O "conto de fadas de verão" de 2006 não se repete. Como chega o futebol alemão ao Euro 2024?

A Alemanha chegou ao Mundial 2006 após uma revolução em toda a estrutura do seu futebol. Chega a 2024 com pedidos de outra renovação, depois da desilusão de 2022. Há novo campeão, pela primeira vez em 12 anos, e duas finais europeias na bagagem. Conheça as diferenças que separam estes 18 anos.

12 jun, 2024 - 07:00 • Inês Braga Sampaio



Adeptos da Alemanha antes do Euro 2024. Foto: Christopher Neundorf/EPA
Adeptos da Alemanha antes do Euro 2024. Foto: Christopher Neundorf/EPA

A criança que nasceu no Mundial 2006 cresceu com tecnologias e redes sociais, crises económicas, mudança de mentalidades e novos conflitos. Chega ao Euro 2024, maior de idade, num mundo muito distinto daquele a que chegou.

O "conto de fadas" daquele verão na Alemanha já não se repete. Nem o sol, nem a paz, nem o orgulho em ser alemão. Nem as bandeiras pretas, vermelhas e douradas em cada carro, numa celebração do futebol e da liberdade de atirar o passado para trás das costas e voltar a ser feliz. Tudo mudou, até o futebol.

"Em 2006, o futebol germânico era mais de força, contacto físico e jogo direto, como a grande maioria do futebol há 20 anos", analisa Fernando Meira, que representou Portugal na Alemanha.

"Hoje em dia, o futebol tem um registo diferente, mais apoiado, mais tocado. Jogadores muito mais robotizados, mais fortes fisicamente, mas, mesmo assim, com preocupação em jogar a bola no pé e em ter saída de jogo."

O antigo defesa e médio, agora com 46 anos, campeão alemão pelo Estugarda em 2006/07 (a época seguinte ao Mundial), assinala que, quando se jogava mais com bola direta na frente, o futebol era "um pouco mais emotivo".

"Quando a bola está lá e cá, é diferente. Quando o futebol é mais rendilhado, torna-se um pouco mais monótono. É diferente. O futebol da Bundesliga e mundial mudou: não só o protótipo de jogador em si, mas também a forma de jogar e a abordagem dos treinadores", detalha.

Em 2006, o jogador Pep Guardiola tinha acabado de se reformar, mas o treinador – aquele que, hoje em dia, tantos gostam de emular – ainda estava para nascer. Mais importante para a mudança de paradigma do futebol alemão foi a seleção portuguesa, que deu a machadada final num Euro 2000 desastroso para a "Mannschaft".


Fernando Meira foi campeão alemão pelo Estugarda em 2007. Foto: Reuters
Fernando Meira foi campeão alemão pelo Estugarda em 2007. Foto: Reuters

Cai, revoluciona: a história repete-se

Aquele "hat-trick" de Sérgio Conceição em 2000 ditou a eliminação da Alemanha na fase de grupos, em último, atrás de Portugal, Roménia e Inglaterra. Em 2002, a Federação alemã de futebol (DFB, na sigla alemã) instaurou um programa de promoção de talento.

Em 12 anos, foram construídos 52 centros de alto rendimento, além de 366 bases regionais de treino, com 1.300 treinadores direcionados para o ensino dos básicos do futebol moderno, assim como uma rede de "scouting" que permitia, nas palavras do diretor do programa, o antigo guarda-redes Jörg Daniel, que "se o talento do século nascesse numa aldeia minúscula por trás das montanhas, encontrá-lo-iam". Além disso, a DFB investiu na formação de treinadores em todos os escalões, com centros de excelência geridos pelos clubes profissionais.

Uma revolução profunda do sistema de formação que pressupôs um investimento anual avultado e que, desde então, mais do que duplicou. Também significou uma maior integração do talento imigrante.

As mudanças começaram a surtir efeito bem cedo e, em 2009, a geração alemã que se sagrou campeã europeia de sub-21 primava pelo talento e tinha vários jogadores de ascendência não alemã. Para enumerar alguns, Jérôme Boateng (Gana), Sami Khedira (Tunísia) e Mesut Özil (Turquia). Esses mesmos jogadores ajudaram a Alemanha a conquistar o Mundial em 2014, juntamente com nomes como Neuer, Hummels, Müller, Kroos, Götze, Draxler, entre muitos outros.

Já em 2006, as rédeas da seleção alemã foram entregues a um ainda inexperiente Jürgen Klinsmann, que levou a Alemanha às meias-finais do Mundial, com um plantel que já incluía Bastian Schweinsteiger, Miroslav Klose (que até aos 21 anos andara perdido nas divisões anteriores), Lukas Podolski e Philipp Lahm. Os perfis do jogador e do jogo alemães começavam a mudar.


