06 jul, 2024 - 07:50 • Francisco Sousa (comentador e analista)
Na conferência de imprensa após o jogo com a França, Roberto Martínez afirmou que a finalização não foi um problema. Depois de 364 minutos sem marcar um golo, parece que esse detalhe pode ter alguma relação com a eliminação portuguesa do Europeu. Apesar de Portugal ter rubricado a exibição mais consistente com bola na Alemanha, ficou a faltar o poder de fogo que numa geração com tantas e tão diferenciadas opções para atacar a baliza contrária tem de ser mais potenciado.
As ocasiões claras acabaram por chegar apenas na segunda parte, depois de 45 minutos em que a equipa das quinas soube ter uma construção mais ponderada, com Bernardo Silva a mostrar notória influência na participação a partir de zonas mais recuadas e com Vitinha a tomar um protagonismo progressivo na manobra do passe e deslocação até aos últimos metros. Até ao derradeiro momento do prolongamento, houve margem para gerar perigo, mas faltou sempre a melhor definição no remate.
Além do pecado da finalização, neste encontro houve outro período de verdadeiro desconforto para a equipa de Roberto Martínez: os minutos que se seguiram à entrada de Dembélé. O lado imprevisível, a potência de arranque e a ambidestria trouxeram inúmeras dores de cabeça à defesa portuguesa. Valeu também aí a falta de pontaria gaulesa (além do próprio Dembélé, Camavinga também perdeu chance clara e já antes Kolo Muani tinha pecado na cara do golo). Certo é que haver espaços para as transições rápidas francesas seria sempre contraproducente (mesmo havendo Pepe e Rúben Dias).
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O Euro de Portugal esteve longe do brilhantismo, numa nota global, e muitas vezes fomos falando por aqui dos vários problemas (circulação previsível, insistência nos cruzamentos com ataque pouco criterioso à área, gestão estranha de Martínez em termos de trocas e erros no momento defensivo, individuais e coletivos). A partida com a França teve outra direção, no sentido em que seleção nacional teve a coragem competitiva para discutir a posse, sabendo que os ‘galos' não teriam necessariamente um desejo ardente de sair do conforto do casulo defensivo (hoje de início em 4-3-1-2, com Griezmann metido mais por dentro, nas costas do duo de avançados).
A noite de Hamburgo ajudou a confirmar a certeza de futuro de primeira água nesta seleção para elementos como Nuno Mendes, Vitinha ou Rafael Leão (mesmo com a irregularidade vista nos primeiros jogos). O lateral do PSG fez mais uma exibição monstruosa, na dimensão defensiva, com várias intervenções fundamentais no desarme e ganhando duelos, e a auxiliar o ataque, com movimentos ricos e diversificados (ora por fora, na complementaridade com Leão, ora soltando-se esporadicamente por zonas interiores). Vitinha ajudou a carregar a equipa para a frente a partir do momento em que se soltou, surgindo em zonas mais subidas, assumindo o passe e criando até uma das melhores oportunidades de todo o jogo.
Já dentro dos tais convocados de estatuto indiscutível, Palhinha, Bernardo Silva ou João Cancelo também deixaram uma ótima amostra em vários momentos. O criativo do Man. City mora mais feliz ao centro e o jogo nacional sai logo beneficiado com essas incursões interiores. Cancelo cria mais impacto por fora, mesmo que saiba fazer a aproximação ao corredor central. É um dos laterais mais criativos da atualidade e isso percebeu-se naquele passe para a ruptura de Bruno Fernandes (valeu Maignan, outra vez gigantesco na baliza francesa). E Palhinha até saiu antes do prolongamento, devido ao amarelo, mas foi fundamental a garantir sustento posicional sem bola e precisão de rotação no passe mais alongado.
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Também Martínez mostrou um pouco mais de perspicácia do que noutras noites: toda a gente esperava que mudasse a partir do flanco esquerdo aquando da entrada impactante de Dembélé, mas lançou Nélson Semedo e Conceição para a direita, com Bernardo a assumir ainda mais protagonismo por dentro. Ficou só a faltar Diogo Jota, que pela agressividade nas desmarcações a romper na área podia ter adicionado importante instinto finalizador a uma equipa necessitada. O selecionador preferiu o perfil de João Félix.
