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Para onde corre Cavaco? Ex-Presidente já não tem “ambições políticas”, mas quando intervém faz “mossa”

19 mai, 2023 - 07:25 • Fábio Monteiro

Desde o arranque de 2023, Cavaco Silva já fez três críticas de viva-voz ao Governo, algo que contrasta com a sua postura nos últimos anos. Luís Mira Amaral não acredita que o antigo Presidente da República tenha ainda ambições políticas, mas sublinha o impacto das suas intervenções. Palavras do ex-líder social-democrata fazem sombra ao PSD, ao Governo e também a Marcelo, dizem especialistas ouvidos pela Renascença.

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A aposentadoria na vida política não existe. E mesmo o “direito ao descanso” é discutível, quando a situação do país (ou a relevância do próprio partido) está num limbo. Basta olhar para o Palácio de Belém. Se, desde as eleições presidenciais de 2016, Marcelo Rebelo de Sousa passou a ser o principal morador do edifício, o anterior inquilino não seguiu para a reforma. Nem se mudou para muito longe.

O gabinete de Cavaco Silva, ex-Presidente da República e ex-primeiro-ministro social-democrata, fica num Convento em Alcântara. É daí, com uma proximidade tanto metafórica como literal, que o antigo Chefe de Estado com 84 anos tem vindo a seguir o legado que deixou a Marcelo Rebelo de Sousa: o Governo de António Costa.

Com o Executivo socialista fragilizado, envolto numa série de polémicas e demissões, o ex-Presidente da República tem dado cada vez mais sinais de que está vigilante e preocupado. Ainda há poucas semanas, deixou no ar a questão: “Há alguma razão para deixar de estar preocupado com o Governo?”

Desde o arranque de 2023, Cavaco Silva tem estado mais interveniente e com uma agenda política mais preenchida. Só este ano, segundo contas da Renascença, o ex-Presidente da República já veio a público e de viva-voz, em três ocasiões, criticar o Governo de António Costa. E, ainda esta semana, terá mais uma oportunidade.

Dia 20 de maio, sábado, Cavaco Silva encerra o encontro nacional dos Autarcas Social-Democratas (ASD) – uma situação excecional, dado que, em três décadas de vida política, desde que deixou o cargo de primeiro-ministro em 1995, raras vezes apareceu em eventos de iniciativa partidária.

Fonte próxima do antigo Chefe de Estado diz à Renascença que a “intensidade [das intervenções de Cavaco] não é assim tão maior”, os portugueses é que “estão a prestar mais atenção ao que ele diz”.

Cavaco sente o “imperativo cívico de se pronunciar, dada a situação em que o país se encontra, e a desgovernação que vai por aí”, garante.

A mesma posição é também defendida por Luís Mira Amaral, ex-ministro dos Governos de Cavaco Silva, em declarações à Renascença. O antigo Presidente está “crescentemente preocupado com a situação do país, a incompetência, incapacidade de o Governo ter uma governação minimamente decente”, diz. Enquanto primeiro-ministro no passado e ainda hoje, Cavaco teve sempre “uma visão do interesse nacional e não do interesse partidário”, frisa.

No entender de Mira Amaral, o ex-Presidente “consegue fazer intervenções públicas extremamente objetivas”. E quando as faz, “faz mossa no Governo”, que reage “de forma extremamente nervosa e descabelada”.

Não é, contudo, apenas o Governo que sofre danos sempre que Cavaco Silva fala.

Cavaco faz sombra ao PSD, ao Governo e… a Marcelo

Por norma, desde 1974, quase todos os ex-Presidentes da República portuguesa têm seguido uma norma “informal” após abandonarem Belém: falam poucas vezes, intervêm apenas em momentos-chave e deixam o microfone para o sucessor. Durante os anos da Troika, porém, Mário Soares fugiu um pouco a esta regra.

Em algumas situações, o antigo Chefe de Estado chegou a manifestar-se contra as políticas do Governo de Passos Coelho, e ajudou a organizar, inclusive, o chamado “congresso das esquerdas”. Está, portanto, Cavaco a seguir o mesmo caminho? E com que efeitos?

Na opinião do politólogo Pedro Silveira, o facto de as intervenções de Cavaco Silva gerarem tanto debate e discussão é, em certa medida, o “reflexo de um PSD com muita incapacidade de ter um discurso coerente, articulado, sustentado, programático, sobre a atuação do Governo”.

Dito isto, Cavaco não está a fazer ou a liderar a oposição. Assim como Soares “falou em momentos particularmente críticos e importantes”, durante o período da Troika, é “dessa maneira que podemos interpretar a intervenção e intensificar da agenda” do antigo primeiro-ministro social-democrata, diz o politólogo e professor universitário à Renascença.

