Pintora Graça Morais. “Não sou piegas, luto para me ultrapassar e trazer para a tela o melhor que sei fazer”

21 mar, 2019 - 10:00 • Maria João Costa

Pintora expõe pela primeira vez no Museu de Arte Contemporânea do Chiado. A exposição "Metamorfoses da Humanidade" fala de temas atuais como a crise dos refugiados e a condição das mulheres.

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Como artista diz que não pode ficar insensível e por isso, traz para a sua pintura os dramas humanos. Graça Morais, 71 anos, pintora transmontana expõe pela primeira vez no Museu de Arte Contemporânea, no Chiado, em Lisboa. “Metamorfoses da Humanidade” é uma exposição contaminada por temas da atualidade como a crise dos refugiados e a condição das mulheres.

A artista que diz que os políticos devem estar muito atentos às transformações do nosso tempo, revela em entrevista à Renascença, que teve de deixar o atelier em Alfama. O excesso de turismo e obras na cidade de Lisboa acabaram por condicionar a dimensão do seu trabalho.

As obras de pequenas dimensões agora expostas em Lisboa e que depois serão apresentadas no Museu Soares dos Reis, no Porto, mostram uma artista que diz que “não é piegas”, é “inquieta e exigente”.

Metamorfoses é uma exposição em que vemos figuras humanas, a preto e branco, onde por vezes a imagem humana se confunde com a de insetos. Porquê?

Isto é uma grande aventura. A grande viagem faz-se no meu atelier. Quando estou numa simples mesa com um lápis ou um pincel e com tintas, a partir de figuras reais da vida vou descobrindo através da minha imaginação e da realidade vou entrando num mundo que me surpreende. Esse mundo tem muitas vezes a ver com a dimensão da fragilidade dos insetos e ao mesmo tempo da resistência

Temos nesta exposição muitos temas que vêm da contaminação das notícias do dia a dia? Vemos aqui, por exemplo, imagens de refugiados numa fila.

Sim, porque eu acho que é muito impressionante. Vejo televisão e gosto de ler os jornais em papel e, muitas vezes, essas imagens eu recorto-as dos jornais. Servem-me, não digo de inspiração, mas de ponto de saída para começar a trabalhar.

Infelizmente todos os dias vemos nas televisões os milhões de seres humanos refugiados que estão em campos anos e anos a fio. Vemos aquelas crianças que andam no lodo, como se fossem bichos, e impressiona muito como é que no século XXI ainda há essas diferenças tão grande.

Vivemos o tempo das imagens.

Temos conhecimento de crimes em tempo real, de situações catastróficas, daquilo que de pior acontece mundo ao planeta e aos seres humanos. Eu, como artista, não posso ficar insensível. Trago para a minha pintura essa dimensão dos dramas humanos. Eu própria faço uma grande reflexão sobre o que é vida e o que é esta situação que nós vivemos.

Nestes seus novos desenhos e pinturas, usa sobretudo o preto e o branco. Esta realidade tem de ser olhada de forma "crua" ?

Esta série de desenhos, que são quase todos desenhos muito pequeninos surgiu de uma situação também bastante preocupante na minha vida. Eu tenho um atelier na Costa do Castelo, em Lisboa e como sabe, nos últimos três anos, a cidade tem estado toda a mexer para o bem e para o mal.

Havia edifícios que estavam numa grande decadência e ainda bem que estão a ser restaurados, mas ao mesmo tempo está-se a expulsar do centro da cidade pessoas comuns, algumas até com fracos recursos, mas que têm o direito a viver no centro da cidade. Neste momento essas pessoas foram obrigadas a sair e dentro de algum tempo temos o centro da cidade habitado por milionários e por alta burguesia. O que é mau é a expulsão das outras pessoas que viviam aqui há algum tempo. Estão injustamente a viver situações muito dramáticas.

E de que forma essa questão da "gentrificação" de Lisboa a condicionou?

Realmente, nos últimos três anos eu comecei a viver uma situação muito desagradável, até muito dramática para mim, porque não aguentava o barulho, as confusões e tantas obras. A rua era muito estreita.

Enfim, tive que sair dali, embora continue a ser meu atelier. Era um espaço grande que se de certeza lá continuasse, não faria estes pequenos desenhos, mas obras de outra dimensão. Tive de alugar duas salas, de 30 metros quadrados, perto da Gulbenkian e fiquei reduzida a uma mesa e concentrei todas as minhas energias nos desenhos. Temos de reagir sempre às adversidades.

Por isso, os desenhos são de pequeno formato.

É uma série tão contida, tão intensa e que tem muito a ver com a realidade. Tem tanto a ver com as situações que se vivem na minha cidade, que eu considero Lisboa a minha cidade, embora Bragança também seja, e ao mesmo tempo tem a ver com a situação no mundo. Vivemos tempos muito preocupantes. Não se se vive na Europa numa guerra, mas vive-se com o peso do terrorismo e das grandes revoltas de pessoas que, algumas delas são justas, porque vivem muito mal.

Como é o seu ritmo de trabalho no atelier?

A arte acontece geralmente porque há dias em que se tem mais predisposição para estar bem e para a concentração. Mas também é preciso forçar! Há uma dimensão, que eu também tenho, de relaxar, pensar, ler e de conviver.

