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Brexit. “Não saiu nenhum decreto a dizer que os ingleses vão andar descalços, vão precisar de sapatos”

15 jan, 2019 - 08:30 • João Carlos Malta

Há preocupação, mas não há alarmismo, apesar de os cenários mais negros apontarem para reduções potenciais de um quarto das exportações para o Reino Unido. Há mesmo quem já esteja a perder 70 milhões ao ano. Um retrato escrito das palavras de empresários, economistas e associações setoriais, no dia em que o Parlamento britânico vota o acordo do Brexit.

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Os dados foram lançados quando os britânicos votaram favoravelmente a saída do Reino Unido da União Europeia, mas, dois anos depois, ainda não se sabe qual a combinação de resultados que essa ação vai gerar. Os cenários são tantos e tão diversos que a postura dos empresários portugueses perante o Brexit é a “de esperar para ver”.

Fortunato Frederico, líder do grupo de calçado Kyaia, que tem na Fly London a marca-charneira da boa implementação no mercado britânico, até ironiza com o momento de indefinição: “Não saiu nenhum decreto dizendo que os ingleses vão andar descalços. Vão continuar a ter necessidade de calçar”, afirma à Renascença o empresário, no dia em que o Parlamento britânico vota o acordo do Brexit.

O presidente do grupo, que fatura 65 milhões de euros e tem fábricas em Guimarães e Paredes de Coura, diz que nada preparou para responder à saída do Reino Unido da União Europeia, “porque não sabemos o que vai suceder”.

“Estamos a trabalhar normalmente. Não vale a pena fazer projetos porque eles tanto mudam para um lado como para o outro. São autênticos cata-vento”, crítica.

No entanto, é inegável o peso do Reino Unido na economia portuguesa. É o quarto mercado mais importante para a economia nacional em bens e o principal mercado em serviços, com destaque, neste segmento, para o turismo.

"Não vale a pena fazer projetos porque eles tanto mudam para um lado como para o outro. São autênticos cata-vento", Fortunato Frederico, presidente da Kyaia.

É um mercado que vale 6,5 mil milhões de euros na soma de bens e de serviços, no período entre janeiro e setembro do ano passado, segundo os dados da AICEP.

Outro empresário nortenho do setor do mobiliário, Eugénio dos Santos, presidente da Colunex, usa uma expressão inglesa para definir como se posiciona perante a possível saída do Reino Unido da União Europeia: “Wait and see.” [esperar para ver].

“Fala-se demais sobre o Brexit e do que ele pode representar. Nós preferiríamos que não houvesse, mas, havendo, trará coisas positivas para o mercado inglês”, considera Eugénio dos Santos.

Mais Estado para haver mais empresas

Há quase quatro meses, a convite da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), o economista Augusto Mateus realizou um estudo sobre o impacto da saída do Reino Unido, avaliando vários cenários.

No pior dos casos, em que não há acordo entre as partes, a redução das exportações pode chegar aos 26%. Num cenário mais otimista, pode ficar pelos 15%. Em relação ao PIB, o impacto varia entre os 0,5% e 1%.

Augusto Mateus diz que seria preferível as empresas portuguesas não estarem à espera de ver qual o resultado final do jogo para avançarem, mas percebe que, isoladamente, pouco podem fazer. Por isso, afirma que era expectável que o Estado estivesse mais interventivo nesta altura.

“É normal que uma empresa privada, grande ou pequena, esteja numa posição de expectativa. Há muitas pessoas que pensam que vai haver um segundo referendo, que pode não haver Brexit. A partir do momento em que se confirme, as empresas vão largar essa posição de expectativa e fá-lo-ão com tanta mais força quanto maior forem os problemas, as quebras de oportunidade e novas formas de concorrência”, avalia o economista.

"Fala-se demais sobre o “Brexit”e do que ele pode representar. Nós preferiríamos que não houvesse, mas havendo trará coisas positivas para o mercado inglês", Eugénio dos Santos, presidente da Colunex.

“Acho que se tem feito bem o acompanhamento da questão europeia, mas, do ponto de vista do ajustamento que vai exigir à economia portuguesa, já devíamos ter feito mais. Vamos ter que acelerar”, afirma Mateus.

Camisas, tecidos, vestidos a perder milhões

Se, em alguns setores, os efeitos ainda não são visíveis, outros há em que já se contam milhões. Um deles é o do têxtil e vestuário.

O diretor-geral da Associação de Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP), Paulo Vaz, é perentório ao afirmar que 2016 já foi um ano de estagnação. Daí em diante, o setor está a perder 4% a 5% de quota de mercado todos os anos.