Por sua vez, André Azevedo Alves, professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, pega na sombra que as intervenções públicas de Cavaco geram e coloca-a sobre o Governo.

“Não me recordo de nenhuma intervenção de Cavaco sobre os casos do Governo, do agora demite-se este, demite-se aquele. Quando tem feito intervenções, tem sido sobre o PRR, medidas do pacote habitação, sobre a falta de convergência. Ou seja, questões estruturais”, diz à Renascença.

Segundo o professor da Universidade Católica, é discutível se as intervenções de Cavaco ajudam ou não o PSD. Que há um “contraste” entre os estilos de Cavaco e de Marcelo Rebelo de Sousa, em todo o caso, é inegável. Se “Marcelo usa da palavra com extrema regularidade”, quando Cavaco fala tem um “impacto substancial”, aponta.

Também para Luís Mira Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa e Cavaco Silva têm estilos “totalmente diferentes”. Sem criticar o atual Presidente, nota: “Não tenho dúvida que Cavaco Silva fala poucas vezes, gere os seus silêncios, intervém nalguns momentos. Essas intervenções têm muito mais ressonância do que alguém que fale todos os dias.”

Cavaco é o Soares do PSD?

Cavaco Silva ainda terá capital político junto dos portugueses. Mas terá a ambição de voltar à arena? Inédito não seria.

Mário Soares foi primeiro-ministro por duas vezes e Presidente da República durante dois mandatos. Houve, por isso, quem desse a sua carreira política como terminada. Ainda assim, em 2005, o socialista surpreendeu ao entrar na corrida para um terceiro mandato presidencial.

O resultado é conhecido: Soares saiu derrotado, ficou em 3.º lugar, atrás de Manuel Alegre e Cavaco Silva.

Fonte próxima de Cavaco garante à Renascença que o antigo Chefe de Estado está “noutra pista”, não tem nenhuma “ambição política”. “Não vai concorrer a eleições. Não é como Mário Soares que, aos 86 anos, decidiu ser candidato a Presidente da República”, especifica.

Mira Amaral sustenta a mesma tese. “Aos 84 anos, depois de ter sido dez anos primeiro-ministro, e mais dez anos Presidente da República, o que é que pode querer mais politicamente? Não pode querer mais nada. Ele faz isto [intervir] em termos de preocupação com o país e acha que tem um dever cívico de intervenção”, afirma.

O politólogo Pedro Silveira confessa que “ficaria muito surpreso” se Cavaco Silva voltasse à política ativa. “Na verdade, uma das coisas que lhe dá peso na sua intervenção – para além de ter sido Presidente, não falar assim tanto – é que muito dificilmente conseguimos antever que, por detrás das intervenções dele, exista qualquer tipo de ambição política ou qualquer tentativa de condicionar” o PSD, aponta.

André Azevedo Alves assina por baixo a mesma ideia. “Se em relação a Passos Coelho é uma questão que legitimamente se pode colocar, acho que em relação a Cavaco não se coloca de certeza. Até por uma questão de idade. Agora, há um desejo de intervenção cívica e política, uma obrigação de não se remeter ao silêncio, face ao que vê à sua volta”, diz.

Mais opiniões

De acordo com contas da Renascença, desde 2016, ano em que deixou Belém, dos treze artigos de opinião que Cavaco Silva assinou – no “Público”, “Expresso” e “Observador” -, quatro foram direcionados ou sobre o Governo de António Costa (um escrito em 2021, três em 2022).

Ou seja, a atenção dada ao Governo por Cavaco Silva tem vindo a aumentar.

Ainda na semana passada, num artigo divulgado pela delegação do PSD no Parlamento Europeu, a propósito do Dia da Europa, exortou o Governo a aproveitar o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para assegurar o crescimento do país em vez de atirar dinheiro "para cima dos problemas, sem os resolver".

No Observador, entre quatro artigos de opinião desde 2014, um faz o rescaldo dos resultados das legislativas de 2019 (que Rui Rio perdeu) e outro é um mordaz desafio direcionado a António Costa (publicado a 1 de junho de 2022): “Retirado da vida política ativa mas preservando os meus direitos cívicos, estou certo de que, encerrada a fase da “geringonça”, o seu governo de maioria absoluta fará mais e melhor do que as maiorias de Cavaco Silva.”

No Expresso, de três artigos de opinião, um (publicado a 8 de outubro de 2021) afirma que Costa “não foi capaz” de aproveitar as condições herdadas de Passos.

