09 ago, 2024 - 11:10 • João Carlos Malta
Tinha pouco mais de dez anos, mas o futebol já era quase tudo. Os treinos no velhinho Estádio de Santa Cruz, em Coimbra, acabavam já bem tarde. No regresso a casa, a rádio do carro debitava os resultados da Liga dos Campeões um a um. Mas para Vítor Bruno nem o já saber o que ia acontecer lhe retirava a vontade de ver os jogos. Antes, já tinha pedido à mãe para pôr a gravar as partidas para ao chegar a casa ver tudo ao pormenor.
“O Vítor é o único amigo que eu tenho que chegava a casa já sabendo resultados dos jogos de futebol e ia revê-los na íntegra mesmo já sabendo o resultado final, pelo puro prazer, pela obsessão de ver um bom jogo de futebol”, recorda o amigo André Lage, que partilhou com o agora treinador do FC do Porto vários anos de balneário nas camadas de formação da Académica de Coimbra.
Outro elemento dessa equipa da Briosa, Mauro Paula, em retrospetiva não tem dúvidas. “Se olharmos para trás, e vermos onde ele chegou, desde pequeno que ele está a ser preparado para isto. Nasceu num lugar onde se vivia futebol durante todo o dia. O pai, o Vítor Manuel, era treinador. Passou muita gente ligada ao futebol por aquela casa”, recorda.
Há uma semana e passados quase 30 anos, aquele miúdo que fazia do futebol estilo de vida, ganhou o primeiro título como treinador principal, numa reviravolta épica contra o Sporting que deu ao FC Porto a Supertaça deste ano. Este fim de semana vai estrear-se como técnico principal dos azuis e brancos na Liga, no Estádio do Dragão, frente ao Gil Vicente.
Mas, antes de ser treinador, Vítor Bruno quis ser jogador de futebol e pertencer à elite. Começou como defesa-direito, passou à ala do mesmo lado do campo e mais tarde jogou no meio-campo.
Zé Castro, o único do grupo de Vítor Bruno na Académica que chegou à equipa principal dos "estudantes" e fez uma carreira de nível internacional com passagens por equipas como o Atlético de Madrid ou o Desportivo da Corunha, recorda que, apesar de não ter chegado "a patamares de excelência", o facto de ter jogado futebol dá a Vítor Bruno a capacidade de entender o jogo na totalidade.
“Há várias formas de liderar, uma delas é o exemplo. Conseguir demonstrar aos jogadores coisas que eles, vendo, não sabem fazer, é para mim muito importante”, diz Castro.
E logo de seguida, o ex-internacional elogia o amigo. “É extremamente inteligente e tem uma capacidade cognitiva que lhe permite pensar com rapidez nas coisas”.
Mas entrando de novo na máquina do tempo, rumo à Coimbra dos anos de 1990, o treinador desta geração, José Viterbo, e que conhece desde sempre o agora técnico azul e branco, ajuda a descrever quem era o “Bruno”, como carinhosamente o nomeia.
Quando aquele menino de sete anos lhe chegou para treinar viu “um miúdo bem comportado”, “super simpático, bem disposto, na altura até envergonhado”.
Apesar de ser filho de uma grande referência do futebol de Coimbra e português, Vítor Manuel, Viterbo diz que “o Bruno nunca trouxe essa responsabilidade em cima dos ombros”.
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Em relação ao jogador que teve pela frente, Viterbo descreve-o como “tecnicamente evoluído” e “polivalente”. Tinha uma “leitura de jogo muito boa” e “percebia perfeitamente o momento em que podia jogar de uma forma tecnicamente, digamos assim, mais evoluída”, ou tinha de dar "um chutão “para o Jardim da Sereia”, espaço em frente ao então campo de treinos dos escalões de formação da Académica.
Essa era também a época em que aos domingos, quando a Académica jogava em casa, no antigo Calhabé, Vítor era presença regular. “Andava sempre com um saco de pevides nas mãos. Era a imagem de marca”, recorda André Lage.
Nessa altura, em criança, há ainda outra caraterística que lhe ficou colada. “Era um bom garfo, comia muito bem. Mas eram coisas muito simples, como massa com carne”, contam os amigos.
Fez todos os escalões de formação da Académica, até que na fase de transição de júnior para sénior acaba por abandonar o clube. Um momento que deixou marcas.
“Foi difícil para nós, porque eu partilhei esse momento com ele”, conta Mauro Paula. Recorda que houve alguns jogadores que foram logo dispensados assim que terminou a época de juniores, mas com ele, com Vítor Bruno e outro jogador, a decisão arrastou-se um pouco mais.
Tinham a expetativa de um contrato profissional e um empréstimo a um clube da região. Não aconteceu.
Campos Coroa, presidente da Académica à época, chamou-os “para agradecer”, mas “efetivamente a ligação ia ser interrompida”.
