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Tróia-Sagres. GNR ameaça multar promessa de um homem que levou 8 mil ciclistas a segui-lo

09 dez, 2022 - 18:26 • Eduardo Soares da Silva , João Carlos Malta

António Malvar quis desafiar-se e, em 1990, decidiu que ia fazer o percurso de bicicleta entre Tróia e Sagres. A ideia ganhou vida própria e tornou-se num ritual para milhares de ciclistas. Este ano, a GNR ameaçou-o com uma multa caso continuasse a divulgar nas redes sociais o dia em que iria cumprir a promessa anual. Estava marcada para este sábado, 10 de dezembro.

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Há fenómenos assim. Uma ideia surge e, por razões que muitas vezes são difíceis de explicar, ganha uma dimensão que o criador nunca imaginou. Foi o que aconteceu com António Malvar. Sempre gostou de correr, mas queria desafiar-se e, por isso, quis fazer os 230 quilómetros que separam Tróia, na Península de Setúbal, de Sagres, no Algarve. Estava longe de imaginar que as estradas se encheriam de quase oito mil ciclistas a segui-lo.

Quando se preparava para no próximo sábado iniciar a 33.ª edição deste ritual de cicloturismo, António Malvar, de 72 anos, foi surpreendido com um aviso da GNR de Setúbal. Se continuasse a publicitar nas redes sociais o passeio, pagaria uma multa de 450 euros pela alegada organização do evento, e mais 50 euros por cada participante.

António nunca quis a responsabilidade pela organização do que apelida de “encontro descomprometido de amigos”, sendo que diz não conhecer a esmagadora maioria dos participantes.

Tirou do Facebook a data em que faria o percurso, mas garante que continuará a cumprir a promessa que pretende levar até à morte. A GNR diz que quis fazer um aviso. Todos os que quiserem, podem continuar a ir para a estrada fazer o passeio, mas pretende que os agentes que identifica como organizadores do evento tenham em conta as multas em que podem incorrer.

Pelo que o criador do passeio diz, as redes sociais transparecem, e outros participantes ouvidos pela Renascença relatam, esta atitude da GNR fez com que muitos que nem pensavam ir este ano ao evento façam ponto de honra em avançar para as bicicletas.

Um homem que queria um desafio

Mas voltemos atrás, e vamos dar a palavra ao homem que começou esta história, António Malvar. À Renascença, conta que tudo começou em 1990 e alerta logo que o o Tróia-Sagres “não é uma corrida”.

Ele praticava atletismo, e quis “fazer algo que custasse muito, porque não fazia muito ciclismo. Queria um desafio extremo”. Nasceu a ideia de todos os anos ir passar o fim do ano a Sagres, porque as suas raízes familiares são do Algarve.

“Decidi que ia de bicicleta num dia. Fui, fiquei muito satisfeito por ter conseguido, e quando cheguei lá abaixo disse que todos os anos até morrer, iria fazer isto. E pronto, nasceu assim."

O primeiro capítulo está contado, ou seja, como começa a história. O que se segue são 33 anos de tradição. E tudo podia ter ficado por aqui, não fosse esta ideia ganhar vida própria.

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"Decidi que ia de bicicleta de Troia a Sagres num dia. Fui, fiquei muito satisfeito por ter conseguido, e quando cheguei lá abaixo disse que todos os anos até morrer, iria fazer isto. E pronto, nasceu assim", António Malvar.

No ano seguinte, António convida um amigo para ir com ele, mas este não consegue acabar a tirada.

Segue-se mais um ano e Malvar convida várias pessoas. Ninguém quer ir. Até que os anos foram passando e lá apareceram dois ou três companheiros. Esses chamaram mais dois ou três e, em 2018, foram quase oito mil a fazer o percurso, segundo António.

Este número é uma estimativa porque é “difícil dizer” quantos são ao certo. “Não há inscrições, pagamentos nem controlo”, explica. Ou seja, não há uma organização. “É completamente livre, uns partem às 7h00, outros às 9h00. Vão chegando e vão partindo. É anárquico, entre aspas”, acrescenta.

Mas se António leva o que criou de forma amadora, a dimensão que o ritual ganhou fez com que empresas ligadas ao ciclismo se juntassem ao passeio para dar apoio logístico ao passeio.

E tudo um email mudou

A história poderia ficar por aqui, mas um email enviado há poucos dias pelo comando territorial da GNR de Setúbal para António e para essas empresas ligadas ao passeio, alterou as ideias de quem se preparava para mais um ano sair da Península de Setúbal e dirigir-se ao Algarve.

