21 mar, 2019 - 19:59 • José Bastos
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Haverá um cenário paralelo em que o Reino Unido negociou o Brexit com a União Europeia. O diálogo foi sério e bem intencionado e a 29 de Março chega o divórcio. Londres e Bruxelas prometem continuar amigos. Haverá tal cenário, mas é ficção não é realidade. No mundo real, o Brexit está a ser uma prova de todo o terreno que produziu tantas alterações que já nada surpreende.
Dois anos foram gastos com lutas intestinas sobre o Brexit pretendido, com Theresa May a assinar um texto realista com Bruxelas, mas impopular entre o Partido Conservador e entre os seus parceiros unionistas da Irlanda do Norte. Mais de mil dias depois do referendo sobre a continuidade na EU e dois anos de negociações esgotadas com Bruxelas, o Brexit está em ponto-morto.
Na imprensa britânica já há quem use a expressão "Brexternity" (Brexit – eternidade, em inglês) para definir a fase em que se chega à entrada de um decisivo Conselho Europeu.
“A saída é adiar Brexit por um curto período”, defende José Pedro Teixeira Fernandes, especialista em geopolítica que, em entrevista à Renascença, passa em revista vários cenários possíveis. “Se existir alguma alteração em relação ao ‘backstop’ neste conselho europeu ou outros argumentos, por exemplo financeiros, a poder ser usados por May para convencer os unionistas isso limita os argumentos dos eurocépticos”, é também uma das saídas exploradas pelo professor universitário e autor do livro “Europa em crise”.
O adiamento é possível, diz Bruxelas, mas a condição é o acordo do Brexit ser confirmado em Westminster. Este é o dado mais recente à entrada do Conselho Europeu. Estão iminentes mais surpresas?
O processo de Brexit tem sido extraordináriamente díficil e, sobretudo, marcado por uma enorme previsibilidade. Pouca gente imaginaria que estivéssemos tão próximos da data de 29 de Março e ainda não houvesse uma definição do rumo dos acontecimentos. Em qualquer caso aqui chegados estamos neste ponto e do lado europeu temos uma faceta crucial do processo.
A União Europeia vai ter de tomar aqui uma posição, seja na linha do que parece ser o que está a consensualizar em Bruxelas que é conceder um alargamento do prazo que foi solicitado por Theresa May o de um alargamento curto.
Quanto a datas a mais falada é a que oficialmente foi referida, e pedida, na carta de Theresa May, 30 de Junho - embora se tenha levanto aqui também uma discussão se será possível, por razões ligadas às eleições para o Parlamento Europeu de final de Maio, fazer o Brexit até 30 de Junho ou se a data terá que ir, neste alargamento curto, até 23 de Maio, visto que nesse dia se inicia o processo eleitoral que conduzirà à escolha dos futuros deputados europeus.
Qual é a sua sensibilidade em relação ao efeito da proximidade das eleições europeias?
Há aspectos a ter em conta do ponto de vista legal. Um deles é saber se legalmente se poderia fazer um alargamento do prazo até 30 de Junho - como pede Theresa May - sem contrariar as disposições dos tratados e todos os processos previstos para a eleição dos deputados europeus.
Embora quase tudo o que é jurídico possa ser controvertido nestas questões mais difíceis para resposta imediata o que me parece mais razoável - e vão nesse sentido até os pareceres legais internos que a Comissão Europeia terá pedido - é que a data crucial do processo não seria tanto 23 de Maio, a data das eleições para o PE no Reino Unido, mas a data do início de funções do novo parlamento, 2 de Julho. Portanto de um ponto de vista estritamente legal parece ser mesmo possível.
Mas não teria efeitos na necessidade legal da continuidade da contribuição britânica para o orçamento comunitário?