“Foi muito duro. Lembro-me de sairmos do pavilhão, entrarmos no carro, e fomos de lágrimas nos olhos, porque era uma ligação muito forte”, recorda.
Com a ajuda de José Viterbo abre-se a porta do Bidoeirense e os estudos académicos são cada vez mais uma prioridade, nada que André Lage diga que possa ter apanhado Vítor Bruno completamente desprevenido.
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“Todos tínhamos o pequeno sonho de sermos futebolistas profissionais, mas também por jogarmos na Académica, éramos diariamente relembrados que a percentagem de jogadores da formação que chegam ao futebol profissional é muito pequena”, lembra.
Por isso, Lage diz que a maior parte daquele grupo nunca descurou a formação académica. Aliás, o treinador José Viterbo recorda-se bem dessa caraterística. “Era um aluno que se preocupava em estudar, em tirar boas notas. E às vezes os próprios colegas brincavam com ele, aquelas brincadeiras no balneário, porque chegava a levar os livros para estudar nas viagens para os jogos”.
Vítor acaba por entrar no curso de Ciências do Deporto e Educação Física da Universidade de Coimbra, onde é acompanhado por Mauro Paula. “Era um aluno muito, muito bom”, qualifica.
Terminou a licenciatura com 19 valores. “Foi dos melhores alunos a passar pela Faculdade Ciências do Desporto”, resume.
Mas não foi só talento, Vítor Bruno sempre que chegavam as épocas de exames desaparecia. “Nem valia a pena ligar-lhe a três semanas das frequências”, conta Mauro.
Foi também na faculdade que Vítor conheceu a mulher Elsa Varela com quem tem três filhos, o Gustavo, o Guilherme e o Gabriel, entre os cinco e os dez anos.
Fora do mundo do futebol e dos estudos, Miguel Marques, que também jogou com Vítor Bruno na infância e adolescência e que ainda hoje faz parte do grupo de amigos do treinador do FC Porto, lembra um amigo muito competitivo. Os hobbys dele estão todos ligados ao desporto. Um deles o padel, que começou a jogar há uns anos.
“Só queria jogar mais e mais e melhorar para ganhar jogos”, recorda.
Zé Castro não tem dúvidas. “Ele é muito competitivo, é-o desde sempre”. “É muito obcecado com aquilo que ele pensa que deve ser feito”, concretiza.
Mauro recorda também a vontade de ele manter constantemente a forma física. Numa altura em que esteve sem treinar, e passou de novo mais tempo em Coimbra, “todas as noites fazia 15 quilómetros a correr”. “Uma vez, tentei ir com ele a correr e eu de bicicleta, mas quando chegámos à subida do Cidral eu não o consegui acompanhar”, conta entre sorrisos.
Outra caraterística que Miguel Marques relembra do agora treinador azul e branco é alguma superstição que agora se liga à questão de Vítor, esteja sol ou frio, vestir sempre calções.
Numa passagem de ano que passaram com o grupo de amigos, na Corunha, o agora treinador do FC Porto tinha um carro novo. “Estávamos para sair e ele disse: ‘Malta, tenho de ir ali a Fátima para benzer o carro. Foi lá, voltámos e só depois arrancámos”, diz.
É aos 24 anos, que Vítor Bruno decide avançar para o curso de treinador de futebol. “Sempre teve a ambição de vir a ser treinador, mas a partir do momento em que percebeu que não ia ser grande jogador, que se calhar não reunia competências para ser jogador profissional, isso reforçou-se”, declara Mauro Paula.
Este amigo de longa data também jogou mais uns anos e pelos clubes onde depois passou encontrou jogadores que haviam sido treinador por Vítor Bruno e lhe davam feedback sobre o trabalho deste.
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“Apesar de ser muito novo nos clubes onde passou, deixou sempre uma imagem muito forte junto dos jogadores. Diziam-me isso, diziam que era excecional, que era cinco estrelas. Eles chamavam-lhe o ‘prof’, porque ele já era licenciado em Ciências do Desporto”, descreve.
Se começou como preparador físico rapidamente passa a mais do que isso. Parte com o pai para Angola na primeira experiência profissional. Mauro recorda que na altura Vítor sentiu o choque cultural.
O horário de chegada ao treino quase nunca era cumprido no 1º de Agosto. Era frequente os jogadores chegarem uma hora depois.
“Foi muito difícil a questão dos horários e o Vítor, na altura, debruçou-se muito sobre esta questão das regras. Tinha pensamentos muito complexos à volta deste assunto”, diz.
Optou por não castigar, porque isso teria pouco efeito. Preferiu perceber como os poderia persuadir a fazer o que ele queria. “Criou uma série de dinâmicas, que permeava quem cumprisse as regras até que elas se tornaram um hábito”, explica.
