Andrés Malamud

“A Venezuela destruiu-se”. Agora restam dois cenários: piorar pouco ou piorar muito

08 fev, 2019 - 12:45 • Joana Gonçalves

No último mês morreram 28 pessoas em protestos no país. Aos 19 anos, Juan Rafael Torres, estudante na Universidade de Yacambú, faz parte da lista do Observatório Venezuelano de Conflituosidade Social (OVCS). Foi morto a tiro num protesto na cidade de Guanare, a 23 de janeiro.

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Na Venezuela, a clássica divisão política entre esquerda e direita chegou ao fim. Deu lugar ao confronto entre democracia e autoritarismo. De um lado Maduro, do outro uma oposição unida contra o ditadura instaurada no regime.

A 23 de janeiro Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, autoproclamou-se Presidente interino do país. No mesmo dia, Nick Samuel Borges, jovem de 18 anos, foi morto a tiro num protesto em Caracas.

Como ele, também, Juan Rafael Torres, de 19 anos, e Johnny Jesus Vega, de 23, ambos estudantes na Universidade de Yacambú, na cidade de Guanare.

Em pouco mais de um mês, morreram pelo menos 28 pessoas em protestos na Venezuela, o dobro das mortes registadas em todo o ano de 2018, de acordo com o Observatório Venezuelano de Conflituosidade Social (OVCS). Mais de metade das vítimas tem menos de 25 anos.

“A Venezuela destruiu-se”. Agora restam dois cenários: “piorar pouco ou piorar muito”, garante Andrés Malamud.

Em entrevista à Renascença, o investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa explica que “a guerra civil não é o cenário mais provável, mas está longe de ser impossível”.

Conflito de legitimidades

Neste momento, a Venezuela vive um conflito de legitimidades entre Nicolás Maduro, que diz ter sido eleito no ano passado, e uma oposição que detém o controlo da Assembleia Nacional, o Parlamento, e que foi eleita em 2015, sem o reconhecimento de Maduro.

“Cada um diz que o outro não tem poder para governar. É impossível que qualquer um deles prevaleça legitimamente”, explica.

A única solução seria convocar eleições, como pede a União Europeia, mas para que tal aconteça é necessária a garantia de um procedimento justo, viável e confiável para ambas as partes.

“Neste momento não existe”. Seria, portanto, fundamental reconstruir todo o sistema de monitorização eleitoral, um processo demoroso.

“Guáido diz que entre 6 a 9 meses. Isto quer dizer que, no melhor dos casos, estamos a falar de um sistema profissional, um governo profissional, por entre 6 a 9 meses para convocar eleições e neste momento isto não está no horizonte, porque nenhum dos dois poderes aceita que tem que cessar o seu mandato”, esclarece.

No melhor dos cenários Maduro demite-se, mas para que tal aconteça são necessárias muitas garantias, difíceis de obter. Por um lado, o atual Presidente teria de ver assegurado um exílio dourado, em Cuba por exemplo. Os militares exigem a garantia de que não serão condenados a pena de prisão e, por fim, os civis reclamam eleições justas.

Mesmo que todas estas condições sejam asseguradas, há ainda um longo processo de reconstrução de um país que se autodestruiu em menos de uma década.

Em 2002, a PDVSA, a companhia petroleira estatal, avançou com protesto contra o governo de Hugo Chávez. A resposta do então Presidente da Venezuela foi de tal forma agressiva, que a maior parte dos engenheiros optaram por abandonar o país.

A Venezuela perdeu “a massa cinzenta”. Hoje a PDVSA produz metade do petróleo que produzia há uma década atrás. “Está tudo quebrado neste país. Se não conseguirem que voltem os engenheiros, os médicos, todos os profissionais, fica muito pouca gente para reconstruir uma nação complexa, com 30 milhões de habitantes”.

“O melhor dos cenários é ainda confuso para o que estamos habituados. A única coisa clara é que a Venezuela nunca voltará a ser o que era, nunca voltará a ser uma democracia modelo aliada dos EUA”, explica Andrés Malamud.


Um líder de origem humilde

O Governo de Caracas estava, até agora, “unificado pelo dinheiro da corrupção”, com uma oposição dividida, também por falta de financiamento.

Juan Guaidó conseguiu uni-la. Aos 35 anos, nunca conheceu outro regime que não o chavismo, “no entanto parece que tem bem claro quais são as alternativas”.

Guaidó encontrou uma oposição cuja esperança há muito se tinha perdido, mas o desespero dos venezuelanos, aliado ao “carisma e origem humilde” do novo candidato foram a combinação perfeita para o seu sucesso.

“Ele veste gravata e casaco, porque pode fazê-lo. Porque não é oligarca, ao contrário dos restantes líderes opositores. Os outros [candidatos] teriam de vestir uma camisola ou um chapéu de basebol para parecerem populares. Esta característica pessoal dele, junto com a sua frescura singular, faz com que a oposição possa manter-se unida por um tempo. Resta saber quanto”, explica Andrés Malamud.

“Ele gere muita confiança e muita esperança sobretudo”, acrescenta.

De acordo com o investigador do ICS-UL especialista em assuntos da América Latina, não estão asseguradas, neste momento, todas as condições necessárias à transição democrática.

Há quatro factores relevantes para este processo. Dois - a pressão popular e a unidade da oposição - abonam a favor da mudança pacífica, os restantes estão ainda incompletos.


Divisão do governo e apoio internacional

São estes os dois elementos que faltam, para que se concretize uma transição pacífica de regime.

