Reportagem no hospital colombiano à beira de colapso para ajudar venezuelanos. “Se não tivesse vindo, o meu filho ia morrer”

18 mar, 2019 - 19:15 • Mia Alberti, em Cucutá, Colômbia

O Hospital Universitário Erasmo Meoz, na cidade colombiana de Cucutá, é a única luz para milhares de pacientes venezuelanos. Em dois anos, o número de atendimentos aumentou sete vezes.

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O sol colombiano do fim de tarde entra devagar pelo pátio da ala pediátrica do Hospital Universitário Erasmo Moez, embalando os mais pequenos que aqui esperam ao colo das suas mães.

De olhos esbugalhados e rostos magros, a maior parte destas crianças são venezuelanas. Os seus pais encontraram aqui a ajuda que o seu país há muito não lhes pode dar.

“Se eu não tivesse vindo, o meu filho ia morrer”, conta à Renascença Núria Garcia mãe de José, um menino de nove anos com uma ferida no pé gravemente infetada. Ela e o marido atravessaram a fronteira entre a Venezuela e a Colômbia naquele dia, através das “trochas”, trilhos ilegais altamente patrulhados. Desde que os dois países fecharam a fronteira, em fevereiro, a passagem ilegal tornou-se a única opção para famílias como a de José.

“Nós fomos ao hospital lá, mas disseram-nos para vir para aqui porque lá não há nada”, explica Núria. “Não há medicamentos, não há gaze, nem anestesia”. José escuta a conversa sentado numa cadeira de rodas enquanto Núria o inscreve nas urgências. No dia seguinte vai receber a cirurgia que lhe vai salvar a vida.

Histórias como a de Núria e o seu filho são frequentes na sala de espera deste hospital fronteiriço na cidade colombiana de Cucutá. Aqui, a exceção passou a ser a regra e não há ninguém que não tenha uma história trágica para contar. Entre os que aqui passam há uma mulher diagnosticada com cancro há vários meses sem tratamento, uma criança com leucemia avançada, um homem vítima de um AVC num hospital sem máquinas em funcionamento, inúmeras mães e pais que deixaram as famílias para um tratamento de vida ou de morte.

Apesar do Governo de Nicolas Maduro ter impedido a publicação de estatísticas sobre o estado do país, sabe-se que milhares estão sem assistência médica desde o início da crise que assolou o país em 2016. Doenças já ultrapassadas como a difteria ou o sarampo voltaram a matar. Mais de 400 mil casos de malária foram registados em 2017 e 87% de pacientes com HIV estão sem tratamento.

Na maior parte dos hospitais já não há água, nem luz, e faltam até os produtos mais básicos como o desinfetante, seringas ou morfina - que pode custar até dois salários mínimos. Milhares de venezuelanos são empurrados diariamente a procurar ajuda em países vizinhos, como a Colômbia.

“O que eles mais precisam são cuidados de saúde” explica Gregoria Eugenia, chefe da ala pediátrica. A enfermeira, de estatura baixa, usa um chapéu branco com uma cruz vermelha e fala com simpatia e amizade com os seus pacientes.

“Como seres humanos isto afeta-nos. Tentamos apoiá-los sempre, mas às vezes também nos faltam os recursos. Mas estamos sempre dispostos a ajudá-los”, diz à Renascença enquanto vai passando pelas várias salas do seu serviço. Alia dezenas de crianças repousam em camas rodeadas de mosquiteiros, sob o som constante do ar condicionado. Muitas delas estão visivelmente desnutridas. Ao seu lado, os pais aguardam, sentados, com ar cansado, guardando grandes sacos e malas com os seus pertences. Alguns atravessaram a fronteira sem data de retorno e trouxeram tudo o que podia.

“A maioria das crianças chega com desnutrição, diarreia, gastrites, cancro, leucemias. Muitos pacientes com dengue, sarampo”, diz Gregoria. Ela tem assistido ao aumento exponencial de pacientes do país vizinho, muitos chegam “com tratamento inadequado” e, em alguns casos, é até tarde demais.

Cancros são os "casos mais preocupantes"

Entre crianças e adultos os casos mais preocupantes neste hospital são os pacientes com cancro. Na Venezuela a quimioterapia é quase impossível. Os medicamentos simplesmente não estão disponíveis ou são demasiado caros para quem os consegue encontrar.

Mas para muitos a chegada a este hospital na Colômbia não lhes trará mais conforto. Aqui não há serviço de oncologia.

Jenny Peña, a chefe do serviço de urgência e médica há 30 anos na instituição, diz que a situação dos pacientes oncológicos é “lamentável” porque chegam “com o cancro em estado muito avançado”, depois de meses sem tratamento.

“Tentamos fazer algo por eles, mas é difícil e ainda por cima não temos programas oncológicos. Apenas podemos estabilizá-los e cuidar deles, tentar dar-lhas alguma qualidade de vida”, diz.

O serviço de Peña está extremamente sobrecarregado. Sobretudo depois do fecho da fronteira em fevereiro ter causado confrontos entre manifestantes e forças Venezuelanos, que continuam a fazer feridos todos os dias.

Do lado de fora da sala das urgências dezenas de pessoas encostam-se ao vidro à espera para entrar. À porta, um guarda segura a lista de nomes de quem vai passar e tenta controlar os empurrões de quem tenta passar à frente.