“Este ano vai pelo mesmo caminho. É um mercado que deixou de crescer e em que vemos uma retração que é mensurável”, diz.

No pico de exportações para o Reino Unido, o setor valia 500 milhões de euros ao ano, mas, agora, rende menos 70 milhões de euros anuais. O vestuário de malha, o vestuário de tecido, as malhas e as matérias-primas de alta qualidade são os produtos mais afetados.

“Para nós, representa o terceiro maior mercado de exportação. Agora, já é o quarto, foi ultrapassado pela Alemanha. É um mercado que representa 9% do total das nossas exportações”, afirma Paulo Vaz à Renascença.

Mesmo num cenário de perda, o diretor-geral da ATP diz que, neste momento, é extemporâneo avançar com cenários ou medidas.

“É preciso perceber como será fechado o acordo de saída do Reino Unido”, reitera. “Só depois de se saber o que vai acontecer, é que se podem definir estratégias”, conclui.

Metal é o maior, mas está estagnado

O sector do metal e metalurgia é o maior exportador nacional para o Reino Unido. O crescimento dos últimos anos estava a ser exponencial. Aquele era o mercado em que “havia mais expectativas”.

Nos primeiros 11 meses de 2018, houve uma redução de vendas de 0,2%, em relação a 2017, que tinha sido um ano de grande crescimento.

"Para nós representa o terceiro maior mercado de exportação. Agora já é o quarto, foi ultrapassado pela Alemanha. É um mercado que representa 9% do total das nossas exportações", Paulo Vaz, secretário-geral da ATP.

“O crescimento estava a ser muito significativo. Houve uma desaceleração, mas não chegou a cair”, diz o diretor-geral da associação do setor, a AIMMAP, Rafael Campos Pereira.

“O tipo de contrato com peças técnicas pressupõe alguma proximidade entre cliente e fornecedor”, explica o dirigente associativo que acredita que este é um fator que protege os empresários nacionais naquele mercado.

Eugénio dos Santos, presidente da Colunex, crê que a forma das empresas portuguesas se defenderem da incerteza do momento que as relações entre os países da União Europeia e o Reino Unido vivem é estar muito atento e conhecer muito bem a realidade social e politica, sabendo os impactos que estimam os que estão pró e contra.

“Depois, é preciso tomar decisões em tempo útil. Uma das decisões que pior efeitos tem, em termos empresariais, é não decidir. É preciso decidir. Quando acontecer ou não acontecer o Brexit, será preciso reagir no imediato”, enfatiza.

Sectores mais expostos

No estudo que concluiu em setembro, Augusto Mateus diz que os setores mais expostos aos efeitos do Brexit são o automóvel, a química fina e as farmacêuticas. “É por aí que temos mais dificuldades potenciais”, identifica. “A floresta e o agroalimentar são outros casos”, acrescenta.

Neste grupo entra o maior exportador nacional, a Autoeuropa, que pode ter dificuldades adicionais.

“O que pode estar em causa é que, com a saída do Reino Unido, há a perda de fatores que facilitavam a exportação da Autoeuropa para o Reino Unido e que facilitavam também uma cadeia de valor global. Um automóvel tem dezenas de milhares de peças e milhares de empresas a colaborarem umas com as outras para se fabricar um determinado modelo”, aponta.

Se olharmos pelo prisma das regiões, será no Norte e no Centro-Norte que o impacto do Brexit mais se refletirá nas trocas de bens, segundo o estudo de Augusto Mateus. Se o foco forem os serviços, aí o "GPS" vira-se para Lisboa e Algarve, com o turismo à cabeça.

Algarve ainda indefinido

A ligação da região do Algarve ao Reino Unido é histórica. Há cerca de 12 mil britânicos a viver naquela região, o que faz com que os ouvidos e os olhos dos que ali habitam esteja esta terça-feira em Londres na troca de argumentos que haverá entre a primeira-ministra Theresa May e os opositores.

O presidente do Turismo do Algarve, João Fernandes, começa por dizer que uma das primeiras consequências do referendo de julho de 2016, que se fez sentir no ano seguinte, foi a queda do valor da libra e do poder de compra dos britânicos fora do seu território.

Essa dificuldade acrescida e o clima de incerteza que gerou no consumidor britânico tiveram repercussões na procura e, assim, no ano passado, os dados do turismo algarvio representaram uma redução na procura em relação aquela proveniência.

“Apesar de tudo, no último trimestre do ano, segundo os dados do aeroporto, houve um crescimento da procura”, afirma.

No entanto, ainda não é claro que o Brexit seja o único fator a contribuir para a retração. As perturbações nas ligações aéreas entre a região e aquele mercado, com a falência da Monarch, e a retoma de mercados alternativos, como a Tunísia, a Turquia e a Grécia, baralham as contas.

