13 nov, 2024 - 17:20 • Hugo Tavares da Silva
Tudo o que não é xadrez, para Hans Niemann, é aborrecido. Só quer pensar no tabuleiro e até sonhar com ele. Estudou poker e os seus fundamentos, mas seria incapaz de ser entregar a jogos de sorte e azar. Por isso, prefere estar, como já aconteceu, a virar umas bebidas num bar com um amigo enquanto joga xadrez no telefone.
Este norte-americano, de apenas 21 anos, é grande mestre de xadrez e esteve ligado àquela polémica da batota com Magnus Carlsen, a grande figura deste mundo nos últimos largos anos. Atrevido como é, claro que perante uma plateia inteira na Web Summit, em Lisboa, brincou com a situação.
O cidadão de São Francisco, Califórnia, aceitou o desafio de jogar contra uma mistura de inteligência artificial e uma multidão internáutica de dezenas de milhares de curiosos ou jeitosos do tabuleiro de xadrez, conectados a um site através de um QR Code.
Na lembrança tilinta o que Garry Kasparov fez há 25 anos, quando derrotou mais de 50 mil aventureiros e as suas decisões tomadas pela maioria. Na altura, a partida estendeu-se por quatro meses e 62 movimentos.
Desta vez os problemas na ligação interromperam a partida, mas até se alcançou o equador do tempo que o californiano dispunha (cinco minutos). Ele demorava em média quatro segundos por jogada. O público, à distância ou no pavilhão 1 da Web Summit, precisava de 20 segundos e tinha auxílio de uma máquina que dava três soluções para a jogada: uma digna de um grande mestre, outra de nível avançada e mais uma de amador. Não sabíamos qual era qual, naturalmente.
“A melhor opção será muito melhor do que a minha”, avisou Niemann antes do início da partida. Ele ia respondendo a questões enquanto mexia nas peças. Que tal a inteligência artificial? “Mudou como estudamos e melhorámos. Tornou o jogo mais teórico. Temos acesso a todo o repertório dos jogadores, há oportunidade para explorar o jogo, criar conceitos e manobras. Transformou o jogo, tornou-o um bocadinho aborrecido.”
A carreira profissional de Niemann começou com apenas 17 anos. Quando alcançou o estatuto de grande mestre, perguntaram-lhe por que raio não recorria a esta tecnologia, como se fosse uma heresia. E ele cedeu.
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Adora “trash talk”, meter-se com os outros, picar e desafiar. Não percebe porque lhe chamam “bad boy”, chama estúpidos aos artigos que usam o termo. Pelo meio critica jornalistas e garante que a verdade é um problema hoje em dia. “As mentiras são mais convincentes.”
A partida ia evoluindo. No telefone era difícil perceber logo o movimento que o mago que estava diante de nós tinha decidido, assim como a opção do mundo que o defrontava. “Eu vou ganhar, mas vou dar-vos uma oportunidade para ser divertido. Vou com calma”, suspirou. Lá está ele…
Mas também teve momentos em que tirou o chapéu à plateia. Ficou impressionado por algumas decisões. As respostas e a conversa continuam, menciona umas coisas teóricas, talvez aberturas ou truques mais difíceis ainda de acompanhar. Lembra uma partida em Paris em que sacrificou a rainha. “Foi um jogo lindo.”
Malandramente, ia dizendo que possibilidades é que o rival global tinham contra ele: “93%”, “82%”, “90%”. Mas o “bad boy”, ó não mais um artigo idiota, declarou de seguida: “Estou pronto para o fogo de artíficio. Talvez haja tempo para um segundo jogo.”
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Niemann declarou que gostava de ser o melhor jogador de xadrez por muito tempo e até mencionou Bobby Fischer, que confessou querer ser o campeão do mundo “por algum tempo”.
Convoca a urgência para uma decisão boa por parte do adversário. “Senão acaba muito rápido! (...) Não há grande plano desse lado. Infelizmente, o público interferiu na genialidade da inteligência artificial.” OK, agora é pessoal. “Diria que isto dura mais 20 movimentos…”
Talvez com demasiada sede de ir ao pote, o povo inteiro contra um só homem desavindo meteu o cavalo numa posição que obrigou o rei alheio a mexer-se. “Xeque!”, celebrou o homem que era a mão armada do mundo. Niemann riu-se, quase envergonhado. “Normalmente não dizemos xeque, isso mostra a tua experiência.”
O homem que se sentava à sua frente, a marioneta da população, questionou se Hans contava com inteligência artificial no seu tablet. “Só tenho o meu cérebro, infelizmente. Eu sou tão bom que eles acham que há inteligência artificial, mas não há”, aqui está, a referência ao caso com Magnus Carlsen.
Os problemas com a internet bateram à porta. Toda a gente, certamente, queria saber como seria a sangria. As peças comidas revelavam um equilíbrio que intrigava demasiado. “Um empate!”, celebrou o interlocutor do povo.
“Uau”, gozou Niemann. “A minha reputação não vai recuperar, acho eu. Eles pararam porque viram que estava muito nervoso…” É um rapaz com piada, com aquele jeito de ser jovem, desinteressado e quase aborrecido. Às vezes ganhava luz. “Eu não tenho rivais, tenho fãs. Quando alguém está muito obcecado contigo, chamo-lhes fãs.”
Mais tarde, na conferência de imprensa, comentou a partida. “Foi um jogo interessante, apesar das dificuldades técnicas”, começou por dizer. “Fico contente que tenhamos tido uma boa luta, houve um momento em que fiz um erro muito grande, felizmente o público não aproveitou. Cheguei a ficar stressado, foi uma boa experiência.” Na altura desse erro, temendo que os homens e as mulheres do mundo mordessem a sua jugular, desabafou a seguir: “Estou a falar a sério, isto é crítico. Se calhar estou a fazer bluff para vocês arriscarem”.
Se a audição deste que vos escreve não entrou em modo pecador, o povo decidiu 30.6% das vezes como um grande mestre. Admirável, não?
“A inteligência artificial é uma boa forma de meter os amadores a jogar com os jogadores de topo”, sentenciou Niemann. “O maior uso da mesma é na análise. Ajuda os grandes jogadores.”