Contudo, os momentos mais intensos, mais verdadeiros e em que eu sei que estou certa, porque estou no mundo a descobrir, são os momentos em que estou no atelier. Por isso, esforço-me e quero estar o máximo tempo no meu atelier.

Ou seja, para si como artista, os momentos de criação são também de descoberta?

Completamente! Nunca chegaria a estes desenhos se nunca tivesse visto desenhos do Rodin, Giacometti ou Picasso. Toda essa história dos grandes mestres, aprendo com todos. Todos me dão uma grande energia para continuar o meu caminho que é cada vez mais pessoalizado porque é o meu mundo, é a minha história.

É sobretudo, a história de uma mulher. Como mulher tenho uma forma diferente de falar e cada vez mais assumo essa diferença. O meu olhar sobre o mundo passa sempre pelas mulheres. Essas mães que eu vejo quando aqueles migrantes são salvos, é impressionante. Ver tanta criança a chorar! Eu ponho-me no lugar daquelas crianças e daquelas mães que muitas vezes morrem. Acho que não podemos ficar insensíveis a este drama de pessoas pobres, paupérrimas, que fogem da guerra. Ao nosso lado também há essas pessoas, não podemos só olhar para o mundo.

Sente a urgência de agir?

Acho que se cada um de nós olhar para as pessoas que nos cercam e tivermos uma palavra, um olhar de solidariedade, já estamos a ajudar a que o mundo seja melhor. A minha pintura tem esta dimensão humana que é importante, mas eu quero sobretudo ser uma grande pintora. Quando sou uma grande pintora não sou piegas. Eu luto para me ultrapassar a mim própria e para trazer para a tela e para o papel o melhor que sei fazer.

Ali temos por exemplo, a imagem de uma mãe que agarra ao colo um filho.

Aquela mulher, era uma mulher que de facto estava agarrada a uma criança que chorava imenso, cheia de medo. Há aqui muitas figuras que são figuras que nos olham com medo, sem saber o que é o futuro delas.

O medo é uma doença do século XXI?

Acho que é. A Europa era tão tranquila, viajamos para Holanda, para Londres, para Paris...Hoje eu vou a Paris, e ando com alguma atenção. Estive lá recentemente e reparei que ao pé de Saint German, a rua de manhã estava quase deserta. Perguntei, mas o que é que se passa? Disseram-me que era por causa dos Coletes Amarelos.

Esse receio e medo tomou conta de nós, ficamos impotentes. Há pessoas que de uma forma também justa se revoltam, mas há alguns arruaceiros. Outros são pessoas que respeito muito, mas as coisas ultrapassaram aquilo que é possível e por isso os governos tem que ter muito respeito pelo povo e pelas pessoas que estão a passar mal.

Houve um empobrecimento generalizado da Europa e os jovens têm uma vida muito precária, os empregos são cada vez são mais frágeis, as pessoas com 50 anos ficam no desemprego e não conseguem arranjar emprego. Isto é uma situação nova. Quando acabei o meu curso, tive logo emprego no ensino. Não conseguia vender um desenho, mas consegui ensinar e ganhar como professora.

E como olha para Portugal?

Sinto que no nosso país há uma energia tão forte, há tanta gente a trabalhar bem, há tanta gente a fazer coisas que acho que nós, no nosso país, vamos, pelo exemplo dos jovens e das pessoas como eu que tenho 70 anos e ainda estou cheia de vontade de fazer muita coisa, acho que o país vai melhorar. Mas os políticos têm de estar muito atentos às transformações do nosso tempo

Acha que Portugal tem estado alerta para essas mudanças?

Acho que sim, este governo tem ministros muito sensíveis, inteligentes, íntegros que é uma grande qualidade e e isso já é muito bom. Agora é preciso lutar contra a demagogia e é preciso olhar para os artistas de outra maneira. Nós somos heróis! Veja a quantidade de acontecimentos culturais que surgem.

A Rádio Renascença está atenta, outras rádios nem tanto. Fico espantada com estas pessoas que às vezes não ganham nada com estas atividades. Ganham a realização pessoal que é mais importante. Quando uma pessoa consegue, em liberdade, ter o seu mundo e mostrá-lo aos outros e isso já é uma grande conquista.

Usando este seu meio de expressão artística, sente que continuará a ter força para reagir a este mundo atual? A inquietação fá-la criar?

Sim, a inquietação de criar situações de resistência e de não aceitação. Eu não sou uma pessoa revoltada, mas sou uma pessoa inquieta e exigente. Quando pinto não pretendo nada dos outros, só pretendo de mim. Mas depois quando as obras estão expostas, as pessoas põe-nas nestes espaços lindíssimos, como o Museu do Chiado, se isso fizer com que as pessoas se sintam mais próximas do mundo, melhor. Espero que reajam.

A grande pintura, e eu considero a minha pintura uma grande pintura, tem a qualidade de oferecer ao ser humano o que melhor o que de melhor uma pessoa faz, neste caso uma mulher. Acho que as pessoas sentem quando damos uma dádiva. Aí eles também ficam mais ricos, porque quando tenho sorte de visitar exposições de outros artistas que admiro muito, venho sempre com vontade de trabalhar imensa.

Quero chegar ao meu estúdio, grande ou pequeno e tenho que começar a trabalhar, porque é contagiante. Tal como a miséria e a desgraça também são contagiantes; a beleza e a arte também são muito contagiantes, e muito positivas

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