​"O tempo que for preciso". A relação especial entre a Alemanha e a Ucrânia

A cidade alemã que acolhe a seleção da Ucrânia neste Europeu vai engalanar-se com o azul e amarelo de Kiev. Os dois países desenvolveram uma relação especial desde a invasão russa. O apoio à Ucrânia é grande, embora na sociedade alemã cresça a relutância ao envio de mais armas.

12 jun, 2024 - 07:00 • Guilherme Correia da Silva



O padre Mykhailo Chaban com os atletas do FC Pokrova. Foto: Salesianos de Don Bosco
O padre Mykhailo Chaban com os atletas do FC Pokrova. Foto: Salesianos de Don Bosco

Neste Europeu, o padre Mykhailo Chaban vai torcer pela seleção da Ucrânia. Porque é a equipa do seu país e especialmente porque o caminho do 11 ucraniano até chegar à fase final do campeonato, via play-off, foi tortuoso. "Estamos muito satisfeitos por termos passado", desabafa Chaban.

O sacerdote criou uma equipa de futebol na Ucrânia, o FC Pokrova, na qual jogam mais de 30 jovens e adultos, a maior parte soldados ucranianos amputados de guerra. Treinam pelo menos duas vezes por semana, todas as semanas, em Lviv. É de lá que Chaban fala com a Renascença, por videoconferência.

"É um projeto que nasceu em plena guerra. Vemos muitos soldados que perderam as pernas ou as mãos e, é claro, temos de os ajudar, temos de os apoiar psicologicamente e propor atividades que possam retribuir e dar um sentido de vida."

Não há dados oficiais, mas estima-se que, desde o início da invasão russa, em fevereiro de 2022, entre 20 mil e 50 mil soldados tenham sofrido amputações dos braços ou das pernas.

O padre Mykhailo Chaban diz que as necessidades são cada vez maiores, e as infraestruturas de reabilitação ainda são poucas para atender a todos os que precisam.

"Por isso é que nós, salesianos, começámos a fazer coisas concretas, criando por exemplo esta equipa de futebol. Depois de nós, já foram criadas outras cinco pequenas equipas, em Kiev, Dnipro ou Tchercássi. Viram o nosso exemplo e perguntaram-nos como é que se faz."

Muita ajuda alemã — das associações e do Estado

O projeto do FC Pokrova é acompanhado à distância em Bona, na Alemanha, pela Missão Dom Bosco, que ajuda a encontrar parceiros de financiamento e presta apoio administrativo.

O FC Pokrova não é o único projeto abraçado pela organização — também em Lviv, por exemplo, a Missão Dom Bosco montou infraestruturas para acolher mais de mil pessoas forçadas a deixar as suas casas por causa da guerra no Leste ucraniano.

Na Alemanha, tanto a sociedade civil, como o próprio Estado mobilizaram-se em massa para ajudar a Ucrânia depois da invasão russa.

O governo alemão promete apoiar os ucranianos "o tempo que for preciso". Até agora, disponibilizou cerca de 34 mil milhões de euros, segundo os dados oficiais mais recentes. Envia ajuda humanitária e tem financiado, por exemplo, a reconstrução de infraestruturas elétricas ou a remoção de minas e outros engenhos explosivos. Também fornece armas à Ucrânia. Quebrou assim um tabu no país: prover armas a zonas de conflito.


Atletas do FC Pokrova. Foto: Salesianos de Don Bosco
Atletas do FC Pokrova. Foto: Salesianos de Don Bosco

Mudanças geoestratégicas

Até fevereiro de 2022, o costume era bloquear esse tipo de fornecimentos. Mas os tempos mudaram, segundo o chanceler alemão, Olaf Scholz. Valores basilares europeus estão em risco e é preciso defendê-los: "Sem segurança, não há outras coisas. Não há liberdade, não há democracia, não há direitos humanos", disse Scholz.

A Alemanha está muito diferente desde o início da invasão russa da Ucrânia. Virou as costas à Rússia de Vladimir Putin, da qual dependia para obter petróleo e gás, diversificou os parceiros de negócios e, após alguma relutância inicial, é agora o segundo maior fornecedor de ajuda militar à Ucrânia, a seguir aos Estados Unidos. Já enviou tanques, drones, mísseis.

