"É um sentimento inexplicável, um sonho desde pequenina": estes são os rostos da primeira equipa feminina do FC Porto

Três rostos, três entrevistas, três pontos de vista que convergem sempre num aspeto: o portismo. Na primeira equipa feminina do FC Porto, os corações batem forte e com o objetivo comum de abrir mais portas, chegar cada vez mais longe e fazer mais história.

20 set, 2024 - 11:20 • Inês Braga Sampaio (entrevistas) , Eduardo Soares da Silva (vídeo)



O público cantava, o "speaker" do Estádio do Dragão entoava o nome da marcadora de mais um dos nove golos da manhã e Joana Neves, sentada no banco na segunda parte, deixava-se assomar pela emoção. "Estava toda arrepiada", admite. Portista de coração e, agora, de camisola, a média, de 23 anos, recordará para sempre o jogo de apresentação da primeira equipa feminina da história do FC Porto.

Foi o primeiro jogo de muitos da equipa que André Villas-Boas prometeu aos portistas durante a campanha eleitoral, um dos trunfos que lhe deram a vitória esmagadora sobre Jorge Nuno Pinto da Costa no sufrágio de 27 de abril, por 80,3% dos votos. O presidente dos últimos 42 anos falava de acordos com equipas de I Liga, para entrar diretamente no mais alto escalão, mas o antigo treinador apostava num modelo mais sustentado, a começar por baixo, pela terceira. Os adeptos escutaram e escolheram o projeto de Villas-Boas.

Pouco mais de quatro meses mais tarde, a estreia da primeira geração de futebolistas femininas seniores do FC Porto. A entrada era livre, mas nem assim se esperaria a enchente que se verificou. A fila ia até ao edifício do metro. Houve até quem não tivesse conseguido entrar a tempo do primeiro golo.

Em entrevista à Renascença, mesmo à frente da primeira fotografia de equipa, estreada na galeria do Estádio do Dragão, Joana Neves recorda que a primeira coisa que fez quando entrou em campo foi procurar a família. Pontinhos que se terão perdido na multidão, à medida que se abria bancada após bancada para fazer face à surpreendente adesão dos adeptos portistas à estreia da sua nova equipa.

Viram o jogo 31.093 pessoas, novo recorde de assistência de um jogo de futebol feminino em Portugal. Joana Neves nunca jogara perante tanta gente: "Já joguei na I Liga e sempre tive adeptos a ver, mas nunca comparado, nem perto, com uma coisa destas. Nem sei explicar. Ouvir os cânticos, ouvir as pessoas a puxar por nós. E depois, quando era um golo, ouvir o nome da atleta que marcou golo... Eu estava no banco na segunda parte e fiquei toda arrepiada."

"É um sentimento inexplicável. Acho que não dá mesmo para pôr em palavras o que é representar este clube. Sempre disse, é um sonho desde pequenina. É mesmo um orgulho estar aqui", declara.

Os primeiros passos


Joana Neves encontrou uma porta para o futebol no Valadares Gaia, uma das principais equipas da zona do Porto. Há também o Boavista, no entanto, hoje em dia, as oito vezes campeãs nacionais andam longe da ribalta, na segunda divisão.

Foram 12 anos de Valadares. Um dia, quando estava no carro, a caminho do ginásio, o telefone tocou.

"Ligaram-me. A estrutura do FC Porto ligou-me e eu fiquei assim", relata, abrindo a boca numa expressão de surpresa e choque. "Fiquei sem reação. Desliguei a chamada e tive logo de ligar ao meu pai e à minha mãe a dizer. Cheguei cá, nem precisei de mais reuniões. Vim só uma vez e ficou. Precisei de ali uns segundos para decidir, mas depois foi logo."

Joana Neves é uma de 23 jogadoras da primeira equipa feminina da história do FC Porto. A primeira a ser anunciada foi Cláudia Lima, que também deixou o Valadares para rumar ao Dragão. Foi em moldes diferentes, contudo, uma vez que a média, de 28 anos, era capitã do clube gaiense e, agora, também enverga a braçadeira do clube do coração.


