07 jan, 2025 - 12:50 • Hugo Tavares da Silva
Certa vez, um qualquer futebolista foi convocado para fazer um treino à experiência no FC Porto, mesmo nos Estádio das Antas. Ainda se usava isso. Estávamos nos anos 80. Antes do treino, Pedroto pediu ao rapaz para bater na baliza. Talvez por nervos ou derivados da pouca qualidade, o jogador deu meio na bola, meio na relva. Pedroto pediu-lhe para rematar outra vez. O desfecho não foi belo, e foi mandado embora. Nem treinou.
“Chegou ao pé de nós e disse: ‘Mais um bocadinho e não tínhamos relva para treinar’”, conta a Bola Branca Augusto Inácio, um futebolista desse grupo, gargalhando. Apesar da disciplina férrea e das conversas sobre a vida, José Maria Pedroto tinha sentido de humor. Inácio ficaria a tarde toda nisto.
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Noutra vez, depois de mais uma sessão de treino, ele estava a abandonar as instalações do clube e levava vestidas umas calças vermelhas. Pedroto, enquanto fumava com o porteiro, o senhor Plácido, perguntou: “Mas tu pensas que estás onde? O vermelho não entra aqui dentro. Nunca mais venhas com essas calças. Ficas avisado”. E Inácio lá foi para o carro. Era um BMW verde-azeitona. Pedroto mandou parar a máquina. “E, já agora, aproveita e pinta o carro de outra cor.” Inácio ri. “‘Se não podes mudar a cor do carro, esconde-o para eu não ver’. O homem era único mesmo.”
Esta terça-feira, dia 7 de janeiro, assinala-se o 40.º aniversário da morte deste revolucionário do nosso futebol. Pedroto morreu com 56 anos, em 1985. A Renascença foi ouvir quatro homens que respiraram o mesmo ar de Pedroto, o “Zé do boné”.
Fernando Tomé foi outro dos felizes contemplados. Cruzaram-se no Vitória de Setúbal e também na seleção, numa altura em que havia o selecionador e o treinador, que normalmente era emprestado por um clube. “Foi um treinador que deixou a sua marca, não tenha dúvida, principalmente a mim, fiz a melhor época de sempre em 1969/70, fez-me transferir para o Sporting”, diz, agradecido.
Este antigo futebolista recorda bem a primeira intervenção do treinador que ali chegava do FC Porto. “Se pensam que a minha concepção de futebol é aquela que vocês praticam, estão enganados”, atirou. Talvez os queixos tenham caído, as pernas terão sofrido uma ligeira tremedeira. Pedroto, um cidadão natural de Almacave, em Lamego, tirou-lhes o chapéu, admitiu que os sadinos jogavam bem, mas faltava intensidade, pedalada, choque, meter o pé. “Vou falar em português: até ao pescoço é canela”, ordenou.
Tomé ri-se com a generosidade própria de um homem sereno e com os valores no sítio. “O senhor Pedroto deu-nos o que nos faltava, querer, garra e determinação”, garante.
Tanto ele como Inácio mencionam o silêncio ruidoso que se fazia quando o mestre falava. Porém, havia algo que impressionava Fernando Tomé. “Em três palavras dizia quatro palavrões”, recorda, entre risos. “Não estávamos acostumados. Ele tinha coisas muito boas, sérias e honestas. Não foi por qualquer motivo que foi longe.”
Como jogador, Pedroto fez os últimos oito anos da carreira no FC Porto, que pagou ao Belenenses – clube que dividia a semana com o emprego no Ministério da Marinha –, em 1952, 335 contos ao clube. O futebolista recebeu então 150 contos. Na juventude, em 1944, José Maria e um grupo de amigos fundaram o Futebol Clube de Pedras Rubras.
O professor José Neto foi uma das pessoas que mais tempo, no futebol, passaram com José Maria Pedroto, e enaltece a imposição de uma “identidade coletiva demolidora”, de um “sentimento de orgulho extraordinário” e de um “espírito de lealdade inegociável”.
A relação foi inaugurada numa palestra do técnico numa universidade. Neto fez-lhe uma pergunta. Pedroto gostou e chamou-o para o gabinete no Vitória de Guimarães, onde treinou entre 1980 e 1982, antes do derradeiro regresso às Antas.
“Sentámo-nos e ele fez-me três perguntas de rajada. ‘Como funcionam as mitocôndrias?’, e eu ‘eh, lá, que questão é esta, energia química, energia mecânica…’”, conta a Bola Branca. “Fez logo outra: ‘E se eu der dois treinos diários?’ E outra de rajada: ‘Se na pré-época fizer três treinos diários…’. Vi logo que havia algo estranho e disse: ‘Ó senhor Pedroto, eu não vim dar respostas, quem sou eu? Eu vim perguntar. Aqui o senhor é que sabe’. Ele acendeu um cigarro e pediu dois cafés.” A "humildade" valeu-lhe o verbo ficar e, mais tarde, a mudança para o Porto.
