Um ano de #MeToo

#MeToo não chegou a Portugal. "Sem sanção pesada, o assédio parece compensar"

12 nov, 2018 - 12:47 • Joana Gonçalves

Este ano, a CGTP recebeu centenas de denúncias de assédio, mas apenas quatro chegaram à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, nenhuma delas por assédio sexual.

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Se nos Estados Unidos, nos últimos 12 meses, mais de 200 figuras de altos quadros perderam o emprego por acusações de assédio sexual, por cá o número de queixas apresentadas à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) é irrisório.

Em 2017, a CITE recebeu uma queixa por assédio sexual e uma outra por assédio sexual e moral. Este ano, até ao dia 30 de setembro, foram apresentadas três queixas por assédio sexual e moral, uma por assédio moral e nenhuma por assédio sexual.

Os números são semelhantes aos da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). Os dados referentes a 2018 não são ainda conhecidos, mas no ano passado a ACT recebeu 200 pedidos de intervenção relativos a situações de assédio no trabalho.

Destas duas centenas, apenas 24 resultaram em processos de contraordenação – somente dois deles relativos a assédio sexual.

Os valores contrastam, em muito, com a realidade norte-americana. Há precisamente um ano, Hollywood foi palco da primeira manifestação a favor do movimento #MeToo, lançado no mês anterior, em outubro de 2017, nascido como sinónimo de luta contra a violência e assédio sexual.

Centenas de mulheres marcharam pelo passeio da fama, em protesto contra os então recentes casos de assédio e agressão sexual denunciados na imprensa, que envolviam inúmeras figuras do universo cinematográfico.

Harvey Weinstein foi o primeiro a ser denunciado por mais de uma dezena de mulheres, numa série de reportagens publicadas pela revista "The New Yorker". Seguiram-se o ator Kevin Spacey e o comediante Louis CK, numa lista incompleta que soma políticos, gestores médicos e empresários.

Desde então, as redes sociais foram o palco que projetou a queda de mais de duas centenas de homens e mulheres de altos quadros nos Estados Unidos. Em Portugal, contudo, o #MeToo parece não ter ganho expressão e o número de denúncias levanta a questão: será que somos um país excepcional, onde o assédio sexual não é uma realidade?

À Renascença, Fátima Messias, coordenadora da Comissão para a Igualdade entre Mulheres e Homens da CGTP-IN, garante que não é esse o caso.

Falta de confiança numa resposta judicial favorável à vítima

Dados do estudo nacional mais recente, respeitantes a 2015 e 2016, revelam que cerca de 13% dos mais de 1.800 inquiridos já foram alvo de assédio sexual no local de trabalho, um valor que ultrapassa em muito a média europeia, de 2%.

“Poucas são as reuniões com os trabalhadores e os plenários, em vários setores, incluindo administração pública, em que não há relatos de situações e processos de assédio”, adianta Fátima Messias.

Ainda assim, o número de queixas está longe de traduzir esta realidade.

Para a coordenadora da CGTP-IN, o atraso ou recuo na denúncia prende-se com a falta de confiança “de que [a queixa] possa surtir efeitos em termos legais, em termos de Autoridade para as Condições do Trabalho”, a favor da vítima.

“Esse receio da perda do emprego e a precariedade dos vínculos laborais aparecem muitas vezes como obstáculos a um número de denúncias e de casos resolvidos que se aproxime da dimensão do problema”, acrescenta.

Joana Gíria, presidente da Comissão para Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), discorda.

“Eu penso que não há motivo para haver falta de confiança nas entidades estatais que têm competência para essa área e para outras. A publicação das alterações à lei laboral e à lei do trabalho em funções públicas teve como intuito aumentar a prevenção e o combate ao fenómeno”, esclarece.

Em Portugal, as alterações foram “insuficientes”

Em outubro de 2017 entrou em vigor a lei n.º 73/2017, onde se estabelece um regime de proteção para o denunciante e para as testemunhas em situações de assédio.

As empresas que operem com sete ou mais trabalhadores passam a ser obrigadas a adotar um código de boa conduta para a prevenção e combate ao assédio no trabalho e a instauração de procedimentos disciplinares em situações de denúncia de assédio no trabalho passa, também, a ser obrigatória.

Alterações positivas mas “insuficientes” para Fátima Messias. A sindicalista acredita que esta foi uma "oportunidade perdida", com base em três aspetos distintos.

Por um lado, a inversão do ónus da prova, "que permitiria às vítimas terem a confiança que hoje ainda não existe, já que caberia à entidade infratora, ou ao assediador ou assediadora, ter de provar que não o era". Por outro, "a criminalização dos infratores e das entidades infratoras".

Por fim, continua a existir a necessidade de desenvolver uma estratégia de intervenção, no seio da ACT, que "de facto penalize os infratores e as respetivas entidades".

"Enquanto a sanção ou a pena não for pesada, parece que compensa haver situações de assédio", defende a dirigente sindical.

No último ano, a CGTP recebeu centenas de denúncias de assédio e Fátima Messias garante que são cada vez mais as que chegam.

"Nós não temos essa contabilização feita, mas uma coisa é certa: há centenas de casos que continuam a chegar à CGTP e a serem remetidos para as organizações que diretamente podem apoiar. Cada vez há mais”, esclarece.

“O assédio sexual e moral não tem fronteiras muito estanques”

De acordo com a coordenadora da Comissão para a Igualdade entre Mulheres e Homens da CGTP, a maioria das denúncias que chegaram à unidade sindical diz respeito a situações de assédio moral no local de trabalho.

“A quase totalidade dos casos que nos chegaram foram de assédio moral e tiveram origem nessa base", garante Fátima Messias.

