Siga-nos no Whatsapp
A+ / A-

Momentos icónicos JO

Quando Vanderlei Lima liderava a maratona e um antigo padre irlandês o afastou da luta pelo ouro

29 jul, 2024 - 10:30 • Hugo Tavares da Silva

O atleta brasileiro foi abalroado nos Jogos de Atenas, em 2004, mas não desistiu e ganhou o bronze, entrando e celebrando no Panathinaiko com estilo. Mais tarde acendeu a pira olímpica no Rio de Janeiro e o agressor nunca o perdoou.

A+ / A-

Faltavam sete quilómetros para a meta que mais parecia uma miragem deixar de ser uma miragem e decretar mais um campeão olímpico. As pernas de Vanderlei Lima, maratonista com sonhos dourados em Atenas, afrouxavam sem piedade. Os meros 25 segundos de vantagem para Stefano Baldini não auguravam nada de bom para o sul-americano. Mas o pior veio depois, à passagem desse quilómetro 35.

Cornelius Horan, um padre noutra vida, saltou a vedação e tentou derrubar Lima, atrasando-o e inevitavelmente retirando-o da corrida pelo ouro. O agressor estava vestido com um kilt castanho, meias verdes e boina. O cenário não podia ser mais pitoresco.

O esgar do atleta brasileiro ainda causa mossa nas mais sensíveis almas. “Ali perdi vários segundos”, admitiu mais tarde. “Estava com medo. Não sabia se o louco tinha uma arma. Mas não quis chorar. Não quis perder toda a esperança.”

Depois de ter sido ajudado por alguns espectadores, Vanderlei Lima retomou a estrada e quando entrou no mítico Panathinaiko, mesmo no terceiro lugar, era o homem mais feliz do mundo, lançando beijos e corações para os que o adoravam com os olhos e as palmas das mãos. O sorriso fazia corar os deuses no Olimpo. Os pequenos ‘esses’, como se não estivesse cansado, emprestavam mais cor à celebração.

Baldini chegou quando o relógio arfava as 2:10:55. O segundo classificado foi o norte-americano Mebrahtom Keflezighi (2:11:29). Lima chegou não muito tempo depois (2:12:11). O português Alberto Chaica concluiu a prova praticamente dois minutos depois do brasileiro.

“Essa medalha é a história da minha vida”, recordou em 2021, nas vésperas dos Jogos de Tóquio,em entrevista ao “Globo Esporte”.

“Quando pisei o estádio, todo o mundo aplaudiu”, continuou. “Fiz aviãozinho e era a pessoa mais feliz dali. Nunca tive momentos de mágoa e frustração.”

Para além do bronze, “budeguinha”, alcunha ganha até aos seis anos de idade, recebeu ainda a medalha Pierre de Coubertin, que premiou o desportivismo e a categoria com que encarou aquele ato miserável.

Muitos anos depois, nos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, em 2016, Vanderlei Lima foi convidado para acender a pira olímpica, dando-lhe assim mais um pedaço de matéria para tapar os buracos que ainda leva no corpo, apesar de estar bem resolvido desde o primeiro momento.

Quem não gostou nada, nada desse prémio foi o ex-padre que o atacou em Atenas. “Quando o vi com os meus próprios olhos, fiquei com muita raiva”, admitiu Horan em entrevista ao “New York Times”. E acrescentou: “Eu olhei para o Vanderlei e pensei ‘você não seria a estrela que é hoje se não fosse por mim’”.

A audácia do agressor, tantos anos depois, ainda foi mais além. O irlandês admitiu ainda naquela entrevista que tentou chegar a Lima, para lhe pedir desculpa e conhecer a família. Como o antigo atleta não respondeu, Horan levou a peito. “Ele falhou miseravelmente no básico da decência humana e da cortesia.”

O jornalista John Branch, naqueles primeiros dias de agosto de 2016, perguntou-lhe porque atacou Lima em 2004. O desplante cresceu. “Não sei dizer porque ataquei aquele jovem”, admitiu. “Acredito que existe destino e que algumas coisas são predestinadas.”

Na altura, depois da maratona que aconteceu há 20 anos, o comité olímpico do Brasil tentou que o seu atleta recebesse o ouro, mas tal intenção caiu por terra.

“É bronze, mas significa ouro”, explicou Vanderlei Lima uns tempos depois.

A lição é inspiradora. Vanderlei Lima não desistiu, embora seja horrível quebrar-se o ritmo de uma corrida daquelas quando as pernas já ganiam por compaixão. Não desistiu, engoliu o veneno e sorriu, terminou a prova, e logo em lugar de medalha, e celebrou o feito com estilo. Não perdeu a esperança e semeou-a pelas entranhas das testemunhas. Resumindo, trata-se de um conhecedor dos valores do desporto. Um campeão.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+