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Sporting

Ruben Amorim e o guião de uma trégua

12 nov, 2024 - 07:35 • Hugo Tavares da Silva

Quatro anos e meio depois, Ruben Amorim já não é treinador do Sporting. Este texto reflete sobre o surgimento e o desaparecimento de uma figura singular que embelezou o futebol português.

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Por estes dias, lembro-me de Martín Santomé. O uruguaio, viúvo e a poucos meses da reforma, vai escrevendo um terno e belo diário. O desânimo e a solidão estão salpicados por todo o lado, o humor idem. Até que se apaixona por uma jovem, Laura Avellaneda. Mas ela acaba por ter um desenlace trágico, e a agonia morde o coração estraçalhado de Santomé. É esta a trama do livro “A Trégua”, de Mario Benedetti.

“É evidente que Deus me concedeu um destino obscuro”, reflete o pobre, a certa altura, no seu diário. “Nem sequer cruel. Simplesmente obscuro. É evidente que me concedeu uma trégua. A princípio, resisti a acreditar que isso pudesse ser a felicidade. Resisti com todas as minhas forças, depois dei-me por vencido e acreditei. Porém, não era a felicidade, era apenas uma trégua. Agora estou outra vez metido no meu destino. E é mais obscuro do que antes, muito mais.”

Agora que está consumado o adeus de Ruben Amorim – aterrou em Manchester na segunda-feira e já andou a conhecer staff e as instalações em Carrington – é esta a associação de ideias que palpita no pensamento. É que o futebol português (e nem falemos dos sportinguistas) acaba de perder alguém que o tornou melhor, ou pelo menos respirável, com menos espinhos, e entusiasmante para quem gosta de desporto e dos valores do desporto. E divertido.

Não, não estamos perante uma Malala do futebol lusitano, também ele sucumbiu fugazmente, aqui e ali, ao fel e aos sururus que escorrem de certos jogos e confrontos, que até originaram slogans como “onde vai um, vão todos". Foram quatro anos e meio e 231 jogos. Não é assim tão pouco, mas parece que passou como um suspiro do suspiro do vento.

Não é exagero dizer-se que este homem mudou o fado de um clube muito grande. E tudo começou como uma espécie de devaneio de um presidente, que decidiu apostar num jovem treinador com apenas dois meses no futebol de elite (a estreia no Sp. Braga foi um 7-1, o que deveria ter acionado os alarmes…). Parecia a última bala de Varandas. Dez milhões.

Amorim riu-se na apresentação como novo arquiteto sentimental do Sporting, disse que quando assinou o contrato com os minhotos podiam muito bem ter inscrito lá 20 ou 30 milhões na cláusula de rescisão, era indiferente pois ninguém cometeria tal ousadia. Enganou-se. Os enganos, aliás, são exatamente o que humanizam definitivamente o treinador que soma tantos acertos e tanto vento a favor (outro exemplo: o voo para Londres para negociar com o West Ham ou, sabe-se lá, pressionar os cartolas do Liverpool).

Lá chegou a Alvalade e perguntou “e se corre bem?”, ainda sem o cabelo de galã e a barba menos afinada. Também no museu fez um arrojado pedido. Requisitou que se arranjasse espaço na memória e glória coletivas vindouras como quem limpa o pó do orgulho.

Ninguém sabia o que estava por aí a vir: dois títulos nacionais e um terceiro bem encaminhado (11 vitórias em 11 jornadas igualaram o recorde do Sporting de Marinho Peres, em 1990/91). É o mais importante treinador do clube em muitas, muitas décadas, um senhor que angaria simpatias até nos adversários.

As corridas e a lengalenga em que não entrou

Na discrição da academia, não era raro vê-lo a correr muitos quilómetros de um lado para o outro. Havia até alturas em que ocupava um campo sintético e desatava a fazer piscinas. Ou sprints. No kickboxing, onde aquecimentos podem arruinar a alma de qualquer um, descarregava tudo o que tinha de descarregar, insuflando os braços e a caixa. Metia as luvas num espaço no centro de Lisboa. Nas conversas entre futeboleiros, em Alcochete, entregava-se ao lado mais ‘geek’ do futebol, com explicações e reflexões sobre saídas de bola, superioridades numéricas, soluções, etc.

