14 jan, 2025 - 12:20 • Hugo Tavares da Silva
A vida tem destas coisas. Depois de tocar no tecto da imaginação em abril, no Estoril Open, ao estrear-se num torneio ATP, seguiu-se uma queda às trevas labirínticas que sempre recrutam os atletas. Deixou de treinar tão bem, talvez tenha pecado e olhado de soslaio a humildade no dia a dia, e começou a perder nas primeiras rondas.
Consciente dos problemas, agarrou-se à corda imaginária que corta as mãos e que surge apenas perante os homens e as mulheres que se entregam ao suor e à ética de trabalho e que, no fundo, se autorizam a respirar outra vez o ar puro. Ele recuperou, levantou-se e, em outubro, triunfou no torneio challenger de Curitiba.
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E isso permitiu-lhe ser cabeça de série no qualifying do Open da Austrália, onde superou três tenistas e celebrou à Gyökeres, afinal trata-se de um sportinguista dedicado, e alcançou agora a segunda ronda, depois de bater Pavel Kotov na estreia em majors. Segue-se Novak Djokovic (7.º ranking ATP), que tem 24 títulos do Grand Slam, 10 deles na Austrália. A Renascença entrevistou o tenista português, de 21 anos (125 do mundo), a menos de 24 horas dessa partida especial.
Que tal, tem dado para dormir?
Deu, deu, deu. Nada como, depois de um jogo, uma boa noite de sono. Consegui dormir apesar de ter muita coisa na cabeça, consegui descansar bem. Nove horinhas não está mal.
Imagino que esteja a viver o sonho. Ainda há aquela coisa de miúdo de imaginar pancadas, momentos específicos e, sei lá, ver-se a tocar o céu? O visualizar a coisa...
Claro que sim, há sempre essas visualizações que tinha enquanto mais jovem. Imaginava jogar nestes courts ou celebrar desta maneira, coisas pequenas que têm a sua importância. É uma coisa de miúdo [risos].
Não bastava ir jogar a segunda ronda do primeiro torneio do Grand Slam, como vai ser logo contra o maior triunfador da história do ténis. Não é coisa pouca, não é?
Não. Levo isto como um prémio também, um bocadinho uma recompensa pelo que tenho feito e da subida que tive de um momento para o outro. Estou em subida desde o ano passado, quero continuar assim, sei que não é fácil. Tenho de aproveitar da melhor maneira. Vou ter as minhas chances, sei que é um jogo muito difícil. Já defrontei um adversário top-10, o Casper Ruud, mas nunca defrontei um jogador deste nível, com este palmarés, é único. Defrontá-lo aqui, em Melbourne, vai ser especial. É provavelmente o sitio onde ele é mais imbatível.
A adrenalina dá energia ou há sempre aquela coisa dos músculos se poderem contrair? Há ali momentos de tensão, teme que a mente o traía ou está tranquilo?
Estou tranquilo. Faço sempre sessão de fisioterapia e ontem [segunda-feira], curiosamente, foi o dia em que eu estava mais solto. O meu fisioterapeuta comentou que não achava normal. Mas eu sinto-me bem, melhor do que nunca, estou a evoluir, estou em crescendo neste torneio, tanto no ténis, como fisicamente. É verdade, é à melhor de cinco sets, com o Kotov não foi um jogo muito difícil nesse aspeto, mas para vencer o Novak vou ter de estar ao meu melhor nível. O físico tem de estar lá. Como é lógico, podem contrair alguns músculos nos momentos mais importantes, mas já estou habituado, há estratégias para lidar com isso.
Como se prepara um jogo contra Djokovic? O que há para explorar no jogo dele? Antigamente, prolongar as jogadas contra ele era péssima ideia, mas os anos vão passando e já tem 37 anos. É por aí?
Isto é um pouco como no futebol, não é? Eu jogo o que o adversário me deixa jogar. Ele não é daqueles servidores que não vai deixar jogar ou que acaba o ponto em três pancadas.
Hmm, hmm.
Ele vai deixar jogar, vou ter oportunidade de jogar o meu jogo. Vou ter os meus padrões, vou procurar ao máximo sentir-me confortável, ele vai tentar dificultar e apertar comigo fisicamente, sem dúvida. Apesar de ter 37 anos, é uma máquina ainda. Sinto que tenho de procurar, primeiro, o meu jogo. Vou jogar num court grande, muda um bocadinho as distâncias, são tudo coisas um bocado diferentes que tenho de ajustar ao meu jogo.
As referências...
Exato, as referências, inícios de jogada. Tenho de me focar em mim. Quando o Pedro [Sousa] me der a palestra, vou estar pronto para o que tenho de ouvir e ajustar em relação ao Djokovic.
Ele tem alguma coisa que admire particularmente?
O mais importante no jogo dele, para mim, é o foco que ele mete nos momentos importantes, aquele extra. Parece que abre os olhos e se torna imbatível [risos]. A nível técnico, a esquerda acho que se destaca, tanto na resposta como no ráli.
Se ele jogasse com uma camisola do Benfica ajudava? Ia correr mais?
[risos] Sim, se calhar pensava que era o Markovic...
Na última edição do Estoril Open, a estreia em torneios do ATP, disse à Renascença (aqui) que não estava habituado a jogar para tanta gente. Mais logo vai ser no court central ou no Margaret Court. E estará cheio certamente. Imagina isso, prepara-se mentalmente? Ou, se calhar, é mais entusiasmo.