O encantamento que revela este professor, pioneiro na estatística e tratamento de dados no futebol e tantas outras coisas, é extraordinário, chega a emocionar. “Duas palavras com ele já se tornavam grandes”, desabafa este académico que se levanta quando fala nos seus mestres, como Pedroto e o professor Manuel Sérgio.
Aquele primeiro encontro correu bem e uma vez lá foram juntos para Guimarães, no jaguar cinzento metalizado de Pedroto. Tocava música clássica. O cigarro ia aceso, claro. O homem do volante conduzia devagar, com prudência. “Foi uma viagem de sonho.”
A parte mais bizarra desta conversa com a Renascença acontece quando o professor José Neto começa a relatar os números daqueles tempos, a porta de entrada para o paraíso, pois demonstrou ao treinador que o jogo se podia explicar através dos números, de tendências e padrões. E assim lá subiu as escadas da Antas e conheceu os seus "heróis".
“Na primeira bota de ouro do Fernando Gomes foi com 4,7 remates para fazer golo, em três zonas da área: A12, A4 e A6, o triângulo do sucesso”, os olhos deste lado da linha abrem-se. “Na segunda, foram 3,7 remates para golo nas mesmas três zonas da área, portanto houve uma qualificação para o êxito, para meter a bola naquele espaço. Era tudo justificado na lei da prática para a teoria e da filosofia de uma teoria para uma melhor prática”, celebra.
Se Inácio e Tomé mencionaram o silêncio que se fazia para escutar o revolucionário senhor da boina, José Neto fala no silêncio como ferramenta. “Havia palestras demoradas e outras quase em silêncio”, relata. “E grande arte de falar do senhor Pedroto!, o silêncio como grande arte de comunicar. Entre as palavras, ele fixava os olhos e dava um ligeiro sorriso. Isso queria dizer tanto pá, essa comunicação não verbal.”
O professor Fernando Duarte também trabalhou lado a lado com Pedroto, ou senhor Pedroto como todos dizem. Este académico até diz que o único que se aproximou do treinador do FC Porto foi Alex Ferguson. Se fizeram épocas “espetaculares” nas Antas, há três momentos que definem o treinador, segundo Fernando Duarte.
Primeiro, a transformação de Vermelhinho. Duarte passou pelas distritais e campeonatos nacionais secundários, onde se cruzou com o futebolista na 3ª Divisão. Nunca viu nada e, mais tarde, encontrou-o no FC Porto. “Conseguiu fazer dele um ala de nível europeu, até cheguei a dizer-lhe: ‘Quantos jogadores não se andam a perder que consigo iam ser uns craques do carago, meu Deus…’.”
Também a transformação de João Pinto, de centrocampista “vulgar” num grandíssimo lateral em 1984, o impressionou. “Só um mestre!” Depois de Sporting levar Jaime Pacheco e António Sousa, Fernando Duarte conta que Pedroto, para fins de facada no leão, aconselhou Pinto da Costa a recrutar em Lisboa os futebolistas Litos e Paulo Futre. Só o segundo foi para o Porto.
“Uma vez fui entrevistado para um desportivo e disse que estava felicíssimo por trabalhar com o Pedroto”, conta. “‘É melhor do que fazer qualquer curso no estrangeiro’. Ele leu e veio perguntar-me se eu disse aquilo com sinceridade. ‘Claro, não sou puxa-saco’, disse-lhe, ‘estou perfeitamente consciente de que estou a trabalhar com um dos melhores do mundo’.”
Pedroto ganhou dois campeonatos nacionais, mais cinco Taças de Portugal e uma Supertaça Cândido de Oliveira. Já doente, viveu de longe a chegada do FC Porto à primeira final europeia, contra a Juventus dos campeões do mundo, Platini e Boniek. É curioso, os intervenientes ouvidos pela Renascença focam-se muito mais na figura, nos ensinamentos, na aura, como se diz agora. Quase surpreende não haver uma igreja ‘Pedrotiana’ como existe para Maradona.
“O senhor Pedroto tinha esse magnetismo inebriante, não é?”, salienta o professor José Neto. “Esse carisma, essa personalidade carismática. Depois, as dificuldades inerentes ao processo, essa luta norte-sul. Quando não existiam, tinham de aparecer para sabermos que não era fácil. Quando a gente sabe que não é fácil, luta mais, vai mais longe, vai mais forte.”
Neto podia estar sete dias seguidos a falar neste “estratega extraordinário”, um treinador que era “disciplinado, conselheiro, excelente gestor, que transpirava rigor e confrontava o erudito”. No fundo, “era um homem de muitas perguntas. Ele sabia que não sabia, como dizia o professor Manuel Sérgio”.
Nos estágios antes dos jogos, muitas vezes, ficava-se até às três e quatro da manhã a bater bolas. A fazer perguntas, lá está. “Quem passa por isto vai para o céu direitinho, nem precisa de se confessar”, sentencia Neto, sobre um homem que “tinha um caminhar de pessoa de bem, um estar de um sábio e um pensar de mensageiro”.