Joana Neves ficou "toda arrepiada" com o jogo de estreia no Dragão. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Joana Neves ficou "toda arrepiada" com o jogo de estreia no Dragão. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR

O treinador da equipa, Daniel Chaves, destaca que a capitã Cláudia Lima "é o perfil de pessoa, em termos de personalidade", que o clube procurava "enquanto jogadora do FC Porto".

"Daí ter sido logo o primeiro nome que me viria à cabeça para o plantel. A partir daí, construir tendo em conta o que é o projeto do clube. É um projeto para agora, mas também a longo prazo. Ou seja, a jogadora jovem pode dar-nos o curto e também o longo prazo. Pegámos por aí. A construção de um plantel jovem, que nos desse garantias para o que é a competitividade da terceira divisão, mas que nos possa alimentar também para o futuro do projeto. Porque de outra forma também não faria sentido estar a construir o plantel", explica, nesta entrevista a Bola Branca.

O plantel é jovem, com dez jogadoras de 18 ou menos anos. A mais velha é Cláudia Lima, com 28. Joana Neves, de 23, é a quarta - atrás de Adriana Semedo, de 24, e de Bárbara Marques, três meses mais velha que a número 10. Também o treinador é novo: Daniel Chaves tem 33 anos apenas, apesar da extensa experiência, tendo já sido adjunto nas equipas femininas de Boavista, Valadares Gaia e Gil Vicente.

O técnico ainda se lembra do dia em que surgiu o convite para assumir, pela primeira vez, o comando de uma equipa sénior, e logo no clube em que cresceu como treinador e de que cresceu a gostar.

"O convite surgiu através do diretor do futebol feminino, do professor José Manuel [Ferreira]. Convidou-me para vir aqui reunir e falou-me do projeto. Foi um misto de emoções. Seja pelo clube que é, seja o facto de ser portista. Depois, também a questão de ser futebol feminino. Já tinha passado pela realidade. De alguma forma, também não queria voltar imediatamente ao futebol feminino, mas, atendendo ao clube e ao projeto, só tive de aceitar", confessa.

O primeiro mês "está a ser muito positivo", mesmo sendo "tudo muito novo para o clube", assim como para as jogadoras.

"Um contexto totalmente diferente também do que o plantel estava habituado, o próprio clube a adaptar-se à realidade do que é o futebol feminino. Até agora, tudo positivo. Estamos só à espera mesmo de começar os jogos a contar, para trazer alguma competitividade ao nosso dia a dia", assinala.

Começar por baixo para chegar mais alto

"Futebol Clube do Porto" são quatro palavras que movem multidões. É um dos três grandes de Portugal, coleciona paixões e a entrada no futebol feminino era há muito aguardada. Joana Oliveira, coordenadora técnica do futebol feminino, foi jogadora amadora, antes de se interessar pela vertente do treino e, depois, da gestão.

Entrou no FC Porto já pela porta da gestão desportiva, "não do futebol, num departamento completamente diferente, muito mais em questão de organização de jogos e de acompanhamento, a área regulamentar". Em abril, com a entrada da nova administração, tudo mudou e Joana Oliveira, que há muito queria trabalhar diretamente no futebol, não quis perder o comboio.

"Isto é um projeto ambicioso, mas também corajoso. É perceber por onde é que podemos ir, qual é o caminho mais seguro e depois avançar", vinca.


 Quadro da equipa feminina do FC Porto na galeria do Dragão. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Quadro da equipa feminina do FC Porto na galeria do Dragão. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR

A construção do plantel seguiu um mote de base, "a procura do talento, a sustentabilidade do projeto para o futuro". A coordenadora técnica explica à Renascença o processo de recrutamento:

"Procurar talento jovem que viesse sustentar o futuro do FC Porto nas competições nacionais. Na equipa sénior, tentámos ir buscar algumas jogadoras à Liga BPI que trazem alguma experiência, porque já estavam na competição mais exigente em Portugal. Algumas jogadoras à segunda divisão que também tinham perfil para chegar à primeira, mas tinham, essencialmente, a consistência e a exigência da segunda divisão, que é uma competição muito longa e em que elas têm de ser regulares. Também jogadoras que foram até à segunda fase, a fase de campeão e que preenchiam os critérios que nós queríamos. E depois, na terceira divisão, procurar jovens talentos. É uma divisão muito rica em jovens talentos. E procurámos ser exímios e ir buscar jogadoras que nos próximos dois, três, quatro anos se desenvolvam, para chegar à Liga BPI com outra experiência, com o projeto e com a imagem à jogadora do FC Porto."