Nele podia ler-se: “É do conhecimento do posto desta Guarda que, no dia 10 de dezembro de 2022, se irá realizar um evento de ciclismo Tróia-Sagres. Evento esse que pela forma como está organizado, publicitado e pelo avultado número de participações, é considera pelo Decreto Regulamentar nº2-A/2005, de 24 de março, (regulamenta atividades na via pública), no seu artigo 7º Outras atividades que podem afetar o trânsito normal (…)”

Mais à frente escrevem, citando o Código da Estrada, que os particulares que sejam organizadores deste evento podem incorrer numa coima entre 450 euros e 2.250 euros, e se for pessoa coletiva a multa começa nos 700 euros e pode ir aos 3.500 euros, a que acrescem 50 euros por cada participante.


O Decreto Regulamentar nº2-A/2005, Artigo 7.º, que a GNR invoca:

Outras actividades que podem afectar o trânsito normal

1 - O pedido de autorização para realização de actividades diferentes das previstas nos artigos anteriores, susceptíveis de afectar o trânsito normal, deve ser apresentado na câmara municipal do concelho onde aquelas se realizem ou tenham a seu termo, no caso de abranger mais de um concelho.

2 - Para efeitos de instrução do pedido de autorização, a entidade organizadora deve apresentar os seguintes documentos:

a) Requerimento contendo a identificação da entidade organizadora da actividade, com indicação da data, hora e local em que pretende que a mesma tenha lugar, bem como a indicação do número previsto de participantes;

b) Traçado do percurso, sobre mapa ou esboço da rede viária, em escala adequada que permita uma correcta análise do percurso, indicando de forma clara as vias abrangidas, as localidades e os horários prováveis de passagem nas mesmas;

c) Regulamento da actividade a desenvolver, se existir;

d) Parecer das forças de segurança competentes;

e) Parecer das entidades sob cuja jurisdição se encontram as vias a utilizar, caso não seja a câmara municipal onde o pedido é apresentado.


António diz que a GNR lhe dirige este email porque entende que, por ter uma página no Facebook a dizer que vai fazer o passeio, é responsável pelo evento.

“Embora não seja uma organização, consideram-me responsável por dizer uma data e, entre aspas, convocar. Dizem que segundo a lei, tenho de pedir licenciamento da prova antecipadamente. Se não o fizer, incorro em multas”, diz.

O homem de 72 anos garante que nunca quis organizar nada, “nunca recebi dinheiro nenhum, nem patrocínio”.

“É uma coisa muito pessoal, nasceu assim e continua a ser assim ao longo dos anos. Se as pessoas vão, tudo OK. É giro irem, vão se quiserem e levam os amigos. Não conheço mais de 95% das pessoas que vão, nem elas a mim. O Tróia-Sagres ultrapassou-me completamente, a maioria nem sabe como nasceu. No fundo, é um encontro descomprometido de pessoas”, descreve.

GNR diz que não está a proibir... só a avisar

O tenente-coronel Rodrigues, responsável pela seção de operações da GNR de Setúbal, esclarece à Renascença que a Guarda “não está a impedir qualquer passeio, ou que as pessoas possam circular e fazer o percurso de bicicleta. Não é nada disso que está em causa”.

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"A GNR não está a impedir nenhum passeio, e que possam fazer o percurso de bicicleta. Não muda nada em relação a anos anteriores (...) Agora dado o número de pessoas que tem vindo a participar causa constrangimentos no trânsito normal e trata-se de um evento na via pública", tenente.coronel Rodrigues, GNR de Setúbal."

Na ótica deste responsável, nada muda em relação ao que já se passou nos anos anteriores. Ou seja, qualquer cidadão que entenda ir andar de bicicleta “pode fazer livremente, desde que cumpra as regras do código”.

Nem podia ser de outra forma, diz o tenente-coronel. Mas então porquê este ano enviar emails a indicar o valor de coimas a quem a GNR pensa serem os organizadores. O responsável das operações da GNR de Setúbal afirma que foi a quantidade de pessoas a participar no evento a razão que levou a informar quem promove o passeio do que pode acontecer.

“Em causa estão alguns constrangimentos no trânsito normal e, como tal, de certa forma acaba por se tratar de um evento na via pública. Se assim for encarado existem regras no âmbito da legislação que está em vigor, e onde são necessários os respetivos pareceres, tanto das Câmaras Municipais como das forças de segurança”, explica.