O lisboeta, uma meticulosa e apaixonada personagem de 39 anos, chegou a dizer também em conversas privadas que não ia naquela lengalenga de ser o primeiro a chegar e o último a sair, como tantos apreciam que se diga. “Ele gosta muito de futebol, mas, quando saía da academia, não queria estar a pensar mais naquilo, queria passar tempo com família e amigos. Queria ter um equilíbrio saudável entre as várias partes da vida”, revelou uma fonte que prefere não ser identificada.

Houve uma altura em que também ia lançar umas bolas ao cesto. Talvez o ajudasse a pensar. Foram muitas decisões ao longo destas semanas em que registou 164 vitórias, 34 empates e 33 derrotas, com 510 golos marcados e 199 golos sofridos, período em que levantou cinco troféus.

Mas há um outro lado. Longe do espaço mediático e até do convívio com as equipas secundárias na academia, também trancava a cara e fazia-se ouvir. A Renascença sabe que houve várias discussões com Frederico Varandas, terá até havido um pedido de demissão, assume uma das fontes ouvidas por esta rádio. O maior aliado foi Hugo Viana, o próximo diretor desportivo do Manchester City, o vizinho barulhento do United, o novo clube de Amorim a partir de 11 de novembro.

Ninguém chega a este nível sem dar uns murros na mesa e bater umas portas. Que seja afável, dê uso à honestidade e exiba um sorriso charmoso não faz dele alguém mole. Luís Freitas Lobo chamou-lhe “o smiling one”. E, convém não esquecer, jogou futebol a vida inteira. Os jogadores não são tontos.

É um erro achar que ele ainda é o “mans” do “mans” David Luiz, o rapaz da galhofa no balneário do Benfica e que fazia entrevistas no avião para a televisão benfiquista. Estamos perante alguém que sabe para onde vai e que prometeu não deixar de ser quem é, mesmo que os demónios que ocupam o Old Trafford cancelem o deslumbrante e quase inverosímil início de carreira.

Na apresentação de João Pereira como novo treinador da equipa principal, o sucessor revelou um conselho precioso de Amorim: “Sempre que queiras inserir um comportamento ou uma nova dinâmica e não consigas explicar isso numa frase simples, é porque não estás preparado [para o fazer]”. Já dizia um genial gestor de grupos, o treinador de voleibol Julio Velasco: “Informação não é conhecimento. Podes saber muito, mas só interessa o que consegues passar aos jogadores”.

Quando Ruben tremeu

Esta história com vários tons de verde, uma espécie de conto de fadas, começou a definhar quando Erik ten Hag foi despedido, no dia 28 de outubro, pelo Manchester United. Nessa mesma segunda-feira, Omar Berrada, o CEO do clube (recrutado ao City), e o diretor desportivo Dan Ashworth, o dirigente que deixou Gyökeres sair do Brighton para o Coventry por um milhão de libras, voaram para Lisboa. O Sporting confirmou, um dia depois, que os red devils haviam batido a cláusula de rescisão do treinador.

E assim se convocou um ambiente esquisito para aquele Sporting-Nacional, para a Taça da Liga, na terça-feira, 29. Ruben Amorim, até aqui sempre tão seguro de si e com as palavras do seu lado, atrapalhou-se. Tentou escapar ao inevitável. Não quis admitir que queria ir para Inglaterra. Esboçou sorrisos desajeitados, nervosos. Roçou até a má educação com um jornalista. Não era para menos: sabia que queria ir e não sabia como dizê-lo, numa fase em que nem sequer estava o negócio fechado. Afinal, tinha prometido no Marquês, com um desmaio do microfone, que ia lutar pelo bi que não acontece há 70 anos.

Temeu-se a debacle. Inventaram-se rebeliões. Os clubes acordaram que Amorim voaria para o famoso ‘Teatro dos Sonhos’ esquecido da parte dos sonhos apenas a 11 de novembro, altura da paragem para as seleções. O clube inglês que não sabe quem é desde que Alex Ferguson saiu no verão de 2013 aceitou as condições dos leões, permitindo assim a Amorim sair a bem, com mais dignidade.