Dentro da sala de espera o ar é abafado e as camas amontoam-se, preenchendo todos espaços livres. Alguns pacientes dormem anestesiados, com os pés pendurados fora das macas. Outros, de roupas ensanguentadas, lamentam-se dos seus ferimentos. Dezenas de médicos como Jenny passam de um lado para o outro, falando com familiares que lhes agradecem profundamente, assinando papéis ou segurando raios x à luz das lâmpadas dos corredores.

Em 30 anos de serviço, Jenny diz que nunca viveu nada assim.

“Nós temos 75 camas, ou seja, podemos hospitalizar 75 pessoas. Mas diariamente nos últimos dois anos, temos sempre mais de 100 pessoas hospitalizadas. Temos sobrecarga de trabalho e de capacidade”, diz.

À beira de um colapso

O Hospital Universitário Erasmo Meoz é o único na região que pode assistir os migrantes venezuelanos. Em 2016, no início da crise violenta na Venezuela, este hospital recebia à volta de 2.300 pessoas do país vizinho. Agora, esse número é sete vezes maior. O ano passado o hospital atendeu 14.300 pacientes venezuelanos, um número que continua a aumentar exponencialmente e que está a levar o hospital aos seus limites.

“Neste momento temos uma dívida de 13 milhões de dólares”, explica Juan Agustin Ramirez. O gerente do hospital explica que o Governo nacional “comprometeu-se a cobrir os custos com os pacientes Venezuelanos, que até agora são 25 mil pacientes no total.”

“Mas o Governo disse-nos que já ultrapassámos a capacidade económica do Governo para esta crise, e dizem que vão pedir ajuda internacional”, conta. “Portanto estamos à espera.” Em poucas semanas, diz Ramirez, o hospital terá que parar de pagar ordenados e pode até fechar portas.

A dimensão do desespero dos venezuelanos e da tarefa dos colombianos neste hospital, retrata-se na ala de obstetrícia. Aqui, já nascem mais bebés venezuelanos que colombianos.

Na pequena sala de espera, dezenas de mulheres grávidas embrulham-se em mantas para se protegerem do ar condicionado demasiado forte. Todas elas têm mais ar de menina do que mulher e quase todas são venezuelanas.

Wendy, de 23 anos e grávida de 38 semanas, também teve que atravessar a fronteira de urgência naquele dia. Quando as suas águas se romperam e começou a ter dores intensas, os médicos na Venezuela disseram que ela só tinha uma opção: atravessar a fronteira ilegalmente e procurar ajuda na Colômbia.

“Eles descobriram que a minha bebé está com os pés para baixo. E lá eles não têm nada, nem conseguem fazer uma cesariana”, conta assustada, a voz quase por um fio.

Na Venezuela, a mortalidade infantil aumentou 30% nos últimos anos. E o número de mulheres que morrem no parto aumentou 60%, segundo os últimos dados disponibilizados pelo Governo. Se Wendy não vivesse perto da fronteira e deste hospital, não teria como fazer uma cesariana. A única opção seria ter um parto normal, mesmo com o bebé virado de pés. A probabilidade de os dois sobreviverem seria mínima.

Juan Agustin Ramirez diz que muitas mulheres chegam aqui no fim das suas gravidezes sem terem tido qualquer acompanhamento, por não o conseguirem no seu país, “tornam-se pacientes de alto risco automaticamente”.

“Também vemos um aumento de doenças sexualmente transmissíveis como a sífilis, e de recém-nascidos com infeções intrauterinas”, diz Ramirez. Na Venezuela, a pílula e o preservativo são hoje produtos raríssimos de se encontrar.

A luz ao fundo do túnel

Apesar do nervosismo na sala, cada Venezuelana fala com um sorriso para os médicos e as enfermeiras que ali passam. Afinal, uma coisa é finalmente certa: graças a estas equipas, aqui poderão ter os seus bebés em segurança. Ao lado de Wendy está sentada Carla, ainda mais nova. Tem 22 anos e está grávida de 40 semanas de uma menina. Ainda não decidiu o nome, mas gosta de “Charlotte e Daynara”.

Carla sabe que aqui poderá ter o seu bebé em segurança, mas não deixa de sentir a mágoa de não poder ver nascer a sua filha no seu país, um desejo e uma esperança em comum entre quase todas estas mulheres.

“É muito difícil deixar o nosso país por outro onde sofremos, passamos necessidades. Estou cá há um ano e tem sido difícil”, conta à Renascença. “Agora tenho trabalho e foi-me dada uma casa, mas queria ter a minha filha lá. Porque é o meu país e quero que os meus filhos sejam de lá.”

A noite vai caindo sobre o Hospital Erasmo Moez, mas os pacientes continuam a chegar. Para eles, este hospital é a luz ao fundo de um longo túnel.

Milhares de venezuelanos deixaram tudo para aqui tentarem uma última hipótese de sobreviverem. Mas com o hospital a aproximar-se rapidamente de um abismo, poderá ter de fechar as portas em apenas poucas semanas.

Se isso acontecer, será mais uma tragédia na maior crise migratória de sempre na América Latina, e o fim da última esperança para milhares de venezuelanos.

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  • J R ortigao
    18 mar, 2019 Meia 22:13
    Como é possivel haverem partidos apoiantes de maduro certamente pirque gosta ds morte?

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