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Mundial 2034

O "sportswashing" venceu?

11 dez, 2024 - 15:55 • Eduardo Soares da Silva

Depois de Rússia e Qatar, o Mundial de futebol vai regressar um país autoritário daqui a dez anos. A aposta no desporto melhora verdadeiramente a imagem de uma ditadura? É possível pensar em boicote de algumas seleções? Que papel têm as grandes vedetas do futebol mundial na promoção do regime saudita?

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“Tenho sérias dúvidas de que a imagem do Qatar no continente europeu tenha mudado muito por terem organizado o Campeonato do Mundo”, considera a investigadora Raquel Vaz-Pinto, especializada em relações internacionais e desporto, no dia em que a Arábia Saudita, cujo regime é também acusado de vários atropelos aos direitos humanos, viu confirmada a organização do Mundial 2034.

A atribuição da prova por parte da FIFA é o culminar de uma aposta no desporto por parte do regime monárquico saudita. O objetivo é mudar e manipular a imagem de um determinado país com a aposta em competições de diferentes modalidades.

O fenómeno é chamado de “sportswashing”, considerado por várias organizações não-governamentais de defesa dos direitos humanos de “marketing da mentira".

É uma estratégia assumida ao mais alto nível na Arábia Saudita. Em 2023, Mohammad bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita e primeiro-ministro, afirmou que “não quer saber” dessas acusações. O foco está no ganho financeiro.

“Se o 'sportswashing' aumentar o nosso PIB em 1%, então vamos continuar. [Não se importa com o termo?] Não quero saber. O desporto fez crescer o PIB em 1% e quero mais 1,5%. Chamem-lhe o que quiserem, vamos conseguir esse 1,5%", afirmou.

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No futebol, a Arábia Saudita conseguiu atrair os principais craques para o seu campeonato nacional. Cristiano Ronaldo, Neymar, Karim Benzema, João Cancelo, Rúben Neves, Otávio jogam nos principais clubes, para além de vários treinadores de renome por lá terem passado.

O investimento não fica, no entanto, pelo futebol. O país é dono da McLaren, equipa de Fórmula 1, e recebe uma corrida da competição por temporada. Várias competições de ténis, golfe e boxe também se realizam em solo saudita.

A atribuição do Mundial é considera, por muitos, o objetivo final da Arábia Saudita, replicando o que conseguiu fazer o Qatar em 2022. O “sportswashing” foi amplamente discutido nos meses que antecederam a prova, mas nada impediu a FIFA de atribuir o Mundial, mais uma vez, a um país acusado de vários atentados à liberdade. É a vitória do “sportswashing”?

“Acho que é preciso mais tempo para empiricamente se poder dizer se o “sportswashing” funciona. É muito difícil dizer que funciona. Temos uma melhor imagem do Qatar em termos de direitos humanos?”, questiona a investigadora.

O tema “já começa a ser bastante estudado”, segundo Raquel Vaz-Pinto, mas há um entrave óbvio: é difícil quantificar perceções.

“Vamos começando a ter maior atenção a estes fenómenos, mais análise empírica, o problema é associar a organização de um evento à perceção sobre um país. Falta ainda trabalhar isso de uma forma mais forte e também com mais anos para termos uma análise comparativa. As perceções são muito difíceis de quantificar. Eu tenho uma opinião sobre o que significa o regime saudita, mas compreendo que é muito difícil fazermos esta análise e dizer, com toda a certeza, que a imagem da Arábia Saudita piorou ou melhorou por causa deste evento”, argumenta.

O fenómeno não é novo e não é exclusivo às ditaduras do Médio Oriente. A Rússia foi acusada do mesmo ao organizar o Mundial 2018 e os primeiros exemplos remontam à organização dos Jogos Olímpicos de 1936 pela Alemanha nazi.

“Não compro a conversa que o futebol e a política não se misturam. As democracias também usam o futebol. Não podemos é ter ilusões: ao atribuir este Mundial, a FIFA está a ser cúmplice de um projeto saudita de se internacionalizar, diversificar e melhorar a sua imagem em termos externos. Só que isso não parece ser um problema para esta FIFA”, afirma.

A especialista em relações internacionais encontra ainda um contrassenso na intenção de ditaduras quererem organizar eventos desportos: “Uma competição como o futebol privilegia as regras, duas equipas que competem em respeito com as regras. Tudo isso implica o aceitar o outro, a competição e isso é tudo o que uma ditadura não é na sua essência. Não há fair-play, não há árbitros, não há regras”.

Organizar um Campeonato do Mundo é, também, cada vez mais caro. O Mundial do Qatar quebrou todos os recordes de investimento, com mais de 200 mil milhões de dólares gastos na infraestrutura necessária. A prova mais cara até à data tinha sido o Mundial 2014, no Brasil, com 15 mil milhões de dólares investidos.

