"Nem sempre foi fácil ser-se alemão". O futebol como retrato das Alemanhas de 74, 88 e 2006

Como é que os três grandes torneios de futebol masculino que se realizaram na Alemanha representam a história do país no século XX? Que lições se tiram para 2024? A Renascença viaja de 1974 a 2006, para desenhar o retrato de um povo que começou dividido e acabou a cantar em uníssono.

12 jun, 2024 - 07:00 • Inês Braga Sampaio



Da esquerda para a direita: Gerd Muller, o herói da final do Mundial 1974; Franz Beckenbauer, o capitão; Helmut Schön, o selecionador; e um adjunto celebram conquista do Mundial 1974. Foto: Werner Baum/EPA
Da esquerda para a direita: Gerd Muller, o herói da final do Mundial 1974; Franz Beckenbauer, o capitão; Helmut Schön, o selecionador; e um adjunto celebram conquista do Mundial 1974. Foto: Werner Baum/EPA

Recue, na memória ou na imaginação, a 1974. Multidões nas ruas, uma coluna de tanques, cravos em espingardas, gritos de revolução. Faz-se Abril em Portugal, que por uns dias e semanas troca a bola pelas flores. Respire fundo, sinta o aroma e, por uma fração de segundo, feche os olhos. Reabra-os e viaje 73 dias em frente no tempo e quase 2.500 quilómetros para nordeste. Cai num caldeirão de emoções.

Os festejos de mais de 75 mil pessoas abafam as vozes das rádios e das televisões e estendem-se por Munique inteira. Milhares de bandeiras pretas, vermelhas e douradas dançam de um lado para o outro e dão cor às bancadas apinhadas de adeptos, inclinadas sobre uma pista de atletismo. A embriaguez da vitória ali tão perto, a coisa de 30 metros e 50 minutos de distância, aquece a tarde fria de julho. Gerd Müller acaba de ludibriar meia defesa neerlandesa e marcar, em casa, o 68.º e último golo pela seleção da Alemanha Ocidental. O golo mais importante da carreira, o golo que dá à "Mannschaft" o segundo Mundial da sua história.

É Franz Beckenbauer, inventor do líbero moderno e capitão da Alemanha Ocidental, quem recebe, após o apito final, o troféu de campeão do mundo e o levanta em frente da equipa e perante o país inteiro. O mesmo Beckenbauer a quem o Comité de Ética da FIFA abriria um processo disciplinar, em 2016, por suspeitas de pagamentos indevidos na atribuição do Mundial 2006 à Alemanha.

"É o Franz, o Kaiser Franz", assinala o jornalista alemão Marco Hagemann, da RTL, à Renascença. "Penso que muita gente diria, 'OK, ele pode fazer isso'", acrescenta.

Quatro pessoas foram suspensas, na altura, por suspeitas de compra de votos. Segundo a revista alemã "Der Spiegel", havia um fundo secreto de 6,7 milhões de euros para o efeito, sob o disfarce de dinheiro para remodelação de estádios para o Mundial. O caso prescreveu, contudo, sem quaisquer conclusões.

O jornalista Rui Miguel Tovar, comentador Bola Branca e autor de vários livros sobre História do futebol, recorda que a eleição do anfitrião "foi um bocado esquisita, porque durante largos meses falou-se que a candidatura favorita era a de Marrocos e acontece que, na última noite, houve ali um volte-face e no dia seguinte a Alemanha ganhou, com alguma surpresa".

No entanto, estas "são daquelas polémicas que se esquecem mal o torneio começa".


Franz Beckenbauer com a bola do Mundial 2006 em Berlim. Foto: Peer Grimm/EPA
Franz Beckenbauer com a bola do Mundial 2006 em Berlim. Foto: Peer Grimm/EPA

1974: retrato de um país dividido

Foi a primeira competição num país dividido.

Depois da II Guerra Mundial, os Aliados decidiram que a Alemanha tinha de ser ocupada, de forma a evitar novas transgressões, e dividiram-na por quatro zonas, uma para cada potência: Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética.

