Ciclone Idai

Um oceano em terra. Em Moçambique, só se avista água, lama e desespero

20 mar, 2019 - 16:41 • Rui Barros com agências

Pedro, pai de três crianças, fala à BBC como se gritasse a um megafone, pede que o mundo oiça a voz de quem perdeu tudo: “Ajudem-nos. Digam ao mundo que estamos a sofrer. Não sabemos onde vamos dormir.” Autoridades temem aumento de doenças como a cólera e infeções respiratórias – e improvisar abrigos pode piorar o problema.

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“A primeira coisa que se vê quando se chega a Beira é destruição e muita água.” É assim que Get Verdonck, coordenador da equipa de emergência dos Médicos sem Fronteiras, descreve o cenário que tem pela frente. Uma cidade completamente devastada pela passagem do ciclone Idai, num país em que a ajuda aos que sobreviveram tarda a chegar e em que o nível dos caudais dos rios não parece querer baixar.

Até à tarde desta quarta-feira havia “mais de 200 mortos confirmados”, mas o número é baixo para o que se prevê que será o real balanço. É por isso que, há dois dias, o Presidente do país arriscou em falar em mais de mil mortos. Segundo contas da CNN, e a confirmar-se o elevado número de vítimas, o Idai terá sido o fenómeno meteorológico tropical mais mortífero em todo o continente africano desde que há registos.

O cenário de tragédia está por todo o lado e por isso não é fácil calcular quantas vidas a passagem do Idai pode ter reclamado.

“Não tenho nada. Perdi tudo. Não tenho comida. Não tenho um cobertor. Precisamos de ajuda”, implorava esta manhã um habitante da Beira ao repórter da BBC na cidade, uma das mais afetadas pela tragédia.

Na Beira, procura-se cicatrizar as feridas de uma catástrofe tentando retomar a normalidade.

“Aqui a vida continua. Mais ou menos. As pessoas voltaram ao trabalho e começaram a procurar comida, mas vemos árvores arrancadas por todo o lado, vemos pessoas a tentar a reconstruir as suas casas, pessoas a cobrir o buraco onde costumava estar um teto”, relata uma técnica dos Médicos sem Fronteiras.

A igreja local serve agora de abrigo aos que sobreviveram. Os ventos fortes e a chuva que continua a cair fizeram ruir parte do telhado. Mas as paredes mantiveram-se de pé e, entre estar à mercê da chuva e do vento ou ter alguma forma de abrigo, os que sobreviveram preferem ficar por ali.

Por entre estas paredes, Moçambique não sabe que o mundo está de olhos neles. E, por isso, o apelo é para que ajudem o mais rapidamente possível.

Pedro, pai de três crianças, fala à BBC como se gritasse a um megafone, pede que o mundo oiça a voz de quem perdeu tudo: “Ajudem-nos. Digam ao mundo que estamos a sofrer. Não sabemos onde vamos dormir.”

Corrida contra o tempo em Moçambique para salvar vidas e abrir vias de comunicação
Corrida contra o tempo em Moçambique para salvar vidas e abrir vias de comunicação

A ajuda está a caminho, mas poderá talvez demorar demasiado a chegar aonde é mais precisa. Segundo a reportagem do “The New York Times” no país, os aviões com bens de primeira necessidade têm chegado ao aeroporto local, mas a torrente de água que cortou estradas impede que sejam distribuídos.

A chuva, que continua a cair, continua a preocupar as autoridades, que não param de ver o nível da água em algumas regiões a subir. Há aldeias isoladas, e há locais em que o galgar dos rios converteu planícies em plenos oceanos à superfície do que antes era terra.

“Fizemos uma análise aérea e, até onde a vista alcançava, havia água”, conta Jamie LeSueur, líder da equipa de resgate do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.

O "The New York Times" fala de uma torrente de água, lama e destroços que chega à altura de um poste de eletricidade. “Encontrámos mulheres e crianças penduradas em árvores. Estamos a fazer o que podemos”, adianta um dos socorristas à BBC.

Enquanto muitos esperam por equipas de salvamento, as atenções começam entretanto a virar-se para as barragens, que até agora têm servido para controlar o fluxo dos rios. O problema é que as albufeiras estão cheias e a pressão da água começa a ser muita, em demasia.

A barragem de Kariba tem 128 metros de altura e estende-se ao longo de 579 para formar o lago Kariba. Cahora Bassa, construída ainda durante a colonização portuguesa, forma a quarta maior albufeira de África. Cada uma acumula mais de 50 anos de existência – antes da passagem do ciclone Idai, a barragem de Kariba já tinha sido identificada como uma das que precisam de manutenção urgente.

Depois da tragédia, a peste?

Sete dias depois daquela que já é considerada uma das maiores catástrofes naturais no hemisfério Sul, a falta de água potável é uma das grandes preocupações.

“É difícil encontrar água limpa", relatam os Médicos Sem Fronteiras, "em especial nas áreas mais pobres e densamente povoadas”.

“As pessoas não têm acesso a água potável e isso pode aumentar o número de diarreias, que tem logo influência na saúde dos afetados", explica à Renascença o médico João Antunes, representante dessa organização. "Depois disso, chega outro tipo de infeções, como infeções respiratórias.”

O espectro da peste começa assim a ser o maior receio das autoridades de saúde.

"As doenças transmitidas pela água [como a cólera] podem aumentar no rescaldo de um desastre como este, devido à contaminação do suprimento de água e à interrupção do tratamento usual da água", explica LeSueur, responsável pelas respostas da Cruz Vermelha Internacional na região.

A falta de um teto é outro dos problemas a precisar de resposta urgente. As pessoas juntaram-se em escolas, igrejas ou outros edifícios que oferecessem algo semelhante a um abrigo – o que, por sua vez, aumenta o risco de proliferação de doenças respiratórias. Resolve-se um problema, surgem outros.

“É difícil, nesta fase, ter uma imagem clara das necessidades médicas", diz Gert Verdonck. "Na verdade, é difícil chegar aos centros de saúde, porque as estradas estão destruídas ou porque os próprios centros de saúde estão destruídos. Acho que este é o nosso maior desafio agora.”

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  • MANUEL DA COSTA
    21 mar, 2019 SYDNEY - AUSTRÁLIA 09:01
    Infelizmente e em desfavor deste povo, muitos se irão governar à sua custa. Ver o que em Portugal acontece!
  • BATRAQUI
    20 mar, 2019 19:44
    Eis como descrever uma tragédia sem ser CMTV.

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