“É cada vez mais difícil um país sozinho organizar um Campeonato do Mundo e também isso explica como países como a Arábia Saudita o organizem, tendo em conta a sua almofada financeira fruto do petróleo que dispõe. Para compararmos, o Mundial 2030 terá de ser entre três países, um dos quais o nosso, e mais três da América do Sul”, diz.

E a necessidade de gerar dinheiro no futebol leva à aproximação da FIFA a estes mercados: “Recordo-me de Blatter usar a expressão ‘novos mercados’, ou seja, o futebol abrir-se para lá das suas geografias mais óbvias. É um argumento e envolve a entrada de imenso dinheiro e a FIFA tem agora como patrocinador a Amraco, a empresa do petróleo saudita”, relaciona.

A organização do Mundial 2034 implicará a construção de 11 novos estádios, para além de obras de renovação nos dois maiores recintos do país e a expansão temporária de outros dois.

A construção dos estádios levanta questões sobre os direitos dos trabalhadores, um problema colocado a nu com a morte de milhares de migrantes que trabalharam na construção de estádios para o Mundial do Qatar.

“Tenho algumas dúvidas que as lições do Qatar tenham sido aprendidas e vou aguardar, provavelmente bem sentada numa cadeira, pelo caderno de encargos e que estejam incluídos aspetos de boas práticas óbvias, como as laborais, ambientais e direitos humanos básicos que estão implicados na construção de tudo isto e no Qatar foram escandalosamente não cumpridos”, realça a investigadora Raquel Vaz-Pinto.

Perante todo este cenário, as federações que tenham votado a favor da proposta saudita ficam também associadas ao sangrento regime saudita? Vaz-Pinto fala em “decisões muito difíceis”.

“Imagino que exista uma enorme pressão da UEFA e de outras entidades, talvez uma abstenção? É uma decisão importante e marcaria, pelo menos, uma tentativa. Mas de forma prática, há uma relação muito complexa de lugares, direções e relações com muitas pessoas que defendem que a parte financeira é relevante”

A investigadora acredita que o debate devia existir. Não só a nível nacional, mas sim europeu: “É uma discussão de fundo que seria bom que a tivéssemos no continente como um todo. Portugal até pode tentar, outros países também, mas terão muito mais dificuldades”.

O papel dos craques

O principal embaixador do projeto desportivo saudita é um português: Cristiano Ronaldo.

O capitão da seleção nacional mudou-se para Riade em janeiro de 2023 depois de ter rescindido com o Manchester United. Na Arábia Saudita, o seu contrato chorudo não se resume a marcar golos pelo Al-Nassr. Inclui o papel de embaixador do Campeonato do Mundo e o avançado tem cumprido o seu papel nas redes sociais.

“Orgulhoso por apoiar os sonhos de uma nação em trazer o Campeonato do Mundo para a Arábia Saudita em 2034”, escreveu, no início de abril.

Já este mês, lê-se numa publicação do jogador que “o Mundial na Arábia Saudita está a inspirar muitos jovens jogadores de futebol. Foi um prazer conhecer algumas dessas crianças que sonham em receber o mundo na Arábia Saudita em 2034”.

Lionel Messi preferiu futebol americano na hora de abandonar a Europa, mas é também um embaixador da Arábia Saudita, com um acordo publicitário cujo objetivo é “desmontar estereótipos ultrapassados sobre o país”.

Em junho de 2023, o comentador Henrique Raposo classificou Ronaldo como um “idiota útil” para uma ditadura. Qual é o papel e a responsabilidade dos craques da modalidade na promoção do regime saudita?

“Eu sou sensível ao argumento financeiro quando não são jogadores de topo, porque permite aos jogadores serem independentes financeiramente, mas também considero que os craques, os que movimentam milhões, também têm um lado de responsabilidade”, atira.

Nos dois espectros possíveis, Vaz-Pinto destaca Jordan Henderson, antigo capitão do Liverpool e apoiante das instituições LGBTQ+ da cidade, que foi amplamente criticado após uma transferência para o Al-Ettifaq, e Di María.

“Dou valor jogadores como o Di María, que recusou esse tipo de dinheiro para jogar no clube onde começou aqui na Europa. O que talvez seja relevante é que não são muitos”, destaca.

Quando os principais jogadores das maiores seleções do mundo jogam na Arábia Saudita ou estão afiliados ao país, é expectável um boicote? Em 2022, acumularam-se protestos e entidades que não marcaram presença no Qatar, embora nenhuma seleção se tenha recusado a participar no torneio.

“Faltam 10 anos e muito ainda vai acontecer. Poder, pode acontecer, mas ainda será muito cedo para boicotes. Mas como é que se resiste a esta onda, até do ponto de vista institucional? Não é de todo fácil fazer esse compromisso”, conclui.

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