Porém, com o deteriorar das relações entre os soviéticos e os demais países, nos primórdios da Guerra Fria, os três Aliados ocidentais juntaram as suas porções, formando a República Federal da Alemanha (RFA), ou Alemanha Ocidental, e do outro lado ficou a República Democrática Alemã (RDA), ou Alemanha Oriental. Uma "cortina de ferro" caiu sobre a Europa, com expressão física no Muro de Berlim, erigido em 1961.

Foi a Alemanha Ocidental que ganhou a organização do Mundial de 1974. Foi neste contexto político que Zaire, Austrália, Haiti, Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Bulgária, Itália, Países Baixos, Polónia, Escócia, Suécia, Jugoslávia e a própria Alemanha Oriental aterraram, em junho de 1974. Portugal, ainda longe do estatuto que tem hoje – apesar do brilharete em 1966 –, não se qualificou.

"A RDA teve de fazer o seu caminho na fase de qualificação. Apurou-se com brilhantismo e nunca mais repetiu a dose em Mundiais. E calhou em sorte haver um RFA-RDA, que provocou enorme surpresa, porque quem ganhou foi a RDA, 1-0, e o selecionador da RFA passou por um momento muito duro depois dessa derrota", lembra Rui Miguel Tovar.

A divisão do país não era só geográfica, "não era só por culpa do muro".

"Havia todo um sentimento dividido e já se sabe que o sentimento, no futebol, tem muita força. Os adeptos da RFA não acharam piada nenhuma à vitória da RDA. Nos dias seguintes, contam os jogadores da RFA, houve muitas reuniões no hotel, para tentar sacudir a pressão do mau resultado. A verdade é que a RDA, depois, ficou no caminho e a RFA foi campeã mundial pela segunda vez, 20 anos depois de 1954", conta.


Apesar do sucesso em campo, havia uma disputa entre os jogadores e os dirigentes da federação. Os atletas queriam prémios mais altos, mais próximos dos valores que polacos (100 mil marcos alemães) e neerlandeses (125 mil) recebiam, e ameaçaram não jogar se a proposta não fosse duplicada, de 35 para 70 mil marcos. O selecionador da Alemanha Ocidental, Helmut Schön, é que terá convencido Franz Beckbenbauer e companhia a ficar e jogar.

A relação entre os jogadores e os próprios adeptos também não era a melhor. Além do episódio da derrota com a RDA, o jornalista alemão Frank Lussem, da revista “Kicker", recorda um jogo em Hamburgo em que os fãs gritaram "joguem" e Beckenbauer cuspiu na direção deles.

Dois anos antes, a Alemanha tinha conquistado o Euro 1972 a jogar "como a Espanha de hoje em dia, futebol técnico e elegante". Em 1974, no entanto, a "Mannschaft" jogou "da forma tipicamente alemã, futebol robô, como uma máquina".

"Desejávamos uma equipa como em 72, mas eles venceram de outra forma, à alemã. Ficámos um pouco tristes com isso."

Restos do Muro de Berlim. Foto: Filip Singer/EPA
Restos do Muro de Berlim. Foto: Filip Singer/EPA

Lussem nasceu em 1960, em Colónia, e lembra-se bem do Mundial 1974. Lembra-se, especialmente, por algo que acontecera dois anos antes: o massacre de Munique.

"O Mundial decorreu sob a sombra dos Jogos Olímpicos de 1972 e dos terroristas. Os terroristas palestinianos [a já extinta Organização Setembro Negro] que mataram membros da comitiva olímpica de Israel [11, ao todo, mais um polícia alemão que morreu no tiroteio]. Foi o início de uma década de violência e terrorismo, e havia o medo de que os terroristas fossem usar o Mundial de futebol para os seus objetivos, por isso todas as equipas estavam sob pesado controlo policial", conta.

