“Faltam bicicletas, faltam rodas”. Chove no velódromo onde treinam os campeões olímpicos

Sem Iúri Leitão, mas com os gémeos Oliveira e outros três atletas, a seleção nacional de ciclismo de pista volta à ação esta semana, nos Campeonatos do Mundo. Em Sangalhos, todos alertam para a falta de apoios e para o risco de estagnação, escassos meses após a conquista de ouro e prata nos Jogos Olímpicos de Paris.

17 out, 2024 - 10:50 • Eduardo Soares da Silva



Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Foto: Eduardo Soares da Silva/RR

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Em agosto, Portugal conquistou as suas primeiras medalhas olímpicas em ciclismo de pista. Dois meses depois, a seleção preparou o Campeonato do Mundo no único velódromo do país, em Sangalhos, onde chove na pista em dias de mau tempo.

No velódromo, treina-se no pico da intensidade. Os gémeos Rui e Ivo Oliveira passam que nem flechas em voltas e mais voltas em torno do circuito. Preparam a prova de madison, mas não estão totalmente à vontade: são obrigados a evitar um trecho do percurso que está molhado.

Não se pode admitir que chova no velódromo. Está assim desde janeiro, quando tiveram de parar uma prova para colocar umas lonas. Não tem jeito nenhum”, lamenta Ivo Oliveira, em entrevista à Renascença.

Portugal estreou-se no ciclismo de pista nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021, com um diploma de Maria Martins, e as medalhas vieram este verão. Pela primeira vez com uma equipa masculina, Iúri Leitão venceu a de prata no omnium, seguido do ouro – o único de toda a missão portuguesa – em dupla com Rui Oliveira no madison.

Iúri, de 26 anos, não estará nos Campeonato do Mundo, que se realizam na Dinamarca. É a grande ausência da seleção, mas viajou na mesma até Anadia para ajudar na preparação.

“Hoje sou adjunto”, brinca, entre risos. “Juntei o útil ao agradável, tinha alguns compromissos e entrevistas com o Rui e vim mais cedo para ajudar o selecionador”.


O mediatismo que acompanha a glória olímpica fez mossa na forma física do atleta de Viana do Castelo: “Tive de atender a muitos compromissos, que não poderia passar. São coisas únicas na vida.”

“Ainda tinha bastante tempo para voltar a estar em boa forma, mas fiquei doente. Estive mais cinco dias sem treinar e perdi todo o progresso”, justifica. Iúri estava convocado para o Europeu de estrada, mas foi também obrigado a abdicar para recuperar.

“Custa não competir num Mundial”, assume. Iria defender a camisola arco-íris que venceu no ano passado: “Tinha a convocatória na mão, é difícil não estar numa prova tão especial.”

A representar Portugal nos Mundiais estarão os irmãos Rui e Ivo Oliveira, o jovem Diogo Narciso, em estreia em Mundiais, Maria Martins e Daniela Campos.

Faltam bicicletas, faltam rodas, faltam mãos

Sem a possibilidade de subir ao selim, Iúri assiste enquanto os gémeos Oliveira dão voltas à pista. Faz soar o sino para motivar os colegas e ajuda no que for necessário. Em pista, estão apenas o treinador Gabriel Mendes e um mecânico. O resto da equipa já viajou para a Dinamarca, onde se realiza o Mundial.

“O selecionador está aqui sozinho, tem de fazer tudo: dar os tempos, planear o treino, conduzir a mota. Nem sequer temos cá o massagista para recuperar os atletas”, aponta o campeão olímpico. Chega à conclusão pouco depois: “Precisamos de mais mãos, mas isso só se consegue com mais dinheiro.”

A falta de investimento é uma preocupação transversal a todos que estão na seleção, dos atletas ao staff. Para além dos problemas na pista, Rui Oliveira aponta para outros dilemas estruturais. Há quem tenha de investir do seu próprio dinheiro.

“Faltam rodas, faltam bicicletas. Temos milhares de euros investidos por nossa conta própria em guiadores e outro material para otimizar a aerodinâmica. Não é bom”, lamenta.


O irmão concorda. Os dois vivem a realidade oposta no ciclismo de estrada. Representam a UAE-Emirates, apontada por muitos como a melhor equipa do mundo.

“Até exageram, na equipa, temos até pessoas para nos levarem uma mala do quarto para a receção e isso nem nos custava nada. Estamos ali para a performance. Pode ser exagerado, mas é o investimento em rendimento que talvez falte aqui”, afirma Ivo.

Maria Martins, de 25 anos, foi quem estreou o ciclismo de pista português nos Jogos Olímpicos, em Tóquio. Assume-o como um distintivo de honra, mas não consegue não colocar o dedo na ferida.

“Estamos aqui cinco atletas e, infelizmente, temos corridas em que é preciso passar rodas entre cada um para podermos estar com o melhor material. Temos ouro bruto a ser desaproveitado e fico triste pelo desporto em Portugal”, refere.

É ela que leva as críticas até ao poder político. O primeiro-ministro, Luís Montenegro, publicou uma foto com os campeões olímpicos momentos após o fim da prova e, mais tarde, condecorou-os, prometendo um reforço público no desporto nacional. Maria, mais conhecida por “Tata”, quer ver as promessas serem cumpridas.

Estavam todos lá para tirarem as fotografias como gostam, mas não há uma vez que tenha visto alguém a vir aqui à pista ver os bastidores. Não fazem ideia, mas quando saem medalhas, é tudo muito bonito”, critica.


