Carlão. "Se houvesse um Instagram na minha adolescência, tinha-me passado um bocado"

28 set, 2018 - 11:00 • Inês Rocha

Já ultrapassou a fase “Pacman dos Da Weasel”, mas continua a trazer-nos “entretenimento” com as suas rimas. Hoje com duas filhas, “mais peso e menos cabelo”, Carlão sente necessidade de alertar as novas gerações para o “jogo de aparências” em que se transformaram as redes sociais.

A+ / A-
Carlão. "Se houvesse um Instagram na minha adolescência, tinha-me passado um bocado"
Carlão. "Se houvesse um Instagram na minha adolescência, tinha-me passado um bocado"

Para que serve a música que ouvimos? É para nos fazer pensar? É para sentir? Ou é para nos entreter? As perguntas ecoam na cabeça de Carlão “há muitos anos”. Desta vez, decidiu pô-lo em rimas.

“A minha carne e o teu sangue dão alimento / (entretenimento, entretenimento), / Genocídio na playstation, sem acanhamento / (entretenimento, entretenimento), / Telenovela mexicana, Trump e mais um drama / (entretenimento, entrenimento),/ Vem a bola, bifana, sextape, fama”.

A ideia que deu nome ao álbum, “Entretenimento?”, lançado este mês e com apresentação marcada para este sábado, em Almada, tem “várias camadas”. O ponto de interrogação não está lá por acaso. Carlão não dá respostas, prefere as perguntas.

O que é o entretenimento hoje em dia? “Vejo tantas coisas a serem comunicadas e vendidas como entretenimento que parece que vale tudo. Mais do que isso, parece que há uma tendência grande em comunicar as coisas como entretenimento. Mastigá-las muito, para as pessoas não pensarem muito”, diz à Renascença.

Carlão não despreza a ideia de entretenimento original. “Ser um bom entertainer é uma coisa maravilhosa”, considera. No entanto, vê uma “sofreguidão e urgência” no meio musical, que torna tudo “muito descartável”. “Aí não me revejo, nesse lado do entretenimento. É muito superficial”.

O rapper admite que “talvez fosse mais feliz” se se deixasse ir na corrente e se transformasse na “máquina de fazer jingles” que critica nas suas letras. “Não pensava muito, fazia logo - pim pim pim”, brinca.

No entanto, como diz em “Até Já”, o último tema do álbum, fazer um disco arranca-lhe sempre um pedaço. É um trabalho desgastante. “Por um lado, pelo trabalho mental, o estar completamente embrenhado numa coisa, acordar e estar o dia todo a pensar naquilo. Se for preciso, a meio da noite ainda estou a pensar”, conta à Renascença.

“Depois, muitas vezes eu falo ali de assuntos dos quais não falo em lado nenhum nem com ninguém. Depois meto-os numa letra, canto e aquilo fica ali, fica para sempre e vou repeti-lo muitas vezes. Cada vez que faço isso é quase uma terapia que é feita à frente de muita gente. Isso, por um lado, liberta-me, e por outro também me fragiliza um bocado. É assim meio estranho”, explica.

Hoje, fazer um álbum é ainda mais cansativo porque a disponibilidade do músico não é a mesma. O papel de pai toma-lhe muito tempo. “Para o bem e para o mal, o facto de ter filhas influencia bastante. É maior o bem que elas me fazem do que o mal, que é a falta de tempo, muitas vezes”.

“Mas é tempo que eu quero ter com elas, não é um tempo que elas me imponham. Acho é que para ser bom pai, tenho que estar lá em alturas que façam sentido e não só ao jantar e deitar”.

Em “Entretenimento?”, a veia cronista de Carlão (Pacman para quem ainda não ultrapassou a fase Da Weasel) está bem presente – mas se, em 2004, Pacman escrevia sobre o seu vício num jogo de computador como escape para a “telemetria” do tempo do Big Brother, o Carlão de 2018, com duas filhas pequenas, “mais peso e menos cabelo”, sente necessidade de alertar as novas gerações para os perigos do Instagram.

“O mundo gira e tu atrás / Sempre a ver se estás / Bonito na fotografia / Toda a hora todo o dia / #demasia”.

A música “#Demasia” é isso mesmo, um alerta às novas gerações. “O que me preocupa é que, enquanto pessoa do século passado, nascido nos anos 70, vivi muitas coisas diferentes, consigo perspetivar bem. Mas um adolescente ou uma criança não consegue. Já nasceu no meio deste estado de coisas”, diz o músico, que vê no Instagram um “jogo de aparências” e uma “lógica do lado bonito da vida, muitas vezes falseado”.

Carlão não despreza a rede social como ferramenta de trabalho e lembra a ironia: “A maior ferramenta para promover o #Demasia foi o Instagram”.

No entanto, o músico nota que, para os mais novos, o Instagram é muito mais do que isso. “Tens putos que são completamente agarrados, os códigos são todos à volta daquilo. Isso assusta-me um bocado”, confessa.

“Preocupa-me um pouco esta ditadura dos likes, das partilhas, da tua imagem. A adolescência já é horrível, muitas vezes. Tem lados horríveis, muita insegurança, muita pressão. O corpo a transformar-se.. para mim a adolescência já foi bem complicada”, lembra.

“Acho que, se tivesse havido um Instagram nessa altura, teria sido muito pior para mim. Eu sou esse tipo de pessoa que se calhar tinha-se passado um bocado”, brinca.

