10 out, 2024 - 08:00 • Carlos Calaveiras
No dia mundial da saúde mental (10 de outubro), a Renascença falou com Ana Bispo Ramires e Jorge Silvério, dois psicólogos do desporto, para um ponto de situação sobre a realidade em que vivem ou resistem os desportistas. Certo é que não há mais casos problemáticos de saúde mental, se comparado com não desportistas.
“O desporto sempre foi um meio muito fechado e o simples facto de se falar e de se reconhecer que há problemas de ansiedade, depressão ou dificuldades em conciliar a vida profissional com a vida pessoal, era visto como fragilidade ou vulnerabilidade e, portanto, não se falava”, diz Jorge Silvério, que recentemente acompanhou a seleção de futsal no Mundial, no Uzbequistão.
Em declarações a Bola Branca, este psicólogo do desporto lembra que, “a partir do momento em que se começou a falar abertamente sobre isso”, nomeadamente através de testemunhos de atletas icónicos como o Tiger Woods, o Michael Phelps, a Naomi Osaka, a Simone Biles, “abriu-se a porta para que outros atletas percebessem que aquilo não acontece só com eles”.
Ou seja, “se os seus ídolos falam sobre isso, então eu também posso falar e, sobretudo, mais importante do que falar, posso pedir ajuda porque isto não acontece só comigo e não sou eu que estou a ter um problema específico”, explica Silvério.
E acrescenta: “Temos psicólogos que são especialistas nesta área e, tal como trabalhamos a parte física, a parte técnica e a parte estratégica, também faz sentido que haja pessoas que nos ajudem a trabalhar a parte mental ou a parte psicológica por forma a prevenir que problemas aconteçam”.
Saúde Mental
“Não está a haver mais casos de saúde mental nos d(...)
Este especialista reforça que cuidar da saúde mental é essencial, seja no desporto, seja na vida civil. “Nós temos muito a ideia do remediar”, reflete. “‘Estou com um problema de ansiedade ou depressão ou desmotivação ou de concentração e vou procurar ajuda’, mas isto já é remediativo, ou seja, só estou a procurar ajuda depois de identificar o problema. Agora, se, antes de termos o problema, estivermos a trabalhar com pessoas que nos podem ajudar do ponto de vista preventivo, para que esse problema nem sequer exista, então aí é muito melhor.”
Já Ana Bispo Ramires lembra que “quando estamos X anos num contexto em que a pressão é elevadíssima”, nomeadamente no futebol, em que os intervenientes são avaliados todas as semanas –, “o nível de exigência é elevadíssimo, o escrutínio é elevadíssimo e numa modalidade em que se passa de bestial a besta em dois, três fins de semana, obviamente que a probabilidade das pessoas entrarem em exaustão energética, com probabilidade de desenvolverem quadros de ansiedade crónica, de burnout, é elevadíssima”.
Jorge Silvério nota que os atletas podem ter problemas que vão para além da bola que entra ou não, ou do resultado que se alcança ou se falha. Afinal, há jogadores com lesões recorrentes, há casos de problemas com apostas, há questões familiares, há problemas com negócios extra-campo. São diferentes planos, mas tudo pode perturbar e há outra situação muito recorrente, lembra este psicólogo do desporto.
“Não se fala muito, mas cada vez mais acontece, é um fenómeno transversal à sociedade, que afeta desportistas e não desportistas: é a questão da concorrência e do ‘ser melhor que o outro’, que nos é muito incutido pela sociedade em que vivemos e que leva a que, depois, os jovens atletas sejam muito perfecionistas, queiram fazer tudo, quer na sua vida académica, quer desportiva, com o máximo perfecionismo”, revela.
Saúde Mental
Em entrevista a Bola Branca, a psicóloga de despor(...)
E continua: “Isto, se não for bem calibrado, leva-os, a eles próprios, a criarem uma exigência e uma pressão exagerada em cima deles. Nem precisam de ser os pais ou os treinadores a colocarem essa exigência”.
De acordo com Bispo Ramires, a investigação científica demonstra que “um atleta com traços de ansiedade mais elevados tem três vezes mais hipóteses de se lesionar”.
Atualmente, os atletas que chegam ao topo do alto rendimento têm acompanhamento psicológico, mas “mesmo aí há muitas lacunas”, confessa Jorge Silvério.