Os britânicos valem 40% dos 13 milhões de dormidas no ano passado, até outubro. Por isso, João Fernandes diz que o plano tem sido trabalhar com os agentes do turismo, mas também com investidores e residentes estrangeiros.

“Eles influenciam terceiros. São 12 mil e geram muitos fluxos diferidos com os 'relatives and friends'. São muito importantes para a região”, confessa.

Em Lisboa, com sete unidades hoteleiras, a Shiadu também sente a quebra de visitas de ingleses. O sócio-gerente, Alexandre Testagrossa, um francês radicado em Portugal há décadas, fala de uma tendência que era forte e que se perdeu com o anúncio do Brexit.

“A maior parte dos ingleses viaja no fim de semana. Dois, ou três dias. O Brexit tirou-lhes a vontade de vir cá, num avião barato e para um hotel barato. No caso das férias espontâneas, o nosso melhor negócio, em que o cliente reserva 30 dias antes de viajar, uma situação destas tem impacto”, refere.

"A maior parte dos ingleses viaja no fim-de-semana dois, ou três dias, e o Brexit tirou-lhes a vontade de vir cá, num avião barato e para um hotel barato", Alexandre Testagrossa, sócio-gerente da Shiadu.

No ano passado, o peso dos ingleses caiu de 9% para 6% no global de reservas do grupo. “A libra perdeu valor e qualquer situação de incerteza num país faz com que as pessoas deixem de querer viajar”, reitera o empresário.

O vinho pode ser trocado por novos mundos?

Outra ligação centenária entre Portugal e a Inglaterra é a criada pelo vinho e pela região do Douro. O cálice de Porto está presente em muitas mesas britânicas e os vinhos de mesa começavam a ganhar peso.

Sophia Bergqvist, sócia-gerente da Quinta de la Rosa, formada em Cambridge e que passa o seu tempo entre o Reino Unido e os vales e montes do Douro, relata que o que mais a preocupa é o impacto na economia inglesa do Brexit.

“Se as pessoas têm menos dinheiro, saem menos e compram menos vinho. As vendas vão baixar”, afirma.

Há uma outra dinâmica que preocupa Sophia: “A concorrência vai ser difícil com os vinhos do novo mundo. Vai ser difícil para Portugal."

Os vinhos portugueses estão a ganhar fama no Reino Unido, mas uma relação cambial menos favorável do que com outras moedas como a australiana, a chilena ou neozelandesa pode ser sinónimo de perda de competitividade.

Na mesma região, a CEO dos Lavradores de Feitoria, Olga Martins, teme as questões tributárias. “Podem prejudicar a entrada dos vinhos e onerá-los mais. Há um problema económico e social que se vai refletir no consumo, não sendo este um bem de primeira necessidade”, explica a empresária.

Apesar de ainda não sentir efeitos do Brexit na Lavradores da Feitoria, Olga Martins diz que o importador “está apreensivo”.

“Na preparação do ano e dos objetivos, ele está muito conservador. Tem receio que o país entre num problema económico que vá afetar os nossos produtos”, explica.

Na região, a empresária diz que “está toda a gente um pouco apreensiva”.

“Há, aliás, muitas empresas detidas por famílias inglesas, que têm parte do seu negócio lá e parte cá. Nas unidades que se dedicam ao vinho do Porto, há uma grande preocupação de que o negócio venha a mudar”, avalia Olga Martins.

Olhar para quem perde para ganhar

Às empresas portuguesas e aos organismos públicos virados para as exportações, o economista Augusto Mateus pede que olhem para o outro lado da tragédia que “é sempre que se destrói uma relação que gerava produção e trocas”.

Mateus defende que há aqui uma oportunidade para “fazer um esforço de diversificação dos mercados”.

"Se nos prepararmos adequadamente até podemos beneficiar de ter melhores soluções do que outras economias que também vão perder, Augusto Mateus, economista"

“O Brexit pode orientar-nos para os grandes países emergentes - o Japão, os países mais desenvolvidos da América do Norte e da CPLP, e da América do Sul - e perceber que possibilidades ali existem”, aponta.

Estes mercados terão problemas nas relações com o Reino Unido e Portugal podia tentar substituir os britânicos em algumas áreas de negócio.

“Se nos prepararmos adequadamente, até podemos beneficiar de ter melhores soluções do que outras economias que também vão perder. Podemos produzir e exportar o que outros vão deixar de fazer. Temos é de estar atentos, e aumentar a competitividade da nossa economia”, remata Augusto Mateus.

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