Essa é a questão política chave. Seja a data de 23 de Maio, seja a data de 30 de Junho se for aceite - será uma data configurada no pressuposto da não participação dos eleitores britânicos nas eleições europeias para não levantar questões como essa da contribuição financeira. Porque se os britânicos participam nas eleições vamos entrar num terreno extraordináriamente difícil para os britânicos e para a própria União Europeia. Primeiro porque esse seria o tema chave da campanha no Reino Unido e seria um tema extraordinariamente fracturante.
Mas, mesmo no resto da União Europeia muitos partidos que contestam a UE teriam aqui um argumento adicional para dizer que Bruxelas tudo está a fazer para dificultar a saída do Reino Unido e sobretudo argumentando com questões democráticas e que é uma maneira de exercer uma pressão indirecta para um segundo referendo - como no caso do tratado de Maastrich, na Dinamarca, ou o tratado de Lisboa, na Irlanda.
Não só para um referendo, mas até para eleições gerais no Reino Unido? Essa eventual pressão seria um favor da UE aos eurocépticos britânicos?
Indirecta e involuntáriamente poderia ter esse efeito. Embora à primeira vista pudesse ser bom para os partidários da permanência do Reino Unido na União Europeia, num segundo olhar mais atento poderia criar uma dinâmica de resultados difíceis de antecipar que não beneficiariam a UE e irónicamente até daria argumentos aos eurocépticos britânicos e outras forças contestatárias.
Se cruzar este dado com as questões orçamentais o assunto ainda se torna ainda mais delicado, porque a contribuição britânica para o orçamento da União Europeia sempre foi um dos temas críticos no Reino Unido e foi objecto de batalhas de Margaret Thatcher nos anos 80 e é um dos argumentos mais fortes a favor da saída porque os britânicos são contribuintes líquidos. Assim, o prolongamento num prazo mais longo parece quase inevitável que levante de novo a questão orçamental.
Aí iríamos ter a UE provavelmente a querer a continuidade da contribuição britânica com todos os problemas que isso levantaria do lado de Londres, mas também poderíamos ter uma contribuição irónica que seria com a continuidade da permanência do Reino Unido o próprio Reino Unido poderia obstaculizar - porque continuaria a votar - as negociações que estão em curso para o novo quadro financeiro plurianual, ou seja, bloquear o processo do orçamento comunitário do qual, por exemplo, saem os fundos estruturais ou programas como o Portugal 20/20 ou o próximo programa comunitário de apoio. Teria um impacto enorme e era um enorme risco para a União Europeia continuar neste processo.
O que pode ser dito sobre o Brexit corre o risco de ser ultrapassado em horas, mas o cenário mais provável será o do adiamento por um período curto?
A palavra correcta é mesmo 'provável', sem poder excluir outros cenários, será a de uma adiamento curto. Resta saber se o curto' será a data balizada por 23 de Maio ou 30 de Junho no pressuposto de que que nenhum dos casos implicará com as consequências já descritas. A outra questão é saber as implicações no Reino Unido. Porque se a UE colocar como condição para a data ficar formalizada, como já referiu Donad Tusk, uma prévia aprovação em Westminster do acordo de May, isto pode fazer a diferença. Importa perceber exactamente em que termos a União Europeia vai aceitar a prorrogação e se vai explicitar os termos em que condiciona o processo. Uma possibilidade que depois levanta dois cenários curiosos.
Por um lado pode fazer-se a leitura, como já está a ser feita, de que o Reino Unido está a claudicar, mas por outro que poderá reforçar a posição de Theresa May, é evidente num jogo de alto risco, que é voltar com este acordo para o parlamento britânico que acaba por se reduzir a duas possibilidades - até pela proximidade a 29 de Março - a saber: ou votam este acordo e temos aqui um prazo para implementar a legislação ou então é uma saída em acordo a 29 de Março porque o processo não foi do ponto de vista legal interrompido.
Talvez seja este trajecto que Theresa May tenha em mente e tente fazer na próxima semana se conseguir nas próximas horas um entendimento nestes termos da parte da União Europeia. Resta perceber também como é que da parte dos eurocépticos do partido unionista da Irlanda do Norte e até de alguns trabalhistas irão reagir.