“Se tivesse optado por castigos naquela altura, aquilo tinha corrido mal”, pensa Mauro.
Seguiu-se a parceria com Augusto Inácio, na Naval e no Leixões, treinador que era amigo de casa do pai Vítor Manuel.
Findos estes dois anos segue para integrar a equipa de Sérgio Conceição, de quem durante longos anos foi o número dois. Até este verão se ter dado a separação. Traumática.
“Foi muito difícil para ele, porque efetivamente guarda um grande carinho, um grande respeito e uma grande consideração pelo Sérgio Conceição”, revela Mauro.
Segundo o amigo de Vítor Bruno a cronologia dos acontecimentos que levaram o conimbricense à liderança técnica dos azuis-e-brancos não é aquela que as pessoas mais perto de Sérgio Conceição quiseram fazer crer. E que lhe colou o rótulo de “traidor”.
“O que passou na Comunicação Social não é verdade e isso custou muito”, explica Mauro. “Agora ele tem uma organização mental que lhe permite separar as coisas e mudar o chip. A partir do momento que assumiu a liderança do FC Porto é para ganhar”, acrescenta.
O mesmo amigo diz que Vítor lamenta “as relações não estarem de maneira nenhuma reatadas ou se calhar nem nunca vão estar”. “Não vão voltar a ter aquela amizade, aquela cumplicidade. E isso acredito que custa ao Vítor, porque ele dá muita importância à amizade”.
Também José Viterbo não hesita em dizer que ele “continuará a ser o que sempre foi, uma pessoa de bem, um rapaz sério, incapaz de trair seja quem for”.
“Era incapaz de ser desleal para com todos aqueles com quem trabalhou ao longo de uma vida. Trabalhou muitos anos com o Sérgio Conceição. Acho que o ajudou muito. Também acho que aprendeu muito”, sublinha.
Viterbo diz que o seu ex-jogador não pode ficar com o rótulo de “traidor” e confessa que quando falou com ele no pós-separação de Conceição “achei-o muito abatido, achei-o muito em baixo, dei-lhe algumas palavras de conforto”.
O mesmo considera que a confusão mediática que se seguiu era escusada. Acrescenta que há momentos da vida em que temos tendência para extremar posições, mas que isso “não nos leva a lado nenhum”.
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“Eu acredito que ainda haverá espaço para um dia o Bruno e o Sérgio se reencontrarem, conversarem e voltarem a normalizar as suas relações. Porque acho que a vida é tão curta. É uma passagem”, analisa.
Uma das características mais fortes dos primeiros tempos da liderança de Vítor Bruno como treinador do FC Porto é um discurso rebuscado e filosófico que muitas vezes usa. Há uma frase, ainda sobre a separação de Sérgio Conceição, que se tornou-se quase icónica. “Tenho a paz interior garantida, adormeço todos os dias sob o aplauso da minha consciência”.
Ele sempre foi assim? Sempre falou desta forma? “Ele fez um curso superior com enorme mérito, sempre foi um bom aluno. Era uma pessoa com quem se podia conversar. Se calhar as pessoas estão habituadas a outro perfil de treinador. Nós vemos o Rúben Amorim, vemos o Vítor e outros treinadores que já têm uma capacidade de discurso superior àquela que os treinadores tinham há 10 anos, há 15 anos”, contrapõe André Lage.
Dois dos traços de personalidade de Vítor Bruno mais destacados pelos amigos são a serenidade e a calma. Mas como é que estas caraterísticas casam com o perfil de um clube que faz do confronto e aguerrida, uma imagem de marca das últimas décadas.
“Penso que a equipa vai manter essas caraterísticas, vai ser competitiva e agressiva. Mas dentro das quatro linhas e não fora delas. Não precisas de ter essa atitude de ferver em pouca água”, assegura Miguel Marques.
Miguel, André, Mauro e Vítor cresceram num tempo em que os telemóveis ainda não existiam. “Estávamos juntos, ninguém estava a olhar para telemóveis. Nós passávamos muito tempo a conversar e a brincar. Éramos miúdos e não havia mais nada para fazer, então eram relações que se construíam muito fortes”, conta André Lage.
As horas nos cafés de Coimbra foram incontáveis, mas as conversas só tinham uma direção: o futebol.
Talvez por isso, mais de 20 anos depois de terem jogado juntos, mantêm a ligação. Tão forte que mesmo os amigos benfiquistas vão deixar por Vítor à frente da paixão clubística.
“Neste momento tenho o Vítor como o treinador principal do Porto, que é meu amigo. Quero que ele tenha sucesso, quero que o Porto vença e que o Porto seja campeão. É fácil, é muito fácil de escolher”, diz Miguel Marques.
Mauro não tem dúvidas também: “Se o Vítor ganhar ao Benfica eu vou ficar satisfeito. Quero que tenha uma carreira repleta de títulos”.
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