No Público, de seis artigos de opinião, dois são direcionados a Costa e foram publicados já desde as últimas eleições legislativas. No primeiro, de abril de 2022, aponta que no programa do Governo apresentado à Assembleia da República não se detetam sinais de “um ímpeto reformista”. No segundo, de setembro do mesmo ano, descreve já o Governo como um “conjunto desarticulado e desorientado de ministros desgastados, sem rumo, sem ambição e vontade reformista, um governo à deriva navegando à vista”.

Cronologia de uma ausência política

Geringonça, 2015/19

Durante o período da geringonça, Cavaco Silva esteve praticamente ausente da praça pública. E isto tem uma explicação simples: a primeira legislatura de Costa coincidiu com a escrita das suas memórias do período da presidência.

Em “Quinta-Feira e Outros Dias” (dois volumes), recorde-se, Cavaco não deixou de fazer política nem fugiu a deixar críticas. Aí, relatou a criação da geringonça, a abertura do PCP e do Bloco de Esquerda, e consubstanciou a exigência do acordo por escrito. Descreveu também António Costa como um homem simpático e bem-disposto, de sorriso fácil", "um hábil profissional da política, um artista da arte de nunca dizer não aos pedidos que lhe eram apresentados".

De viva-voz, o antigo Presidente da República, em agosto de 2017, na Universidade de Verão do PSD, atirou à geringonça: a realidade "impõe-se aos governos que querem realizar a revolução socialista", defendeu.

Em setembro de 2018, comentou apenas que via “com estranheza” a saída de Joana Marques Vidal da Procuradoria-Geral da República.

“Sou levado a pensar que esta decisão política de não recondução de Joana Marques Vidal é a mais estranha tomada pelo Governo, que geralmente é conhecido como gerigonça”, disse, em declarações à margem do Digital Business Congress, evento promovido pela Associação para o Desenvolvimento das Comunicações (APDC).

Governo minoritário, 2019/22

Em dezembro de 2020, numa iniciativa na internet promovida pelo núcleo da Juventude Social-Democrata (JSD) da Maia, Cavaco Silva atacou a esquerda parlamentar, acusando “os outros governos não sociais-democratas” de raramente terem sido “governos com uma perspetiva reformista”. “Não sou capaz de apontar uma reforma significativa levada a cabo pelo governo da geringonça”, disse.

Em março de 2021, numa participação, por videoconferência, na Academia de Formação Política das Mulheres Sociais-Democratas, Cavaco Silva falou sobre a “deterioração da qualidade da democracia a que a geringonça conduziu o país”.

Dois meses depois, numa entrevista ao podcast Défice de Atenção, de estudantes do Católica Lisbon Economics Club, defendeu que o Governo de Costa regia-se “pelos princípios da ilusão fiscal e da dispersão”. E, ainda no mesmo mês, numa declaração enviada por escrito à agência Lusa, tomou uma posição quanto à reforma das Forças Armadas: “um erro grave”, defendeu então.

Maioria absoluta, 2022

Em junho do ano passado, em entrevista à CNN Portugal, afirmou que as políticas seguidas pelo Governo, “e em particular no tempo da geringonça, criarão sérias dificuldades à criação dos sonhos de bem-estar das novas gerações portuguesas”. No mesmo mês, num evento em Fafe, em declarações aos jornalistas, atirou mesmo à retórica de “contas certas” do Governo.

Em novembro, em declarações à Renascença, a propósito da aprovação do diploma da Eutanásia no Parlamento, Cavaco Silva disse que “o modo displicente como alguns dos nossos políticos tratam a retirada da vida a um ser humano é condenável e assustador”.

Já em fevereiro deste ano, num evento da Misericórdia da Figueira da Foz, confessou que apenas não fala mais frequentemente por não querer “atirar achas para a fogueira”.

Em março, após a apresentação do pacote Mais Habitação, defendeu que a crise habitacional que se vive no país "é o resultado do falhanço da política do Governo no domínio da habitação nos últimos sete anos”. Declarações que mereceram pronto remoque de Costa. Chamou-lhe "sábio dos sábios", lembrando que foi Cavaco quem promulgou a lei do arrendamento coercivo num dos mandatos de Passos Coelho.

Costa lembra que foi "sábio dos sábios" Cavaco Silva quem promulgou arrendamento coercivo
Costa lembra que foi "sábio dos sábios" Cavaco Silva quem promulgou arrendamento coercivo

E, em abril, no lançamento do livro “Crónicas de um País Estagnado”, de Joaquim Miranda Sarmento, líder parlamentar do PSD, deixou escapar que a situação política em Portugal “deteriorou-se muito mais do que aquilo que que se antecipava".

Num momento de grande agitação política, no auge do "Galambagate", Cavaco Silva volta a fazer apontar os holofotes a si próprio. Com que efeitos e para que fim são questões que ficam para alimentar os próximos ciclos mediáticos.

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