Ivo Oliveira é o irmão gémeo de Rui. Ambos competem na mesma equipa, a UAE-Emirates. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Ivo Oliveira é o irmão gémeo de Rui. Ambos competem na mesma equipa, a UAE-Emirates. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Gabriel Mendes é o selecionador de ciclismo de pista. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Gabriel Mendes é o selecionador de ciclismo de pista. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR


Iúri Leitão a assistir ao treino dos colegas. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Iúri Leitão a assistir ao treino dos colegas. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR

É o selecionador Gabriel Mendes quem gere todo o departamento de ciclismo de pista. Foi com ele que arrancou o projeto mal o velódromo foi construído, em 2009. Também partilha as frustrações dos atletas, mas agradece os apoios que já existem.

“Reconheço o esforço do município, mas o velódromo é muito grande, tem exigências de manutenção e não é fácil para o município responder. O velódromo vai sofrendo agressões e, a médio prazo, precisa de ser intervencionado”, pede.

Numa entrevista a Bola Branca no início de outubro, o atual presidente do Comité Olímpico de Portugal, Artur Lopes, sublinhava a necessidade de renovações e revelou que já fez chegar o pedido até Luís Montenegro: “Quando ganhámos a medalha de ouro, o primeiro-ministro estava ao meu lado e eu disse-lhe: ‘Atenção, a pista da Anadia tem 15 anos, qualquer dia é uma ruína, precisa de ser arranjada’.”

Selecionador-professor, o obreiro de 65 medalhas

Gabriel “não sabe” se as medalhas nos Jogos Olímpicos deram à sua seleção maior crédito para reclamar condições. Opta por uma posição mais cautelosa.

“Tento fazer o melhor com o que é disponibilizado e não ficar a queixar-me. Trabalhamos no limite de várias coisas, mas se ganhamos mais capacidade de reclamar, não sei. Mas é importante que se perceba que com este tipo de infraestruturas, para mantermos trabalho de qualidade, tem de haver, a montante, um trabalho na manutenção das condições. Sem isso, o processo é mais difícil”, diz.

O selecionador – cargo que acumula com o de coordenador técnico – menciona o processo várias vezes, não fosse um homem da academia. Foi formado em Ciências do Desporto e tem um mestrado com tese sobre a otimização da altura do selim no rendimento dos ciclistas.


Gabriel Mendes conduz a mota que apoia o treino. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR
Gabriel Mendes conduz a mota que apoia o treino. Foto: Eduardo Soares da Silva/RR

Ainda tentou ser ciclista, mas acabou por desistir cedo. Dedicou-se aos estudos e foi durante vários anos professor de Educação Física até se ter candidatado ao cargo que acabava de abrir na Federação de Ciclismo.

“Estive três meses na UCI a fazer uma formação. Tínhamos um velódromo, mas não havia uma cultura de trabalho em alto rendimento. Começámos do zero”, reconhece.

Começou pela base, pelos mais novos. Os atletas que hoje figuram na seleção principal fizeram parte dessas primeiras fornadas que passaram por Sangalhos para experimentar a pista. As condições eram escassas.

O Rui Oliveira conseguiu a nossa primeira medalha, uma prata num Europeu, com um quadro de alumínio. Quando começámos, tínhamos rodas de raio. Para se ter noção, para atingir a mesma velocidade, são rodas que implicam mais 100 watts de potência. É material que já nem usamos para treino. Os atletas faziam resultados e íamos melhorando o material. Foi aos poucos”, recorda.

Rui foi o primeiro, em 2013. Desde então, Gabriel já viu os seus atletas vencer 65 medalhas.


Nenhum dos ciclistas poupa nos elogios ao técnico. Rui diz que Gabriel "faz o trabalho que nas outras seleções é desempenhado por três ou quatro", enquanto que o gémeo sente que não precisa de fazer uma grande defesa ao selecionador.

“Foi a pessoa certa para este cargo, está à vista de todos, não é?”, atira. Conclui: "Não sabíamos treinar, não sabíamos comer, não sabíamos nada. Aqui aprendemos o que era o ciclismo. Tem um papel gigantesco. É a única pessoa que sabe de pista em Portugal."

Gabriel não esconde o orgulho das conquistas de Paris, mas é cauteloso em relação ao futuro: não reforçar aposta pode tornar as medalhas difíceis de repetir.

"Aconteceu e atingimos o topo. Duas medalhas na primeira participação há de ser algo que não é muito frequente. Agora, há mais para a frente. É fundamental o investimento para nos mantermos competitivos. Uma coisa é chegarmos ao topo, outra é mantermo-nos competitivos ao longo do tempo”, alerta.

Iúri Leitão garante que "não há falta de atletas para serem os [seus] sucessores", mas Ivo Oliveira, natural de Vila Nova de Gaia, não tem tantas certezas sobre o futuro.

"Vamos andar aqui e depois, se calhar, não há continuidade. Tivemos sorte que somos de perto, mas jovens do Algarve não terão tanta sorte. Não faltam miúdos para se apaixonarem por esta modalidade, falta ajuda porque isto pode estagnar", receia.

Maria Martins foi a primeira a competir na Dinamarca com um 16.º lugar no scratch. Esta quinta-feira, volta a competir na disciplina de eliminação. No mesmo dia, Diogo Narciso estreia-se em Campeonato do Mundo de elite, no scratch.

Na sexta-feira, Maria Martins disputa a prova de omnium, Ivo Oliveira tentará passar às finais da perseguição individual e Diogo Narciso participa na corrida por pontos. Rui Oliveira é o único português em prova no sábado, no omnium.

O Mundial acaba no domingo, com novo dia repleto de ação: Daniela Campos sobe à pista para a corrida por pontos, Diogo Narciso é o representante português na eliminação e os gémeos Ivo e Rui Oliveira fazem equipa no madison.


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