Não deu para seguir para as meias-finais. Desta feita, Diogo Costa não chegou para as encomendas nos penáltis, exemplarmente cobrados pelos franceses. Depois do apito final, o discurso motivador, colorido e que se esquiva às questões difíceis e pertinentes de Roberto Martínez manteve-se intacto. Que a energia, força e paixão de que fala se mantenham também, mas de preferência acompanhadas de estrutura, de domínio, de talento e de primazia pelo coletivo, sem olhar a estatutos.
O Espanha-Alemanha talvez não tenha sido tudo aquilo que esperávamos, mas foi o suficiente para nos deixar agradados. Julian Nagelsmann viu a Espanha entrar melhor, no 4-3-3 da praxe, e tentou encaixar Gündoğan em Rodri e Emre Can em Fabián Ruiz para que a ‘roja' não sentisse tanto conforto a progredir por dentro (sem grande sucesso, diga-se). Por sua vez, de início, os espanhóis tentaram empurrar a ‘mannschaft' a procurar mais saídas pela direita, para que a influência de Kroos na construção não fosse tão notada.
O jogo abriu-se de verdade na etapa complementar. Nagelsmann lançou Andrich para o lugar de Emre Can e Wirtz para encontrar a inspiração que Sané nunca demonstrou ter. A Espanha possui jogadores ímpares para superar a pressão rival (desde a baliza) e de uma abertura de Laporte nasceu o golo da vantagem espanhola. O central gerou a habitual vantagem no passe, Morata fez bem a desmarcação para a meia-direita, levando com ele Tah e permitindo que Lamine Yamal encarasse Raum com mais à vontade. Da bota do prodígio do Barça chegou assistência com açúcar para o golo de Dani Olmo.
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Nagelsmann é proativo e percebeu que a equipa necessitava da ameaça de recurso que tantas alegrias deu a esta equipa noutras partidas (Füllkrug). O atacante do Borussia Dortmund foi um alvo privilegiado dos múltiplos cruzamentos que se seguiram e para os quais o recuo espanhol em muito contribuiu. Havertz era companhia de luxo para o ataque à área, mas acabou por ser o baixinho Kimmich a ir buscar um cruzamento às costas de Cucurella para servir o empate a Wirtz (determinante na vertente técnica e nas desmarcações).
Antes disso, já Luis de la Fuente tinha lançado Mikel Merino para ajudar a equilibrar (até pela estatura) e a dar saída para a frente, na mesma medida em que visava mais energia a avançar para área com Ferrán Torres e Oyarzabal. Já não dispunha do talento dos irreverentes Yamal e Nico Williams, mas pelo menos estava Olmo em campo para servir o voo vitorioso de Mikel Merino, nas costas de Rüdiger.
Foi um golo simbólico, bonito e trágico, tudo ao mesmo tempo. Porque nos privou de ver Toni Kroos a atuar pelo menos mais uma vez. A despedida do mago teve mais agressividade do que é costume (com outro árbitro, podia não ter escapado à expulsão…), mas também um delicado contributo no período de crescimento alemão em campo. Ainda agora acabou e já estamos com saudades.
Tem sempre impacto. O ‘passe' para a baliza que deu vantagem à Espanha tem a sua marca de água. Mesmo com a passagem para a esquerda, não perdeu a influência criativa e continuou a ser dos mais clarividentes da equipa. O cruzamento para o cabeceamento certeiro de Merino foi só mais uma prova da riqueza que este rapaz traz ao jogo ofensivo espanhol.
A aposta indiscutível já é questionável de há algum tempo a esta parte. Podia acrescentar em determinados contextos específicos, mas fica difícil justificar a titularidade absoluta (até em jogos para 'cumprir calendário'), restando sempre a ideia de que o estatuto pesa muito mais do que o rendimento.
Com a França, e uma vez mais, pouco acrescentou na dinâmica construtora do último terço e mesmo dentro da área já não consegue superiorizar-se aos centrais rivais. Nem o ‘bombom' de Chico Conceição aproveitou. O passado ficou mesmo lá atrás, foi brilhante, vai-nos deixar saudades, mas querer perpetuá-lo eternamente não vai trazer efeitos positivos. Para todas as partes envolvidas.