“Se olharmos para a outra ponta do espectro, em relação a árbitros e atletas, quando eles começam não têm, na maior parte dos casos, esse acompanhamento e seria uma altura que seria extremamente importante terem”, defende. “Porque, se houvesse esse acompanhamento, aumentaria a capacidade de a carreira chegar ainda mais longe e ter maior sucesso.”
Mas este psicólogo do desporto vai mais longe: seria fundamental reforçar esse acompanhamento entre os jovens e as suas famílias. “Quando sou procurado por jovens atletas, uma das coisas que digo logo na sessão inicial é que também vou trabalhar com os pais e quero também intervir a esse nível”, admite.
“Muitas vezes a ansiedade, sobretudo que os jovens atletas revelam, passa muito pelo comportamento dos pais e há até atletas que pedem aos pais para não irem assistir às provas porque o comportamento dos pais acaba por os colocar ainda mais nervosos do que a situação competitiva já provoca”, exemplifica.
Em declarações a Bola Branca, a psicóloga do desporto Ana Bispo Ramires lembra (e lamenta): “Não há formação de pais. Porque temos de exigir aos pais que se comportem da forma A, B ou C se ninguém lhes diz que forma é essa. É para eles adivinharem? Isto não faz sentido nenhum, Temos de dar informação às famílias, é um passo que temos de dar em Portugal”.
Há uns anos, a situação do guarda-redes Robert Enke chocou o mundo do futebol. Um jogador de seleção que passou por grandes clubes acabou por se suicidar.
Jorge Silvério reforça: “Isto prova-nos que a parte mental é extremamente importante e temos de cuidar dessa parte, sem ter medo, nem receio ou vergonha de procurar ajuda quando não estamos a conseguir lidar com as situações sozinhos”.
O caso do antigo jogador alemão leva Ana Bispo Ramires a lembrar o problema dos ‘top performers’. “Enquanto um cidadão não está bem, tende a quebrar o rendimento, o problema dos ‘top performers’ é que, mesmo estando mal, conseguem manter o rendimento. E isto faz com que o meio, muitas vezes, detete tardiamente que as pessoas não estão bem”, reconhece.
Cada vez há mais jogos e o calendário é mais apertado. Já há jogadores a admitir avançar para uma greve. Para Jorge Silvério seria importante encontrar um melhor equilíbrio entre vida profissional e vida pessoal, para conseguir evitar cansaço físico e mental.
“Os jogadores têm uma série de competições e começam a não ter tempo para encaixar tudo”, observa este psicólogo. “Estamos a falar de jogadores que, por época, podem eventualmente fazer 70/80 jogos e é óbvio que depois se paga uma fatura, obviamente também do ponto de vista físico, mas sobretudo do ponto de vista mental.”
E continua: “O ideal, de facto, seria que houvesse esse entendimento em relação ao número de jogos, que poderia passar por estabelecer um tecto, que permitisse que os atletas soubessem, no início da época, que vão jogar um número razoável de jogos que lhes permitisse não pôr em causa a sua saúde, quer física quer mental”.
Mas, afinal, a que sinais de alerta devemos estar atentos? “Tudo o que sejam alterações no comportamento normal da pessoa”, indica Ana Bispo Ramires. “O sono é um dos fatores de risco maior, ou seja, as pessoas não dormirem sete ou oito horas por noite de sono reparador. Posso não ver a consequência aqui, mas a consequência acontece-me lá à frente.”
O sono é um dos principais pilares, garante a psicóloga, “ancorado com tudo o que seja doença psico-fisiológica e não é levado a sério em lado nenhum”. À lista junta as deficiências e problemas nos “padrões alimentares”.
Por sua vez, ainda sobre os sinais que podem destapar a ponta dos problemas, Jorge Silvério acrescenta: “As mudanças no comportamento ou no estado de humor, não aquelas mudanças que todos temos, em que temos dias em que estamos um bocadinho mais tristes ou mais incomodados com alguma coisa, mas que no dia a seguir já passou”, explica.
“Se estas mudanças de comportamento forem continuadas ao longo do tempo, é um sinal de alerta que nos deve pôr de sobreaviso e com atenção em relação àquilo que está a acontecer com essa pessoa e tentar ajudar da melhor forma que conseguirmos”, sensibiliza.