A atmosfera estava pesada, para jogadores e adeptos, por motivos que nada tinham a ver com o futebol:

"Foi uma situação muito estranha para mim. Foi a minha primeira impressão, como um menino de 13, 14 anos, de que algo estava errado no mundo. Lá no fundo, todos sentíamos que algo podia acontecer, tínhamos esse medo de que algo pudesse acontecer."

Nada aconteceu e, no final, a Alemanha Ocidental sagrou-se campeã do mundo, pela segunda vez na sua história.

Nesse ano, o Estádio Olímpico de Berlim, mandado erigir por Adolf Hitler para os Jogos Olímpicos de 1936, fez parte do mapa do Mundial. Algo que não sucederia 14 anos depois, no Euro 1988. Curiosamente, essa decisão viria a gerar um dos mais fortes sinais de unificação que o futebol alemão poderia dar.

1988: o presidente que saltou o muro

A RFA ganhou a organização do Euro 88 com cinco votos, contra três da candidatura conjunta de Noruega, Suécia e Dinamarca, e zero da Inglaterra. "Foi limpinho", diz Rui Miguel Tovar.

As assistências, no Europeu, andaram à volta dos 50 mil adeptos por jogo; um contraste com a baixa adesão dos adeptos à Bundesliga, na altura: o Bayer Leverkusen venceu a Taça UEFA desse ano e teve uma assistência média de 9.000 espectadores.

O problema é que a União Soviética já não quis que Berlim fizesse parte do torneio, explica Frank Lussem, e a UEFA acatou a decisão, o que impediu a agora capital alemã de ser cidade-sede do Europeu. Munique, Hamburgo, Estugarda, Frankfurt, Colónia, Gelsenkirchen, Dusseldorf e Hannover foram as cidades escolhidas.

"Não havia Berlim, não havia Leipzig, como há hoje", enumera Tovar.


Foi aí que o futebol serviu como oráculo da vida real.

O então chanceler da Alemanha Ocidental, Helmut Kohl, insistiu que tinha de haver jogos em Berlim e o compromisso que se encontrou foi que a cidade dividida passaria a receber a final da Taça da Alemanha. O grande sinal de unificação, todavia, foi outro.

O presidente da Federação de futebol da Alemanha Federal, Hermann Neuberger, decidiu organizar um Europeu com quatro seleções na RDA, a título particular, só em Berlim. Juntou a RFA, a União Soviética, a Suécia e a Argentina. O torneio durou três dias, todos os jogos foram disputados no Estádio Olímpico, mas a adesão ficou bem abaixo das expectativas.

"O primeiro jogo, por exemplo, foi o Argentina-União Soviética. A Argentina levou o Maradona, que até marcou um golo, e um estádio com capacidade para 70 mil pessoas só levou 18 mil. A final juntou Suécia e União Soviética. Aqui, sim, 25 mil pessoas, mas mesmo assim nada de especial para uma final. Ganhou a Suécia, por 1-0", relata.

Uma vitória premonitória, dado que, dois meses depois, no Europeu a sério, a mesma URSS voltou a perder, por 2-0, na final, com os Países Baixos.

"Foi um grande jogo. Ninguém pensou que os Países Baixos ganhariam o torneio", admite o jornalista Frank Lussem.

O torneio que saltou o muro, contudo, fica na história pelo "sentido de unificação" de Neuberger: "É uma imagem muito interessante e bastante patriótica e que deixa antever o que se passou três anos depois, e ainda bem."

Não obstante, a perspetiva da reunificação da Alemanha andava bem longe da cabeça dos seus habitantes. Nesse verão, a grande preocupação eram os "hooligans".

"Houve problemas com 'hooligans' de Inglaterra, Países Baixos e até Alemanha. Houve um jogo em Dusseldorf, Inglaterra-Países Baixos, e os 'hooligans' devastaram grandes partes da cidade histórica. Eram centenas e centenas deles. Foi inacreditável", relata Lussem.