Entrar pela terceira divisão, mesmo tendo o objetivo de subir ano a ano, dá tempo ao clube de "criar a jogadora 'à FC Porto' a tempo, cometer os erros e ter tempo para os corrigir, e respeitar o processo, percebendo os momentos para ajustar e aqueles em que se está no caminho certo", detalha Joana Oliveira.

"Dá tempo de organizar a casa", acrescenta Daniel Chaves, e "margem de manobra para o crescimento do projeto".

"Para mim, é muito desafiante", refere Joana Neves. "Primeiro, como sou adepta, sempre me puxou vir para aqui. Mas é desafiante para mim, e para todas nós, começarmos agora do zero e termos o objetivo de subir sempre e de chegar ao patamar mais alto do campeonato feminino. Mas claro que é sempre um desafio. Eu desci da primeira, estou na terceira, mas não é um passo atrás. Estamos aqui porque gostamos de estar e queremos levar o clube onde ele merece estar também."

Ainda assim, num plantel que respira portismo, a ambição é uma das palavras de ordem: "Nós queremos subir à segunda divisão esta época, acho que é muito claro. Temos de ganhar todos os jogos e estamos a trabalhar também nesse sentido."


Daniel Chaves quer levar o FC Porto até à I Liga. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Daniel Chaves quer levar o FC Porto até à I Liga. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR

Já o papel do treinador é manter os pés das jogadoras bem assentes na terra. Passe a passe até à baliza, como nas equipas de Pep Guardiola, em quem se inspira. Daniel Chaves é igualmente fã de José Mourinho, pelo trabalho do português no FC Porto. O "Special One" também não costuma subir ao Olimpo logo na primeira época.

Crescer de forma sustentada e sustentável é imperativo para uma equipa que tem somente um mês de vida.

"Sinto que tenho um plantel competitivo para a terceira, sem querer ser limitante. Tivemos jogos de treino com equipas de segunda divisão e sentimo-nos competitivos também com elas, mas lá está, não quero levar a que acham que este ano vai ser demasiado fácil. Nem o vemos assim. Vai ser um ano muito competitivo e queremos estar ao mais alto nível. O plantel dá-nos garantias de ser competitivos jogo a jogo", refere Daniel Chaves.

É impossível esconder, porém, que "o objetivo é estar na I Liga o mais rápido possível".

"Se isso vai traduzir em dois anos, só o caminho que faremos o dirá. Este ano, obviamente, o objetivo principal é subirmos de divisão. Não escondemos isso, claro que sim. E para o ano vemos também como as coisas estão, se alcançamos o objetivo e voltamos a definir estratégias e ambições", salienta o técnico, que espera fazer esse caminho com a equipa: "Não me via a iniciar o projeto sem ter a ambição não apenas de o levar, mas permanecer lá, enquanto o clube estiver na primeira divisão. A ambição é essa, nem aceitaria o projeto se não me imaginasse nesse papel."

E apesar de "ambicionar coisas grandes", Joana Neves, que se inspira na espanhola Alexia Putellas, Bola de Ouro em 2021 e 2022, bebe das palavras do treinador e salienta, também, que, começando do zero, há que "ir passo a passo" e "não estar já a ambicionar coisas do futuro": "Temos de manter os pés no chão."

Joana Oliveira vinca que o FC Porto está "numa corrida contra o tempo", todavia, não está "mais atrasado ou mais adiantado que ninguém".

"Estamos no tempo certo, temos de respeitar isso. Como é óbvio, o objetivo já definido é subir para a segunda divisão. No entanto, sabemos, também, que a diminuição da Liga BPI para dez equipas vai dificultar muito mais o objetivo de subir", adverte.

Abrir bancadas, no Dragão e no clube

O final da época e as contas da subida estão longe, contudo, e por agora o Porto parte confiante para a estreia oficial (domingo em Viseu, com o Académico, às 15h). A oficiosa, para os adeptos, foi um sonho tornado realidade.