Em dezembro de 2022, depois da eliminação na fase de grupos do Mundial, o então selecionador, Hans-Dieter Flick, avisou que o futebol alemão estava a precisar de voltar a olhar para dentro e focar-se nas próximas gerações de futebolistas.

"Precisamos dos básicos. Pelo futuro do futebol alemão, precisamos de fazer as coisas de forma diferente no treino. Temos bons jogadores para o futuro, mas para os próximos dez anos é muito importante que demos os passos certos agora", alertou.

O jornalista alemão Marco Hagemann, da televisão RTL, lamenta que tenha sido necessário passar por mais uma deceção para que a DFB voltasse a repensar os métodos: "Por vezes, tenho a sensação de que só pensam nas coisas depois de desilusões e que, depois de sucessos, eles adormecem um pouco", afirma, em entrevista à Renascença.

"Tens de pensar sempre no que estás a fazer, não apenas depois de desilusões ou sucessos. Pensa sempre."

Hagemann refere que, em 2000, a DFB "introduziu muitas academias de formação, mas apenas nos clubes profissionais", como Bayern, Dortmund, Colónia, Hamburgo.

"Isso foi bom, sem dúvida, porque eles pensaram no que teriam de mudar para voltarem ao topo, mas a diferença entre 2000 e agora é que, desta vez, temos de olhar não apenas para os clubes profissionais, e para como podemos ajudá-los a melhorar, mas também para os amadores, que são os que têm mais crianças a jogar. Há dois milhões de rapazes que jogam futebol na Alemanha. Não olhem apenas para o que estão a fazer as equipas profissionais", adverte.

No entender do jornalista, é importante "trabalhar com as crianças outra vez e não apenas com táticas, tem de se dar a bola às crianças e deixá-las jogar, incutir-lhes novamente a mentalidade do futebol de rua".

Marco Hagemann também destaca a importância do papel dos clubes: "Bayern, Bayer Leverkusen, Dortmund, Leipzig têm o seu próprio estilo, porque querem ter sucesso, mas para termos sucesso na seleção têm de trabalhar, comunicar e desenvolver em conjunto."


Havia mais campeões alemães nos anos 2000

Olhemos para o sucesso dos clubes alemães esta época. O Borussia de Dortmund disputou a final da Liga dos Campeões. O próprio Bayern chegou às meias-finais da Champions e o Leipzig aos "oitavos".

O grande destaque, todavia, vai para o Bayer Leverkusen, que acabou com a hegemonia de 11 anos do Bayern de Munique na Bundesliga e ainda chegou à final da Liga Europa. Em 2006/07, o campeão também não foi o Bayern. Aliás, na década de 2001/02 a 2010/11, houve cinco campeões alemães diferentes. Os bávaros ainda conquistaram metade dos dez campeonatos possíveis, mas o contraste em relação aos últimos dez anos na Alemanha, em que só a equipa de Xabi Alonso quebrou o jejum, é notório.

Timo Hildebrand, que representou a Alemanha no Mundial 2006 e chegou a jogar no Sporting (uma passagem fugaz, em 2010/11, com apenas três jogos disputados), assume que o monopólio do Bayern "é um problema". O antigo guarda-redes espera ver "campeonatos mais competitivos daqui para a frente e que no futuro haja novos campeões", agora que o Leverkusen quebrou o selo.

Fernando Meira era o capitão e colega de equipa de Hildebrand no Estugarda campeão em 2007. Em conversa com Bola Branca, sublinha que continua a considerar a Bundesliga "altamente competitiva", apesar da falta de diversidade de campeões.

"Na altura também o era e sempre o foi. Há sempre grandes clubes, há sempre mais do que um clube que pode lutar pelo título. O Bayern pode ter, normalmente, um ascendente em relação aos outros, mas tem sempre adversários. O Dortmund é o que mais trabalho tem dado nos últimos anos, mas Leverkusen, Wolfsburgo, Bremen, Estugarda foram campeões, o que dá a entender o equilíbrio do futebol alemão. Em qualquer equipa, quer da primeira, quer da segunda liga, tens jogadores internacionais, grandes jogadores, tens estádios cheios. A Bundesliga é um campeonato de referência a nível mundial", assinala.

Sucesso na Europa dá vitória da seleção?

A campanha das equipas alemãs na Europa, esta temporada, sustenta o argumento do antigo defesa internacional português. Mas será que o sucesso dos clubes anda de mãos dadas com o da seleção?

"Não vejo um padrão. Houve alturas em que andaram de mãos dadas e houve outras em que não. Mas é importante que a seleção trabalhe em conjunto com os clubes, porque são eles que têm os jogadores todos os dias", vinca Marco Hagemann, antes de acrescentar: "É o momento. É o desporto. Se calhar, este é o ano bom e no próximo não teremos nenhum clube nas finais europeias. É uma questão de momento. Tens de ter um pouco de sorte. É uma coisa boa, mas é normal."