É de admitir uma posição de força dos eurocépticos até porque o sistema político britânico é desenhado para a confrontação?
O sistema político britânico até pela sua longuíssima tradição de democracia parlamentar é bastante particular quando comparado com outros. De facto, o parlamento é mesmo o centro institucional, político, legislativo de todo o sistema e com muitas tradições específicas de soberania parlamentar, incluindo uma Constituição não exactamente no mesmo sentido que nós damos à palavra. Assim, uma das questões que se coloca é a inexistência de uma maioria firme da parte do governo, porque o sistema está muito moldado para a rotatividade entre dois grandes partidos e terem maiorias parlamentares que, embora não sendo muito significativas em percentagem de votos já em número de deputados seriam sempre na ordem de algumas dezenas.
Sendo esse o quadro tradicional neste momento Theresa May tem um governo frágil por muitas razões, desde logo uma a de que nem o próprio Partido Conservador consegue sózinho ter uma maioria parlamentar e depende dos unionistas da Irlanda do Norte. Nesta questão o que poderá provocar a mudança a favor de Theresa May, sendo talvez o aspecto chave, é May tentar convencer o partido unionista da Irlanda do Norte a aceitar os termos do acordo, porque o também para os eurocépticos o principal argumento contra o acordo é a questão da cláusula de backstop no caso de não haver um acordo comercial ficando sempre com a garantia da fronteira aberta entre a Irlanda e a Irlanda do Norte.
Se existir alguma alteração em relação ao ‘backstop’ neste conselho europeu ou outros argumentos, por exemplo financeiros, a poder ser usados por May para convencer os unionistas isso limita os argumentos dos eurocépticos até pela pressão da data. No fundo, porque os próprios unionistas, os primeiros interessados, retirariam a obstrução e pressão alivia significativamente. Até colocaria alguns trabalhistas num dilema muito sério: embora, por um lado, estando tentados a derrubar Theresa May, por outro, entre uma saída sem acordo - que não está nas suas perspectivas como no caso dos eurocépticos - e uma saída com o acordo de May acabará por ser o mal menor. Veremos nos próximos dias se a dinâmica do processo se desenrola por estas linhas.
Que marcas todo este processo deixará no sistema político britânico e também na sociedade? Sabemos que no Reino Unido o eurocepticismo não é homogéneo nem corresponde a um projecto claro. Divide gerações, divide Gales e a Escócia de Inglaterra e divide o mundo urbano do mundo rural...
Pode deixar marcas. Essa é uma má perspectiva de futuro para o Reino Unido. É um dos grandes riscos de um eventual segundo referendo. Embora possa eventualmente clarificar - se for colocada a questão entre o acordo de May e a permanência na UE - necessáriamente clarifica, vai provavelmente gerar uma dinâmica de fracturas permanentes muito signficativas. Até porque há um problema estrutural de eurocepticismo na sociedade britânica. É estrutural e não é homogéneo. Tem fracturas geracionais, com gerações mais antigas e a memória de um passado de grandiosidade do Reino Unido a fazer a identificação mais com a autonomia da UE e não é homogéneo territorialmente.
O eurocepticismo tem a sua principal base de apoio nas pequenas e médias cidades e nos meios mais rurais do que nos grandes centros urbanos. Londres é um caso óbvio onde a maioria está a favor da permanência na União Europeia. A Escócia também vê na União Europeia uma espécie de protecção contra, por um lado, o estado britânico dominado pela Inglaterra e uma maior possibilidade de autonomia face a Londres e, por outro, quem sabe até a independência.
Portanto toda esta engrenagem está no seio do Reino Unido e complica bastante o processo e evidencia fracturas significativas. O acentuar da discussão do Brexit, o prolongar no tempo até do próprio processo eleitoral ou um eventual novo referendo corre o risco de enraizar ainda mais estas fracturas na sociedade britânica em vez de as esbater. Este é o grande dilema dos britânicos nesta altura e é do seu interesse encontrar uma solução o mais rápido possível para esta questão.