Isso deu tempo ao lendário Ruud van Nistelrooy, como interino, para limpar a casa e somar três vitórias e um empate em quatro jogos. Em Inglaterra perguntavam-lhe todos os dias se Ruben contava com ele. O mistério não teve vida longa: na segunda-feira soube-se que Amorim preferiu afastar Ruud. Havia quem temesse que o neerlandês demonstrava demasiada vontade de ser número um, enquanto outros consideravam um erro afastar alguém que fez 150 golos em cinco anos enfiado naquela camisola mítica e que é adorado pelos adeptos. Rio Ferdinand, outra lenda, defendia a continuidade do antigo avançado.

Os últimos capítulos de Ruben Amorim no Sporting parecem retirados de um bom filme, irrealista até, quem sabe. Bom, a sua vida de treinador é um bocado assim. No Casa Pia, em 2018/19, enfrentou a fúria da burocracia por não ter curso de treinador. Nota: este que vos escreve convidou Amorim para jogar na MediaCup, um torneio de jornalistas com ex-jogadores de futebol, em 2017 e ele simpaticamente recusou porque andava para trás e para a frente por causa do curso de treinador, por isso aí a caminhada já estava traçada.

Também sobre a formação dos treinadores este antigo futebolista tem uma opinião: “Dei por mim a pensar que temos a estrutura dos cursos de treinador invertida”, refletiu num capítulo escrito por ele no livro de Hugo Leal “Não é só futebol[,] estúpido". E continuou: "O nível máximo é atribuído para treinar uma equipa principal, mas deveria ser ao contrário. Os treinadores da formação têm de gerir detalhes muito mais delicados e decisivos na definição do ser humano que está à sua frente.”

O ex-futebolista decidiu então demitir-se do comando dos gansos, onde se entregou ao 3-4-3 e à linha defensiva desenhada com uma régua de ferro, para não prejudicar o clube de Pina Manique e testemunhou a metade do balneário a chorar.

Depois de ter rejeitado treinar as equipas secundárias de Estoril Praia e Benfica, aceitou o desafio de António Salvador e tornou-se treinador da equipa B do Braga, talvez por lhe ter sido garantido mais poder, talvez porque sabia que chegaria lá acima mais rápido. Os responsáveis dos clubes que o convidaram sabiam algo que o público em geral desconhecia, obviamente.

Rapidamente substituiu Ricardo Sá Pinto na equipa principal e ganhou 10 dos 13 jogos que disputou, dois deles ao FC Porto (um no Dragão e outro na final da Taça da Liga), outro ao Sporting e um na Luz. Nessa altura contava com Esgaio, Palhinha, Paulinho e Trincão, futebolistas que seriam figuras no 'mundo amoriano' ou protagonistas de teimosias que enfurecem os adeptos e que marcam a carreira dos treinadores.

O primeiro 11 de Amorim pelo Sporting, contra o Aves, a 8 de março de 2020, contou com Maximiano, Ilori, Coates, Mathieu, Ristovski, Battaglia, Wendel, Acuña, Plata, Sporar e Vietto. A transformação, mais uma, é assombrosa, recorrendo a futebolistas de clubes como Santa Clara, Rio Ave e Famalicão.

O seu 3-4-3 era, no início, bastante simples e rudimentar, investindo na segurança defensiva, lançando depois ataques venenosos pelos corredores ou costas das defesas. No desespero colocava Sebastián Coates a ponta de lança, uma estratégia ligeiramente digna da distrital, se nos permitem a maldade (e a injustiça claro, quem somos nós?).

Ao longo dos anos é notória a evolução da equipa, dos jogadores e do modelo de jogo. É muito mais completo e imprevisível, apesar de todos sabermos como o Sporting joga. Ninguém parecia saber contrariar aquele futebol. Amorim assume-se há muito um ladrão de ideias e não chocaria ninguém que tivesse estudado a fundo treinadores como de Zerbi e Gasperini.

Na ressaca da vitória épica em Braga, no seu último jogo pelo Sporting, explicou que a função e a posição dos centrais mudaram bastante. Assim como os médios, pois um deles já era mais 10. Mudou também a questão do 9 que baixava para tocar (Paulinho), para serem aproveitados os movimentos dos homens das linhas, para agora haver mais incerteza e todos poderem dar-se ao jogo ou aparecer no espaço. Francisco Trincão assumiu um nível físico e técnico tremendo e Pedro Gonçalves – com 81 golos e 49 assistências em 190 jogos, segundo o "Zerozero" – assume-se como o grande futebolista do percurso de Amorim em Alvalade.