Se ignorarmos 1954, em que ainda não havia Taça dos Campeões Europeus, os anos em que a Alemanha se sagrou campeã europeia ou mundial (1972, 74, 80, 90, 96, 2014) até parecem bater certo, mais época menos época, com campanhas bem-sucedidas dos seus clubes nas provas europeias (Champions e Taça UEFA/Liga Europa). Porém, não é possível estabelecer, com segurança, uma relação causal, dado que também pode ser atribuído ao poderio geral tanto da "Mannschaft", como dos clubes alemães, em especial o Bayern, no panorama do futebol europeu e mundial.

A época 2005/06 não foi feliz para as equipas alemãs, na Europa. O Schalke 04 foi afastado nas meias-finais da Taça UEFA, e o Werder Bremen e o Bayern não passaram dos "oitavos" da Liga dos Campeões. A Alemanha também não venceu o Mundial.


 Xabi Alonso levou o Bayer Leverkusen à conquista da Bundesliga. Foto: Reuters
Xabi Alonso levou o Bayer Leverkusen à conquista da Bundesliga. Foto: Reuters

Duas gerações semelhantes: jovens e com fome

Haja ou não relação efetiva, Timo Hildebrand considera ser "bom para o futebol alemão e para os jogadores que aparecem" que os clubes tenham bons resultados nas competições internacionais.

O antigo guarda-redes destaca que a Alemanha tem "vários grandes, jovens jogadores", como Jamal Musiala ou Florian Wirtz, que "tiveram uma boa temporada".

O jornalista Marco Hagemann também espera que a boa época dos clubes alemães ajude a motivar a seleção para o Euro 2024. Os particulares de março, contra França e Países Baixos, que resultaram em duas vitórias, já serviram para isso.

"No ano passado, a moral estava a nível subterrâneo. Depois dos jogos de março, sentia-se no estádio e no país que a seleção estava a jogar muito bem e que estávamos prontos para o Europeu."

Chamado a escolher a geração a que a de 2024 mais se assemelha, o jornalista escolhe, precisamente, a de 2006.

"Na geração de 2006, havia muitos jogadores jovens, que jogavam de forma enérgica, fresca e com fome. Claro que também tens de ter jogadores experientes, não ganhas um Europeu só com miúdos. Mas também havia muitos jovens. É a comparação que faço. Alguns jogadores experientes, mas vários jovens de qualidade", frisa.

Algumas decisões de Julian Nagelsmann, na convocatória para o Europeu, "foram surpreendentes", mas Hagemann entende que o selecionador está a ir ao encontro, precisamente, de "uma nova direção, com novos jogadores, jogadores frescos e com fome".

"A Alemanha tem um bom futuro à sua frente", concorda Timo Hildebrand.


Jamal Musiala é um dos rostos da nova geração de talentos alemães. Foto: Georgi Licovski/EPA
Jamal Musiala é um dos rostos da nova geração de talentos alemães. Foto: Georgi Licovski/EPA

2006, o "conto de fadas de verão"

Marco Hagemann sente "uma alegria" no ar, à medida que o Euro 2024 se aproxima.

Já em 2006, recorda Fernando Meira, "havia uma comunhão muito grande entre os adeptos e os jogadores da seleção alemã".

"Já é normal o povo e a cultura dos alemães serem muito respeitadores e valorizarem e respeitarem muito o jogador de futebol. A forma como te abordam na rua é completamente diferente de qualquer outro país, as pessoas são muito mais educadas, reservadas, cuidadosas, e ao mesmo tempo dão-te mais margem. Não há uma relação tão quente, mas por outro lado sentes-te mais valorizado e protegido. O que é certo é que havia de facto uma comunhão muito grande, até pelo facto de a Alemanha estar a jogar em casa, o que teve um efeito especial. Como estrangeiro, tive essa perceção", conta.

Foi um Mundial de bandeiras pretas, vermelhas e douradas a esvoaçar em varandas e nos carros. Foi um "conto de fadas de verão", conforme ainda lhe chamam na Alemanha.

"Lembro-me muito bem, porque foi uma das primeiras vezes em que os alemães sentiram que podiam ter orgulho no seu próprio país. Foi uma grande energia em todo o país, foi incrível desfrutar disto com o plantel", lembra Timo Hildebrand, que reconhece que o torneio de 2006 foi uma espécie de libertação da "história complicada da Alemanha".

