que sejam sobretudo sobre esta nova relação íntima com o mundo, perguntando para que servimos nós. Talvez se encontre alguma resposta, ainda que passageira, mas que se encontrem respostas.

O setor da cultura foi um dos mais afetados pela paragem de atividade, em particular o mundo dos livros. Teme a quebra nos hábitos de leitura?

Este momento faz-nos refletir muito. Se há setor que está sendo atingido é, sobretudo, o mundo do livro. É verdade que as pessoas dizem que durante este tempo leram, mas não é isso que promete o futuro. O domínio do mundo tecnológico propõe praticamente a desmaterialização dos livros. É algo que assusta quem acredita que os livros, sobretudo os livros literários, são aqueles que ainda se leem em papel e que têm uma proposta de humanidade muito própria.

Teme pelo futuro do livro?

Neste momento, acho que as pessoas terão vontade de se unir para defender este símbolo da Civilização, da nossa cultura, mas todos os sinais, são muito estranhos, muito negativos. Basta ver que, por exemplo, entre nós parece que o grande bolo do dinheiro que irá para a Educação será para desmaterializar os livros. Acho isto estranho, porque tem de se por à parte os livros literários, não podem ser desmaterializados. Essa é minha convicção. Nós estamos num período muito difícil.

Fala numa das crónicas da "seita" dos livros

A noção que tenho de seita é que nós agimos, os que acreditam nisto que estou a dizer. Mas não sei que percentagem ocupamos, sobretudo entre os jovens. Estamos agindo como crentes nisso, no facto de que a leitura de livros faz a diferença e cria pessoas com uma subjetividade rica que permite que tenha uma espécie de ressonância grande dentro de si para entender e questionar o mundo. É essa capacidade de fazer comunidade que os livros ajudam a fazer.

Se os livros desaparecem e sobretudo se deixam de ser uma mais valia, se as pessoas passam a entender isso como um rebotalho velho, tenho ideia que se caminhará para um mundo muito mais achatado, superficial, com menos entendimento entre as pessoas. Um mundo com mais frieza e menos ligação ser a ser. O somatório da literatura feita até agora propõe o contrário, quem acredita nisso será esta seita que resiste.

As crónicas podem incentivar à leitura

Eu escrevi essas crónicas sempre um pouco com a sensação que escrevia para as pessoas quando elas estavam fatigadas, ao fim do dia. Elas passavam na rádio também ao fim do dia. As pessoas estão cansadas e precisam de dialogar, precisam de voltar a fazer considerações, porque considerar é muito importante. Considerar significa "estar com os astros". É muito interessante porque dizemos que "temos consideração pelo outro". Significa que nos juntamos nos astros. É por isso que "desastre" significa, perder os astros.

Aquilo que me acontece quando leio as crónicas de autores que gosto é que tenho a sensação de que fico em comunhão e sintonia com os outros e com aquela voz. E era isso que eu queria propor também, que as pessoas ficassem em consideração ao fim do dia.

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  • Marília Alves Pereir
    23 jun, 2020 Massamá 10:58
    Os cientistas há muito tempo que sabem que a Terra não precisa de nós. É que a Terra tem quase 4.600 milhões de anos e o Homo sapiens (isto é, nós) só surgiu há cerca de 250 mil anos a 400.000 anos atrás (depende da interpretação possível do registo fóssil, tendo em conta o conhecimento científico e tecnológico). Mais uma vez, o conhecimento científico é uma miragem para a esmagadora maioria das pessoas. Por isso, praticamente ninguém fazia do que era um vírus... até agora.
  • António Costa
    19 jun, 2020 Cacém 21:55
    Ler...a partilha da informação entre os seres humanos foi uma coisa muito forte. Muito potente. Tornou possivel que a informação, ao circular, criar uma dinâmica de Descoberta, de aumentar o conhecimento Humano a uma escala sem precedentes. O Livro é muito especial, é lido de maneira diferente por pessoas diferentes.....só entedemos o que já existe dentro de nós. É um pouco estranho. Não creio que a Mãe Terra nos queira algum Mal. Só precisamos dumas picadas maternais para voar, para sair do ninho...como as aves do Céu....

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