Apesar de a grande maioria se referir a situações de assédio moral, a dirigente sindical relembra que a fronteira entre assédio sexual e moral nem sempre é clara.

“O assédio sexual e moral não tem fronteiras muito estanques. Muitas vezes começa por ser uma situação de assédio sexual que se transforma em assédio moral”, explica. “A recusa da vítima assediada sexualmente faz com que, se o assédio sexual provém de uma chefia ou de alguém hierarquicamente superior na empresa, comece a ser prejudicada, penalizada nos prémios, na forma como é tratada, até em termos pecuniários, porque não respondeu positivamente a todos os convites sexuais que lhe foram dirigidos. Portanto a fronteira entre um e outro muitas vezes desvanece-se.”

E se nem sempre é fácil fazer esta distinção, mais complicado pode ser compreender a diferença entre conflito laboral e assédio.

“Embora não haja muitas queixas formalmente colocadas à CITE, há muitos pedidos de informação sobre a matéria" , adianta Joana Gíria.

A presidente da CITE admite que movimento #MeToo, eleito figura do ano pela revista TIME em 2017, acendeu o debate público e contribuiu para o aumento na procura de informação e mecanismos de defesa em Portugal. Mas por que motivo não fomos mais longe?

"Para se aderir a um movimento é preciso conhecê-lo bem"

Por cá, os debates em torno da violência e assédio sexual foram dominados pela recente polémica de Cristiano Ronaldo, suspeito de ter violado a norte-americana Kathryn Mayorga, e pela decisão do Tribunal da Relação do Porto que invocou "sedução mútua" e "mediana ilicitude" perante um caso de violação de uma jovem inconsciente.

No primeiro caso assistimos a uma manifestação pública de empatia e defesa do “herói nacional”, como é muitas vezes apelidado. No segundo, testemunhámos um episódio que traduz e credibiliza alguns dos maiores receios de uma vítima de violência sexual.

Ao contrário de países como a China e os Estados Unidos, em Portugal o #MeToo parece ter passado sem criar raízes.

Fátima Messias reconhece a importância do movimento, mas acredita que o desconhecimento do desfecho dos processos mais mediáticos pode justificar a fraca adesão dos portugueses.

“O problema surge quando estes movimentos se generalizam e popularizam, não vão à origem do problema e se limitam a constatar os efeitos. Para qualquer movimento é fundamental identificar as causas do problema e, se possível, as soluções. Não basta conhecer os efeitos”, explica.

Para a dirigente sindical, estamos perante uma “série de denúncias de várias pessoas, mas depois não se sabe exatamente o que é que representam”.

“Como é que se ultrapassou o problema? São denúncias pura e simplesmente feitas em termos públicos?”, são dúvidas que ficam e podem levantar obstáculos à adesão.

A presidente da CITE vai mais longe. “Eu não sei se há um conhecimento profundo por parte da população portuguesa sobre o que é o movimento #MeToo. E, portanto, também não sei se as pessoas aderem a movimentos que não conhecem bem”, completa.

Apesar das várias lacunas apontadas, Joana Gíria e Fátima Messias reconhecem um aumento significativo na procura de informação e mecanismos de defesa perante situações de assédio.

Em Portugal, este já não é "um assunto escondido", mas ainda não se libertou da sombra.

Comentários
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  • p/P/CLHO
    13 nov, 2018 11:54
    Oh p.coelho, então onde stá o meu comentário, que já fiz, tem mais de uma hora? NOJENTO!
  • P/RRenasc
    13 nov, 2018 11:25
    Então o que é que o meu comentário tem de mal para ser censurado? Que respeito é que têm vocês pela opinião dos outros? Vocês são a vergonha da democracia
  • J.D.F
    13 nov, 2018 10:43
    O me too dos estados unidos, para mim, perde toda a credibilidade. Quando se denuncia assédios que passaram décadas, ainda por cima com famosos ou ricalhaços, aqui não se está a tentar fazer justiça, mas sim se apostando no oportunismo, como até passa ao ridículo. Além disso, as razões já estão referidas a baixo, por quem já comentou. As violações deveriam ser punidas, mas na altura e com uma justiça justa, rápida e eficiente. Querer-se comparar com a dos e.u. não me parece que tenha qualquer lógica.
  • Destro
    12 nov, 2018 Dorna 21:46
    A razão é simples! Os patrões portugueses têm pouco dinheiro para indemnizar as meninas!! Não compensa gastar dinheiro em tribunais e advogados!
  • Anónimo
    12 nov, 2018 16:56
    E mesmo a esquerda não está muito bem representada, com reaccionárias como a Raquel Varela...
  • Anónimo
    12 nov, 2018 16:55
    Como "juízes" que absolvem violadores... Se é que se lhes pode chamar juízes pois para mim quem absolve violadores não merece ser apelidado de humano.
  • Cidadao
    12 nov, 2018 Lisboa 15:57
    Por cá não pegou, por razões simples: não há dinheiro para indemnizações milionárias, o recurso à Justiça é caro e esta demorada, embora as redes sociais fervilhem com estas notícias, em tribunal que é o que verdadeiramente conta, pois no resto as pessoas acabam a encolher os ombros com um "ela estava a pedi-las", em Tribunal é difícil provar assédio, mas é fácil processar por difamação, os "ajustes de contas" e as "baixas vinganças" que entre queixas legítimas, também existem e não tão poucos como isso, geralmente fazem ricochete e as consequências que recaem sobre a queixosa/queixoso, acabam a condicionar queixas que podem ser legitimas mas que as pessoas hesitam em levar adiante ao verem o sucedido a outros. Por tudo isto, não me admira que por cá não pegue ...

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