"Nesse ano podias pôr a bandeira no teu carro e na varanda. Via-se várias bandeiras, e que as pessoas estavam orgulhosas do seu país e da seleção. Sentia-se uma grande antecipação antes de cada jogo e toda a gente estava feliz."

O jornalista alemão Frank Lussem, da revista "Kicker", que também viveu as competições de 1974 e 1988, na Alemanha, recorda que, em 2006, "eram tempos fáceis, sem 'hooligans', sem conflitos, sem lutas". Além disso, foi um "belo verão", sem chuva – ao contrário do que se afigura para o Europeu deste ano –, ainda que tingido por aquela saudade que aperta o coração ainda antes da perda.

"Perguntávamo-nos se seriam só aquelas quatro semanas ou se conseguiríamos guardar essa alegria. Não conseguimos. E nem sei se essa alegria vinha mesmo do coração, sabes?"

Por outro lado, o próprio Fernando Meira sentiu o "respeito e carinho" do povo alemão, num Mundial "extremamente gratificante", em que, apesar de ser português, jogava em casa: "Foi particularmente especial para mim."

"Tudo o que se passou fora de campo nos marcou, desde a receção dos portugueses logo à porta do aeroporto. Depois, dentro de campo, fizemos um excelente Mundial", assinala.

Portugal caiu nas meias-finais, tal como a Alemanha. No jogo de atribuição do terceiro lugar, ganharam os anfitriões, por 3-1, com um bis de Schweinsteiger e um autogolo de Petit. Nuno Gomes marcou o golo português.


Timo Hildebrand disputou o Mundial 2006 pela Alemanha e espera ver a mesma alegria no país em 2024. Foto: DR
Timo Hildebrand disputou o Mundial 2006 pela Alemanha e espera ver a mesma alegria no país em 2024. Foto: DR

O que mudou e o que continua igual

Pese embora a eliminação inglória frente à França, Fernando Meira guarda boas memórias do Mundial 2006 e espera que quem representar e apoiar Portugal no Euro 2024 também tenha uma boa experiência. A Alemanha é o país certo para isso, assegura.

"Tem organização, tem rigor, tem respeito e é uma referência do futebol mundial. A Alemanha, pelos títulos que tem de campeão europeu e mundial, merece essa distinção e esse respeito. É um país muito organizado, civilizado, seguro, com bons estádios, boa afluência do povo, muito bem localizado – a Alemanha está praticamente no centro da Europa. Tudo centralizado. Tudo pronto para que o Euro 2024 seja um sucesso, porque tem todas as condições e mais alguma para que tudo dê certo."

Hildebrand concorda: "Na Alemanha, temos uma boa vida. Temos tudo o que precisamos para uma boa vida."

Ainda assim, "em 18 anos muita coisa pode mudar e muita coisa aconteceu na Alemanha e no mundo", admite o antigo guarda-redes. Também o futebol mudou, realça Fernando Meira.

"Com o decorrer dos anos, o futebol tem mudado a sua forma de ver, de ser visto, de ser jogado, de ser pensado, e isso também é magnífico. É belo vermos essa evolução e que o futebol tem essa abrangência, tanta forma de ser visto, analisado e jogado. A paixão que temos agora é exatamente a mesma de há 20 anos. Continuamos a ter todos a mesma paixão e a mesma vontade de ir ao estádio, isso é o mais importante", diz.


O adepto também mudou? Marco Hagemann diz que não, que o que mudou foi o mundo em torno do adepto.

"Estamos numa nova década, estamos a viver numa nova vida, que teve muitas mudanças. Mas penso que se viu, ao longo da história, que houve bons e maus tempos, mas os estádios de futebol continuaram sempre completamente cheios. Tens a oportunidade, por um minuto, por um dia, por uma semana, de esquecer o que acontece na vida, quando há um torneio tão grande no teu país. Isso pode ser a grande mudança em relação a 2006", sublinha o jornalista da RTL.

"Em 2006, tivemos uma sequência de anos bons, sem dificuldades. Nos últimos dois anos, tivemos tempos duros. Talvez tenha havido uma pequena mudança no comportamento, mas um torneio tão grande pode alegrar os nossos olhos e dar-nos uma vida feliz outra vez, por um dia ou por uma semana."

Acima de tudo, Timo Hildebrand espera que este torneio seja uma festa, como foi o de há 18 anos: "Precisamos de mais união e mais amor."

"Espero que os alemães se divirtam, este verão, e que dêem as boas-vindas a todos os adeptos dos outros países que aí vêm", sublinha.

Num mundo cada vez mais complicado, o jornalista Frank Lussem teme que não seja possível voltar a viver um "conto de fadas de verão" como há 18 anos: "É muito difícil dizer como será, mas não será como 2006, isso para mim é claro. Esse Mundial foi uma grande festa do futebol, mas não penso que consigamos repetir."