Há poucas semanas, o chanceler autorizou até o uso de armas alemãs para atingir alvos na Rússia, outra quebra de tabu.

Ao mesmo tempo, a Alemanha tem investido em equipamento militar para defesa própria. Pouco depois da invasão russa da Ucrânia, o governo anunciou uma soma histórica de 100 mil milhões de euros para modernizar o Exército.

Críticas às armas e não só

Quarenta e três porcento dos alemães estão contra o envio de mais armas para a Ucrânia, segundo uma sondagem publicada em fevereiro.

Recentemente, num debate público com a ministra do Desenvolvimento da Alemanha, durante a comemoração dos 75 anos da Constituição alemã, em Bona, um membro da plateia perguntou, em jeito de provocação, até que ponto a indústria militar se senta à mesma mesa nas reuniões de Conselho de Ministros.

A ministra Svenja Schulze respondeu que não é isso que acontece. "Infelizmente, o mundo mudou. E por muito que gostasse de dizer que é possível [apoiar a Ucrânia] sem armas, neste momento não é possível fazê-lo sem armas", afirmou Schulze.

"Eles estão a ser invadidos e estão a defender-se. E neste momento precisamos [também] de um Estado forte e temos de nos [conseguir] defender novamente."

"Nunca pensei ter de dizer isto, gostaria de não ter de dizer isto", acrescentou a governante, "mas nós não sabemos onde o Presidente russo vai parar."

Com o arrastar da guerra tem também aumentado o ceticismo em relação ao milhão de refugiados ucranianos que chegou ao país, refere o historiador alemão Jürgen Mittag. Muitos ucranianos na Alemanha não estão a trabalhar (enfrentam vários obstáculos, desde a língua ao reconhecimento das qualificações); por isso, dependem de subsídios do Estado. Isso é visto de forma crítica pela opinião pública. Deixou de existir o "apoio expressivo de antes" aos refugiados, embora ele não tenha desaparecido por completo na sociedade, realça Mittag.


Alemanha e Ucrânia disputaram um particular, antes do Euro 2024, com apelo à paz. Foto: Ronald Wittek/EPA
Alemanha e Ucrânia disputaram um particular, antes do Euro 2024, com apelo à paz. Foto: Ronald Wittek/EPA

Uma receção azul e amarela

O quartel-general da seleção ucraniana durante o Europeu de futebol será na cidade de Taunusstein, no oeste da Alemanha. A Câmara Municipal promete que a cidade "vai brilhar" com as cores da bandeira ucraniana, azul e amarelo. Vai montar pirâmides de flores e pendurar bandeiras nos candeeiros; está também agendada uma festa com a comunidade ucraniana no dia 15 de junho.

Mas ver os jogadores ucranianos ao vivo será complicado. Além das partidas oficiais, só haverá um treino aberto ao público, e o hotel onde a seleção vai pernoitar será altamente vigiado. "Tudo o que diz respeito à Ucrânia será de alta segurança. É de esperar que assim seja", comenta Mittag.

"As medidas de segurança, já de si muito elevadas, serão reforçadas para os jogos com a Ucrânia."
São jogos que Mykhailo Chaban não tenciona perder, a partir da Ucrânia. Além da seleção ucraniana, as partidas da equipa portuguesa deverão ser outro ponto alto do campeonato para o padre salesiano: "Antes de mais, por causa do Ronaldo. Muita gente gosta de o ver jogar", sorri.

O primeiro jogo da seleção ucraniana está agendado para 17 de junho. Será contra a Roménia, um país vizinho da Ucrânia e aliado na guerra contra a invasão russa.

Como é que Chaban vê o futuro no país? "É muito difícil dizer."

"Claro que, em primeiro lugar, o nosso sonho é que a guerra acabe e que a Ucrânia consiga recuperar todos os seus territórios". É preciso que o país "retorne a uma vida normal", com o regresso de todos os que tiveram de fugir por causa da guerra, conclui o sacerdote.


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