Viktor Gyökeres foi o reforço que permitiu ao modelo ganhar uma totalidade mais robusta. Se a equipa saía tão bem a jogar desde o guarda-redes e os rivais subiam para pressionar, faltava a peça que permitia jogar na profundidade com uma sagacidade desmedida. Com medo de Gyökeres, havia quem esperasse atrás. Quem avançava e tentava condicionar Gonçalo Inácio e companhia, sofria com as correrias do sueco. A incerteza castigava os adversários. Os golos de Viktor idem.

O sorriso de Ruben depois do 0-5 contra o Manchester City, em casa, há não muitos anos, foi quase como uma premonição. Os adeptos cantarolavam “É dia de jogo…” com um orgulho admirável, sabiam que o rumo estava certo. Aquilo não foi absorvido como uma humilhação, como seria de esperar. Os rapazes não caíram, não se questionaram demasiado e prosseguiram. Ainda neste último Braga-Sporting, um hesitante Trincão questionava Amorim, que lhe disse: “Confia”. A confiança no mister era cega e, quando Conrad Harder virou o jogo, Amorim acabaria por ser engolido pelos jogadores, que costumam lutar mais quando se sentem ajudados e respeitados pelo líder.

Quis o cinematográfico trajeto de Ruben Amorim que o último jogo em Alvalade fosse contra o Manchester City de Pep Guardiola. Deu-se o 4-1 e uma festa bonita, desinsuflando alguns ressentimentos e palavras azedas como “lampião traidor” ou “já não é a tua casa”, que evidentemente não representavam o povo leonino.

Tem piada, pois Ruben Amorim deve ser o único cidadão do mundo que pode andar por ali, nos túneis que desaguam no coração do leão, a dizer tantas vezes que é do Benfica e a ser tão respeitado e adorado. Ou como quando puxava as orelhas a alguns jogadores em público, como a Eduardo Quaresma ou Geovany Quenda, como se pudesse tudo, como se ficasse sempre bem na fotografia pelo tom. É esse tipo de possibilidade e normalidade que o transformaram num elemento transformador do nosso futebol. Ou numa trégua, vá.

“A esperança vai matar-nos”

Segue-se o Manchester United. O arranque da temporada foi tão mau que os pontos conquistados pela turma de ten Hag concorriam com a desgraça de 1986/87, precisamente quando um tal de Alex Ferguson foi contratado ao Aberdeen para mudar o vento. É por isso que até gente como Jonathan Wilson, respeitado jornalista do “The Guardian” e autor de “Pirâmide Invertida”, escreveu que o português tem uma aura de Ferguson. Até as cambalhotas tardias no marcador fazem tilintar o termo “fergie time”.

Já não existem Schmeichel, Neville, Keane, Giggs, Beckham ou Rooney, o que significa mais peso para o jovem treinador no balneário, embora essas feras dessem algum jeito dentro de campo. O que Amorim terá de ter é a força implacável de uma administração com ele, caso se oiçam alguns gemidos ou questionamentos. O trabalho no Sporting foi sendo refinado paulatinamente, um dia de cada vez, com melhores futebolistas e ideias pelo caminho. A mentalidade mudou, a exigência acompanhou. Foi esse o plano (que não foi interrompido depois de um quarto lugar na Liga) e, adivinha-se, será esse o plano.

Por Inglaterra questionam imensamente o 3-4-3 de Ruben Amorim e a sua suposta teimosia em usar sempre o mesmo sistema. Fazem-se contas aos defesas, a quem jogaria pela linha, ao papel de Bruno Fernandes, renascido agora com Nistelrooy, e especula-se sobre reforços e posições a revolucionar. Do outro lado, o da verdade mais verdadeira, estão as pessoas: “A esperança vai matar-nos”, confessam muitos adeptos, completamente enamorados, nas caixas de comentários das muitas dezenas de artigos de jornais que tentam explicar o fenómeno Amorim.

O português é o sexto treinador nomeado (sem contar com interinos) desde a saída de Alex Ferguson, o homem que transformou o United no maior clube inglês. É certo que o Manchester United vive em constante turbulência e é conhecido até como o cemitério de treinadores, mas agora, qual amor de verão, começa a era Amorim, que mais dia menos dia deverá ceder à camisola de gola alta e ao sobretudo.

E se corre bem? Vamos ver.

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