É entusiasmo, sempre disse que gostava de jogar em palcos grandes. Neste último ano, tenho jogado em cada vez melhores campos e estádios, mais emblemáticos. É mais uma experiência que vou viver e vou aprendendo. Acho que estou pronto, tenho de tentar puxar por mim e canalizar a energia num bom sentido. Para ganhar três sets ao Novak, não posso perder muita energia com isso.
Quem tem na box?
O Pedro Sousa, o meu treinador. O fisioterapeuta que está também com o Nuno Borges, o Daniel Neto. Depois, tenho comigo o André Leite, o meu ex-treinador, do clube de ténis do CAD. Tomou a iniciativa de vir aqui à Austrália e tem sido inacreditável. A última vez que estive com ele foi em Roland-Garros [risos], portanto estamos com seis vitórias e uma derrota em Grand Slams, não está mal o rácio. Há que continuar.
...
Vai ser essa a minha box, o Rui Machado também está aí com o Nuno Borges, mas podem coincidir as horas dos jogos. Há muitos portugueses por aí, o Francisco Cabral, o Luís Faria, o João Sousa que está aqui a trabalhar no ATP e também deu uma ajuda, e o Francisco Rocha, que está com a Zheng Qinwen a fazer sparring. Dão-me muito apoio, não me sinto sozinho no campo.
Na tal entrevista à Renascença também falava nas sovas de humildade que o ténis dá. O que tem ensinado o ténis nos últimos tempos?
Falámos no Estoril?
Sim, em abril.
Entretanto já levei mais uma sova de humildade do ténis. Tive ali uma fase em que saí do rumo que queria ter. Foi mais inconsciente... bom, foi consciente senão teria levado mais tempo a recuperar. Depois de Wimbledon, perdi um bocadinho o rumo que estava a ter, a humildade no trabalho, não foi fácil. Tive ali três, quatro meses sempre a perder nas primeiras rondas, apesar de não estar a jogar mal nos treinos. Sinto que não foi a melhor fase, acabei bem a época, voltei a meter os cavalos todos. Lá está, houve a recompensa do meu trabalho, consegui acabar bem a época, com um título e uma final e colocar-me como cabeça de série na Austrália, aqui no qualifying, que me deu mais chances de me qualificar para o quadro. Isto é tudo um bocado assim.
Deixe-me ir ao jogo com o Pavel Kotov. Que entrada foi aquela? Parece que está num lugar especial, com o serviço a ser importante, começa bem as jogadas.
Estou num estado de flow, quero manter assim, é especial. Sinto-me a jogar muito bem, o trabalho está em crescendo, quero elevar o nível para o próximo jogo, vai ser preciso. Jogar bem no início da jogada é muito importante num piso rápido, o serviço, a resposta, meter logo pressão no adversário e procurar entrar por cima no ponto. Sabia que o Kotov teria um bom serviço, não se apresentou da melhor maneira no início, foi melhorando ao longo do terceiro set. Consegui, ainda assim, dar resposta e breakar no final. Lá está, estive bem nos serviços e resposta, mas também na primeira bola com a direita e a esquerda.
Outro dia ouvi que o Jaime Faria ia ter o melhor serviço da história do ténis nacional.
[Gargalhada] Não sei, não sei.
Como tem afinado essa ferramenta? Imagino que se analise tudo, até biomecânica, o movimento, o gesto.
Sim, o Pedro [Sousa] é especialista no serviço. O Pedro e o Rui Machado também foram grandes servidores, eles ensinam-me bem [risos]. Diria que os melhores servidores são o Nuno Borges, Gastão Elias, Nuno Marques e o Leonardo Tavares.
A seu favor os 1.88m, não é?
Sim, tenho trabalhado bastante na perfeição do meu serviço. Mas não só o serviço, a saída para a primeira bola, acho que é muito importante, não sair tarde. Aproveitar melhor o meu serviço não só no ás, no serviço ganhante, mas também para assumir o ponto. É assim que se serve. Podemos ver os melhores do mundo, não são os que destroem os outros em áses, mas são aqueles que conseguem aproveitar várias vezes o serviço na construção do ponto. Portanto, tenho feito um bom trabalho no serviço e na primeira bola.
O sentimento de ver o nome subir no ranking ATP deve ser interessante. Há algum objetivo para 2025?
O primeiro que vem à cabeça sempre foi o top-100, é um marco na carreira de qualquer jogador. Um top-100, sem dúvida. Queria ganhar jogos por Portugal na Davis Cup e jogar quadros de Grands Slams, já consegui cumprir esse objetivo. Lá está, no ténis nunca é fácil meter um objetivo em termos de ranking, onde se perdem pontos do ano passado, depois há outros jogadores que sobem no ranking, nunca se sabe muito bem. O top-100 seria, à partida, o objetivo, ainda não consegui. Sei que amanhã [madrugada de quarta-feira] vou estar a jogar para top-100. É mais um peso, tenho de encarar isso da melhor maneira.
Mais logo vai viver um momento especial. Recebeu alguma mensagem que o tenha surpreendido ou que tenha gostado especialmente…?
Do Viktor Gyökeres.
A sério?
Sim, sim. Recebi quando passei a fase de qualificação, ele mandou-me a mensagem e por isso é que entrei assim, 6-1 e 6-1, contra o Kotov. Foi de rompante por causa do Gyökeres [risos].
O que disse ele?
Desejou-me as melhores das sortes e disse que ia estar a acompanhar e que esperava que eu ganhasse muitos jogos na Austrália.