Joana Neves não esperava ver as bancadas repletas de adeptos.

"Nós esperávamos algumas pessoas, porque também víamos as redes sociais e pessoas que conhecíamos que tinham dito que estavam à espera que o Porto abrisse o feminino, que era uma coisa que o clube queria. Esperava alguma gente, mas não 30 mil pessoas. Foi uma coisa mesmo de outro mundo", enaltece.

"Aquilo que aconteceu no jogo na nossa apresentação é muito aquilo que vai ser o futuro do futebol feminino FC Porto. É ir abrindo bancadas", declara Joana Oliveira, para quem o recorde de assistência representou "uma força passada do exterior para o interior muito grande".

"Eu acho que não tenho noção, ainda, do que é que foi viver aquele momento. Todos nós que representamos o FC Porto temos uma missão clara no futebol feminino, que é a missão da equidade no futebol. Portanto, nós, mulheres, que um dia estamos no FC Porto a trabalhar e que no dia a seguir estamos a olhar em nosso redor e ver 31 mil pessoas a entrar pelas bancadas sucessivamente durante 45 minutos, uma hora, é uma sensação brutal. Eu olhava à volta e tinha a sensação de que nem estava a desfrutar, dada a responsabilidade que nos é passada", assinala.


A história como inspiração. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
A história como inspiração. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR

A demonstração de apoio dos portistas é um sinal de privilégio e de responsabilidade, no entender da coordenadora técnica:

"No fundo, é a mensagem, também, para dentro de que estas pessoas contam connosco, os adeptos também vão exigir de nós como exigem à equipa masculina, não vai haver diferença de tratamento. Isso é uma mensagem muito positiva, mas ao mesmo tempo uma mensagem de responsabilidade e também que nos passa logo a verdadeira essência do que é estar no FC Porto."

Regressar ao Dragão é um desejo, embora não seja, para já, uma prioridade.

"Não vamos jogar com 30 mil pessoas todos os jogos. De certeza que se vão proporcionar momentos em que jogaremos com quase 50 mil aqui, não tenho dúvidas nenhumas, há de chegar o tempo, mas neste momento o processo é este. Vamos jogando e abrindo bancadas até, no futuro, podermos jogar aqui com regularidade, com muitos adeptos", destaca Joana Oliveira.

A primeira página

Responsabilidade, orgulho, ambição. São três palavras repetidas nos três discursos de três portistas que, agora, trabalham para fazer da génese do futebol feminino no FC Porto uma página de ouro na história do clube.

E como esperam que esta equipa seja, mais tarde, recordada?

"Como uma equipa de portistas", afirma Joana Oliveira, sem hesitar, num um sorriso orgulhoso. "Uma equipa que passou as dores crescimento de um projeto em conjunto, mas uma equipa que se comprometeu a trabalhar, a respeitar o emblema e a ter de fazer de tudo para corresponder àquilo que são os objetivos", adita.


Joana Oliveira quer construir uma equipa "à Porto". Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Joana Oliveira quer construir uma equipa "à Porto". Foto: Eduardo Soares da Silva/RR

Daniel Chaves quer o ouro: "Como a primeira equipa a dar um título nacional ao clube. Por isso, a pretensão é subir de divisão e o ideal seria com o título de campeão da terceira divisão."

"Nem sei responder a isso", confessa Joana Neves, entre uma gargalhada.

A média, que escolheu o número que foi de ídolos como Teófilo Cubillas, Fernando Gomes, Paulo Futre, Paulinho Santos, António Folha, Deco e Ricardo Quaresma, tem a oportunidade irrepetível de ser a primeira. A primeira "10", o primeiro nome da lista, abaixo do qual se escreverá todos os que aí virão.

Cada jogadora do plantel do FC Porto é, agora, a primeira de muitas. E é isso que Joana deseja para esta geração.

"Que seja lembrada como a primeira. A primeira equipa. Vai ser sempre importante passarmos de divisão e ganharmos e subirmos, mas acho que, fundamentalmente, as pessoas vão olhar para... Foi neste ano que o Porto criou uma equipa feminina, foi neste ano que o Porto apostou nas mulheres e acho que essa parte também é muito importante", remata.


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