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Patrick Morais Carvalho

"Hoje, Matateu valeria mais do que a Torre de Belém, o CCB e o Padrão dos Descobrimentos”

03 set, 2021 - 11:00 • Pedro Azevedo

O primeiro grande jogador português nascido em África chegou a Lisboa há 70 anos. Patrick Morais de Carvalho, presidente do Belenenses, recorda a carreira do antigo goleador.

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A tribo do futebol chamou-lhe Matateu. Chegou a Lisboa há 70 anos, a 4 de setembro de 1951. Tinha 24 anos. Assinou contrato a troco de 30 contos de luvas, subsídio mensal de 1.600 escudos e a garantia de trabalho como empregado de escritório (na época ainda não havia profissionais de futebol em Portugal).

Em entrevista a Bola Branca, o atual presidente do CF "Os Belenenses", Patrick Morais de Carvalho, considera que, nos dias de hoje, pelos valores do mercado de jogadores, Matateu valeria muitos milhões.

“Um jogador com a capacidade de remate e veia goleadora do Matateu não teria preço. Se tivesse, seria próximo dos mais altos praticados pelos grandes jogadores do futebol europeu. Teríamos de juntar o Centro Cultural de Belém, a Torre de Belém e o Padrão dos Descobrimentos e, se calhar, ainda faltaria dinheiro para se poder contratar o Matateu. Foi um génio do seu tempo, a oitava maravilha do mundo, como em boa hora lhe chamaram. Um jogador fantástico e marcante do Belenenses e do futebol português”, declara o dirigente azul.

Sebastião da Fonseca Lucas, conhecido por Matateu, era natural de Lourenço Marques (atual Maputo) e foi reconhecidamente o primeiro grande jogador português nascido em África, antes de emergir Eusébio.

“Tinha garra, força e uma invulgar capacidade de remate. Um remate muito forte e certeiro. Matateu tinha uma capacidade goleadora apenas comparável a jogadores da estirpe de Eusébio ou Pelé”, explica Patrick Morais de Carvalho.

Profundo conhecedor da história do clube do emblema da Cruz de Cristo, Patrick Morais de Carvalho descreve aspetos que tecnicamente diferenciavam Matateu:

“Era um jogador desconcertante, sempre de olhos postos na baliza, que não pedia muito tempo nem pedia autorização para rematar. Ficou conhecido por muitos como a oitava maravilha do mundo. Na seleção era também chamado de diamante negro. Era muito forte fisicamente. Não era alto, mas era muito musculado. Fazia do músculo o suporte fundamental para um remate poderosíssimo, colocado e violento. Tinha características que não o impediam de saber driblar. A imprensa dizia que só se conseguia parar o Matateu em falta. Nos dias que correm é muito difícil imaginar um avançado com a capacidade que ele tinha."

FC Porto foi o primeiro interessado


Quatro anos antes de chegar a Lisboa para representar o Belenenses, Matateu empregou-se na construção civil, como serralheiro, e ingressou no 1.° de Maio de Lourenço Marques, filial do Belenenses. Antes, começara no Clube Desportivo João Albasini.

O rendimento no 1.º de Maio levou emissários do FC Porto a Lourenço Marques para tentar a contratação do jogador. Foi o primeiro clube a interessar-se pelo jogador, mas Benfica e Sporting, mais tarde, também tentaram. Porém, perderam a corrida para o Belenenses.

“Do que se conhece, o primeiro clube a interessar-se terá sido o FC Porto e, na altura, diretores do clube deslocaram-se a Lourenço Marques no sentido de o aliciarem a ele e à família pagando luvas. Terá sido a mãe do Matateu que o desaconselhou vivamente por entender que o filho, a vir para a Metrópole, teria de ser para a cidade de Lisboa. Mais tarde, pelo facto de o Belenenses ter em Moçambique olheiros e pessoas que gostavam muito do clube, indicaram o Matateu e tenho ideia que foi um adepto chamado Cardoso que acabou por permitir essa transferência para o Belenenses”, detalha Patrick Morais de Carvalho.

Foto: CF Os Belenenses

O susto na viagem para Lisboa

O Belenenses pagou a Matateu a viagem de avião para Lisboa. Esteve longe de ser um batismo de voo tranquilo. Mas nem esse sobressalto incomodou o jogador africano.

“Recordo-me de ouvir dizer que a primeira viagem do Matateu foi muito tumultuosa. O avião ia caindo e, quando chegou a Lisboa, terá afirmado que o único pensamento que o animava é que se o avião caísse e ele morresse a mãe iria receber em Moçambique o seguro de vida que lhe tinham feito. É uma história engraçada, mas, de facto, o Belenenses era, na altura, um dos três grandes do futebol português, juntamente com Benfica e Sporting", relata o atual presidente do Belenenses.

O clube do Restelo "ganhou a primazia e teve a capacidade de segurar Matateu 13 épocas consecutivas". Ao longo desse período, o jogador "deu muitas alegrias aos adeptos do Belenenses e ao futebol português”.

Faltou o título de campeão ao primeiro Bola de Prata


Ídolo no Belenenses e na seleção, Matateu foi o primeiro jogador a conquistar o troféu “Bola de Prata” instituído pelo jornal "A Bola", a premiar o principal goleador do campeonato português, em 1952/53. Voltaria a ser o melhor marcador da competição em 1954/55.

Em 13 temporadas, Matateu fez 268 jogos oficiais pelo Belenenses e marcou 210 golos. Ganhou a Taça de Portugal em 1960 (apontou o golo da vitória num triunfo por 2-1 frente ao Sporting) e foi 27 vezes internacional, com 13 golos. Nas quinas, não se cruzou com Eusébio. A despedida de Matateu da seleção ocorreu um ano antes da primeira internacionalização de Eusébio, em 1961.

Faltou a Matateu a conquista de um campeonato nacional, que esteve muito perto de alcançar por duas vezes. Em 1955, o Belenenses perdeu o título para o Benfica a quatro minutos do fim, ao sofrer um golo, num empate a dois com o Sporting, na última jornada.

Nesse desafio, Matateu apontou quatro golos, mas o árbitro anulou dois. Carlos Gomes, guarda-redes do Sporting confessou que, num dos lances invalidados, a bola ultrapassou totalmente a linha de golo. De nada valeu o testemunho.

Em 1959, o Belenenses também esteve muito perto da conquista, numa luta com FC Porto e Benfica. Nessa altura, foi decisiva a anulação de um golo a Matateu de canto direto frente ao Benfica ao minuto 90, quando o jogo estava empatado a zero, em que o árbitro considerou que a bola descrevera uma curva para além da linha de cabeceira antes de entrar na baliza.

Carreira de jogador só terminou aos 50 anos


Goleador de grandes recursos técnicos, Matateu foi também um fenómeno de longevidade. Quando saiu do Belenenses com 37 anos, em 1964, ainda alinhou três épocas no Atlético, tendo depois passado por Amora, Gouveia e Chaves.

Terminou a carreira no Canadá aos 50 anos. Acabou por radicar-se naquele país da América do Norte, onde morreu em janeiro de 2000, estando sepultado no cemitério da Ajuda, num jazigo que o Belenenses erigiu em sua memória.

O irmão de Matateu, Vicente Lucas, oito anos mais novo do que o ponta de lança, também jogou no Belenenses entre 1954 e 1967. Vicente Lucas, de 85 anos, foi um dos magriços que representaram a seleção portuguesa no Mundial de 1966, em Inglaterra.

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