Carlitos, Carlão, Pacman e Carlão outra vez. “Não estamos a falar de heterónimos”

Quando era adolescente, Carlão chegou a ser Carlitos. Não passou a Carlão por ser grande, foi exatamente ao contrário. “Quando começaram a chamar-me Carlão era a gozar, porque era muito pequenito no meio de pessoal bem mais velho. A minha identidade é essa, é onde me revejo mais. É como os meus amigos me tratam, é aquilo que eu sou”, conta.

“Pacman” veio com os Da Weasel. “Eu e o meu irmão assumimos nomes em inglês porque vivíamos muito vidrados no universo norte-americano. Queríamos pertencer um bocado àquilo. Provavelmente, se os Da Weasel tivessem aparecido dois ou três anos depois, chamar-se-iam Doninha, ou outra coisa qualquer, e eu já seria o Carlão. Não teria arranjado o nome.”

Uma diversidade de nomes que correspondem a diferentes fases da vida e não a identidades. “Não estamos a falar de heterónimos tipo Fernando Pessoa, em que os personagens eram bastante distintos uns dos outros. Obviamente que não sou a mesma pessoa que era há 20 anos, mas não sou também tão diferente. A não ser o peso. E a falta de cabelo”, brinca.

Com os Da Weasel, Carlão aventurou-se pelos mais diversos géneros musicais. Ao hip hop, a banda juntou o hard rock, o reggae, o funk. “Eu sempre disse isto ao longo da minha vida, quando me perguntavam de que tipo de música é que gostava. Sempre respondi ‘Da boa’”.

Hoje, o rapper continua a não gostar de se encaixar num estilo musical. Se no último álbum a solo, “Quarenta”, já reuniu referências musicais muito distintas, “Entretenimento?” é ainda mais diverso. Ainda assim, o feedback que tem do público é que gosta do álbum como um todo.

“Hoje em dia há mais abertura, as pessoas já não ouvem só um determinado estilo. Mas é verdade que ainda tens grupos que se dedicam mais a um estilo”.

“Queria um tema do Zambujo. Não queria chamá-lo para cantar um refrão”

Neste álbum, há António Zambujo e Manel Cruz. Há também Bruno Ribeiro, Slow J e João Nobre (o irmão, mais conhecido por Jay-Jay).

Zambujo trouxe a sua sonoridade (uma mistura de fado com bossa nova) para o álbum. “Eu disse-lhe que gostava muito de ter um tema dele mesmo, não queria aquela coisa de o chamar para cantar um refrão”, conta Carlão. “Ele arranjou a melodia dos versos, mandou-me, eu gostei muito, escrevi logo para ela”, explica.

Carlão gostou particularmente do processo. “A gravação foi muito gira. Gravámos numa cabine, apenas com um vidro a separar, por questões técnicas. Fizemos como se estivéssemos a cantar um para o outro, estávamos a sentir a coisa. O segundo take é o que está no disco”.

“Fiz questão de deixar lá as nossas vozes a reagir ao tema. É algo que hoje em dia, pelo menos para mim, já não é muito usual. Principalmente com convidados que têm vidas muito atarefadas, é muito fácil fazer as coisas por e-mail. As coisas dão-se dessa forma. E é porreiro ter esse lado”, diz o músico.

Com Manel Cruz, a viver no Porto, o processo foi diferente. “Aí foi mais a história dos mails. Mas também com ele não precisava tanto disso, porque já gravei algumas vezes com o Manel. Já o conheço há muitos anos. Não senti tanta falta disso”.

A canção “Cerejas, Só Isso” é uma composição do ex-vocalista dos Ornatos Violeta. “Também queria ter ali o ADN dele, não só da voz mas da música, da composição. Acho que se criou ali um híbrido interessante”, conta Carlão.

Olhando para o disco como um todo, Carlão está orgulhoso. Do público, tem ouvido feedback muito positivo. “Já me vieram dizer ‘não me leves a mal, mas gosto muito mais deste do que do ‘Quarenta’. Pá, a ideia é mesmo essa”, diz, entre risos.

“Eu gostava que cada disco que eu fizesse fosse melhor que o anterior. É uma coisa que, em relação aos Da Weasel, eu acho muito fixe”, admite o rapper.

“Apesar de haver aqueles fãs que conheciam a banda no início, antes de se tornar grande, e deixaram de gostar porque deixou de ser a banda deles para passar a ser a banda de muita gente... eu acho que o último disco dos Da Weasel é o mais bem feito. É o que tem melhores canções, é o mais equilibrado, está mais bem tocado, cantado, rimado...”

“Isso deixa-me de coração cheio em relação à banda”, revela. “Para mim, há sempre essa vontade de fazer mais e melhor”.

E agora? “Quero tocar muito, até me fartar deste disco e fazer outro”

Este sábado, às 21h30, Carlão apresenta o novo álbum na terra que o viu crescer, no Teatro Joaquim Benite, em Almada.

Para os próximos meses, o plano é tocar. “Agora há um processo giro que é pegar nos temas do disco e tocá-los com a banda. Eles ganham sempre uma cor nova”.

O músico diz estar contente com este trabalho e quer divulgá-lo. “Não tenho grandes objetivos que sejam diferentes de tocar muito, até me fartar deste disco e fazer outro”.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+