A primeira questão é fácil de entender. Há três cenário possíveis. Se os militares continuarem a apoiar Maduro, o regime reforça o poder. Se decidirem apoiar Guaidó, o regime muda. Se os militares se dividem, a Venezuela enfrenta uma Guerra Civil.

O último cenário não é o mais provável, mas “está longe de ser impossível”.
A divisão interna pode ser vertical ou horizontal. No primeiro caso, o generais mantém o apoio ao regime, mas os militares de baixa graduação revoltam-se.

Não seria um desfecho surpreendente, já que aos membros do fundo da hierarquia não são asseguradas as regalias que chegam às cadeias acima. “Estes militares passam fome e as suas famílias morrem de doenças que noutros países se curam”, explica o investigador.

É este o mecanismo que sustenta o regime. Segundo André Malamud, a Venezuela tem hoje perto de dois mil generais, mais do dobro da maior potência militar do mundo, os Estados Unidos.

Porém, mais que os generais, são os militares sob o seu comando. Assim, perante uma divisão vertical ”é muito difícil que a tropa perca. São os generais que têm de ir embora. Mas, por enquanto, eles têm conseguido manter um sistema de controlo”.

Resta a divisão horizontal, entre generais. Neste caso podemos assistir a um confronto “muito grave”, que pode culminar numa Guerra Civil.

Para evitar o pior, era importante assegurar o apoio internacional.

Pau, cenoura e persuasão diplomática

De acordo com o especialista em política internacional, existem três formas de exercer poder no sistema internacional.

A diplomacia é uma delas, mas “não vai funcionar”. “Não chega. Há muito tempo que o regime é pressionado pelo exterior e isso não chegou para promover a mudança”, explica Andrés Malamud.

Segue-se o pau, isto é a intervenção externa, uma solução pouco recomendável.

“A intervenção num país complexo como a Venezuela, com 30 milhões de habitantes, seria catastrófica.”

Só resta uma hipótese, a cenoura. O dinheiro é o último elemento desta balança. A intenção não é favorecer o financiamento, mas pelo contrário asfixiar o regime.

É o que a comunidade internacional está a tentar fazer, com as sanções dos EUA e do Banco de Inglaterra, “que não entregou o ouro da reserva da Venezuela a Maduro”.

O problema surge, quando a comunidade internacional se divide e, enquanto uns tiram, há quem reponha. Ora é aqui que entram a China e a Rússia, duas das maiores potências económicas, que optaram por apoiar Maduro e rejeitar Juan Guaidó.

O próximo passo seria convencer ambos os países de que é do seu interesse uma mudança de regime. No caso da China o argumento poderia passar pela regularização das dívidas da Venezuela, já que o Governo de Caracas deve a Pequim mais de 230 mil milhões de euros.

Convencer a Rússia será um pouco mais complicado. Putin tem feito um enorme esforço para se desfazer do rótulo de agente regional e finalmente assumir o papel de potência global. Se um dos seus aliados for forçado a abandonar o poder, fica demonstrado que Obama tinha razão e o país fica limitado à Eurásia.

Esta rivalidade estratégica pode reverter uma recente amizade.


O fugaz regresso da diplomacia triangular

Na década de 70, Richard Nixon, então Presidente dos Estados Unidos, optou por formar uma aliança com a China, contra a expansão da União Soviética, a terceira potência mundial.

Agora, Donald Trump preparava-se para inverter o triângulo de Nixon e estabelecer uma aliança com a Rússia contra a China. O confronto imposto pelo posicionamento díspar, no que à Venezuela diz respeito, não estava no plano original.

“De facto, é inesperado que, por uma vez, Trump esteja alinhado com as democracias liberais do Ocidentes, em vez de estar abraçado ao autoritarismo de outras regiões”, explica Andrés Malamud.

Resta saber quem vai vencer, “se o mundo de Trump, no qual o adversário é a China, ou o mundo das democracias liberais para o qual a Rússia é a potência mais perigosa”.

Um confronto militar entre Washington e Moscovo é indesejável e não parece interessar a nenhum dos dois líderes. O problema é o erro de cálculo.

Todo o armamento venezuelano foi fornecido pela Rússia. Se os Estados Unidos avançam com uma intervenção em Caracas e um dos seus aviões é abatido por um míssil russo, o resultado poderá ser dramático.

“A probabilidade de um erro de cálculo sempre existe. É certo que o tentarão evitar mas é impossível dizer que isso não vai acontecer”.


“A Europa perdeu toda a relevância diplomática”

Longe vão os tempos de prosperidade do Velho Continente. A Europa é hoje uma região que tenta gerir a sua própria crise.

Não há dúvida de que ainda representa um importante papel de legitimação e que Juan Guaidó ficou bastante satisfeito com a votação do Parlamento, ao reconhecê-lo como Presidente interino da Venezuela, mas na prática o União Europeia desperdiçou a oportunidade de mediar.

“De facto, a Europa optou pela decisão moral, condenar a ditadura. Mas dessa maneira o que fez é tornar-se inócua diplomaticamente, já não pode mediar”, explica Andrés Malamud, especialista em política internacional.

“A Europa perdeu toda a relevância diplomática, mas não apenas neste caso”, acrescente.

O investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa destaca um terceiro Estado, com enorme relevância na América Latina, o Vaticano.

Por um lado a Igreja Católica na Venezuela condenou o regime, por outro o Papa Francisco mostrou-se disponível para mediar a crise política que atravessa o país, se ambas as partes solicitarem essa mediação.

“Eu acho que não é inadequado manter-se afastado para mediar, mas neste momento a imparcialidade favorece a ditadura”, diz Andrés Malamud.

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