O que acontecia do outro lado da "cortina de ferro" não tinha tanto eco: "Não tínhamos visão para o Este. A nossa visão para o Este eram parentes que viviam lá, a quem mandávamos prendas no Natal e na Páscoa. Havia este pequeno país, a RDA, e a única coisa que sabíamos era que nós éramos melhores no futebol e eles eram melhores nos Jogos Olímpicos."


2006: Orgulho em ser alemão

Timo Hildebrand, que integrou a convocatória da Alemanha no Mundial 2006 e foi, por uma época, guarda-redes do Sporting, lembra-se "muito bem" do torneio: "Foi uma das primeiras vezes em que os alemães sentiram que podiam ter orgulho no seu próprio país."

"A Alemanha tem uma história complicada com o passado, com Hitler e os nazis e tudo isso, e nesse ano, 2006, podias pôr a bandeira no teu carro e na varanda. Via-se várias bandeiras, e que as pessoas estavam orgulhosas do seu país e da seleção. Sentia-se uma grande antecipação antes de cada jogo e toda a gente estava feliz", relata quem viveu o Campeonato do Mundo na primeira pessoa, em entrevista à Renascença.

Frank Lussem, que tem frescas as memórias das duas grandes competições anteriores a 2006, e que nasceu apenas 15 anos depois do fim da I Guerra Mundial, explica o sentimento: "Não era fácil ser-se alemão, em tempos passados."

"Começámos duas guerras mundiais. Matámos seis milhões de judeus. Começámos uma guerra com a URSS e eles perderam 25 milhões de habitantes para a brutalidade alemã. Por isso, para mim, nem sempre foi fácil ser alemão. Ainda hoje, sinto necessidade de pedir desculpa ao mundo", confessa.

Daí que a paixão demonstrada pelos adeptos, no Mundial 2006, 15 anos depois da queda do Muro de Berlim, tenha sido tão marcante, num país em que, inicialmente, nem o hino nacional se cantava. "Começámos em 1984, quando Franz Beckenbauer disse que tínhamos de cantar."


Em 2006, em vez de arrombar as portas dos outros, a Alemanha abriu portas ao mundo.

"Estávamos felizes por dizer às pessoas: 'Venham ter connosco, vamos mostrar-vos a Alemanha. Vamos juntos para a Fan Zone e vamos beber, comer, conversar juntos.' Havia mais bandeiras pretas, vermelhas e douradas do que carros. Eram tempos fáceis. Sem 'hooligans', sem conflitos, sem lutas. Nada. Só pessoas de bom-humor", conta.

Marco Hagemann guarda a memória de um Mundial solarengo, numa Alemanha perpetuamente à chuva. Frank Lussem também se lembra de um verão "muito chuvoso, sem sol", em 1974, e de um "belo verão" em 2006.

"A imagem que tenho de 1974, de vídeos, são aqueles rolos compressores enormes a passar para desaguar o relvado. É uma imagem que me fica de chuva. No Euro 88, também me lembro de no União Soviética-Itália, das meia-finais, ter chovido um bocadinho", recorda Rui Miguel Tovar.

Esse Mundial de 2006 marcou a despedida de várias estrelas do futebol, como Luís Figo e Oliver Kahn. O português e o alemão disseram adeus no mesmo jogo, de discussão do terceiro lugar, e abraçaram-se no final.

"Neste jogo de terceiro e quarto lugar, há um momento muito engraçado, contado por alguns jogadores da seleção portuguesa, de que, quando chegaram ao balneário, antes do jogo, para se equiparem, havia galhardetes da Alemanha a dizer 'terceiro classificado'. Já havia essa indicação, não sei se era provocação, se seria outra coisa", revela Tovar.

O jornalista português também dá conta da implicação do árbitro com Petit, que estaria a fazer um jogo "demasiado renhido": "O árbitro assinalou ao Scolari ao intervalo que ou o tirava ou o expulsava. A verdade é que o Petit estava a incomodar o Klose."

"É engraçado quando se passam os anos e ficamos a saber as glórias e os podres das competições", conclui.


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