Mas se há mais de 30 anos que o Tróia-Sagres se realiza, e a Guarda quase sempre esteve presente, porque é que foi este ano que tomou esta decisão. O tenente-coronel Rodrigues aponta, novamente, para o número crescente de participantes como razão para a mudança de atitude.

António Malvar diz que "há uns 10 anos" que a GNR conhece o evento e, durante algumas edições, até apoiava o evento “dando segurança às pessoas em todo o percurso”.

“Conhecem isto há muitos anos, eu estranho terem vindo com isto neste ano”, sublinha.

O regulamento que a GNR invoca no email enviado não define um número de pessoas a partir do qual um grupo de ciclistas se torna “num evento na via pública”. A inexistência de algo que permita quantificar, gera perplexidade no meio dos ciclistas que participam, e levanta um eventual problema de discricionariedade.

O regulamento aponta para constrangimentos “que podem afetar o trânsito normal”, mas o não identificar um número faz com que os ciclistas se questionem se são 50, 100, ou 200. Então o que distingue o que acontece no Tróia-Sagres de muitos passeios de ciclistas que vemos todos os fim-de-semana nas estradas?

O tenente-coronel Rodrigues é perentório: “[O regulamento] não define um número, obviamente. Além do decreto regulamentar temos de olhar para o artigo 8.º do Código da Estrada. Está em causa a realização de atividades de caráter desportivo, festivo ou outras que possam afetar o trânsito normal ou colocar restrições ao trânsito dos peões nos passeios. Ou seja, conjugando este artigo 8.º com o decreto regulamentar, nenhum deles nos define um número. Mas daquilo que foi verificado, por exemplo, no ano passado, é que centenas de ciclistas que se juntam em grupos que vão percorrer todos os quilómetros desde Tróia até o Algarve. A circulação acaba por afetar o trânsito normal”, resume.

E depois acrescenta que, em relação à comparação com os grupos de ciclistas domingueiros, mais uma vez é o tamanho que conta. “Estamos a falar de grupos de pessoas que juntam grupos mais pequenos do que propriamente neste evento, que como já referi, têm vindo a tomar proporções muito, muito grandes, em que são centenas e centenas de ciclistas e de pessoas que se juntam”, sublinha o responsável policial.

Tudo para, no final, concluir que quem quiser ir, desde que cumpra o Código da Estrada, pode fazer o tradicional passeio.

Para sábado, o tenente-coronel Rodrigues diz que a GNR vai montar uma operação igual à de anos anteriores. Vão estar nos principais pontos onde possam estar em causa a segurança dos ciclistas e de outras pessoas que circulem na via.

Como identificar o organizador de algo que não é organizado?

Outra questão que se levanta é que, não sendo este encontro uma competição e não tendo inscrições, nem mesmo uma organização formal, como pode então ser António Malvar e as empresas que se associam ao passeio para apoiar os inúmeros ciclistas serem identificados como organizadores.

O responsável da GNR diz que não é líquido que haja multas, mas que quiseram deixar o aviso. Sublinha que a Guarda estará no terreno e daquilo que aí ocorrer, poderá ser instaurado um processo contraordenacional, após a realização de um inquérito.

António Malvar diz que não receia ser multado. “A única coisa que posso fazer para me retirar por completo da situação é dizer que não se vai fazer. Tenho uma página onde ponho uma data. Nessa página, vou dizer que não faço, que não existe. Se aquilo é pessoal e é meu, se digo que não se realizará, é porque não realizo nessa data. Mas vou cumprir a minha promessa até ao fim do ano”, afiança.

“Desvinculei-me completamente. Como é que posso ser responsabilizado?”, pergunta.

Sobre os motivos apresentados pela GNR, relacionados com o trânsito, até os compreende, mas olha para o lado e não percebe os comportamentos em situações análogas. “Eu compreendo isso, mas não lhes causa apreensão o número de motards que vão para o Cabo da Roca ou para o Cabo Espichel? Não causa apreensão as pessoas que se fazem à estrada quando é o 13 de maio? Quando as pessoas se metem em cima da mota quando vão para o encontro em Faro? São situações semelhantes. Já lhes causa apreensão quando as pessoas vão para o Algarve de carro e montam dispositivo para assegurar a segurança das pessoas. O que se pede, neste caso, é que montem dispositivo para assegurar a segurança de quem vai fazer isto”, defende.

Além de António, um conjunto de empresas que dão apoio técnico a grupos de ciclistas que fazem o percurso, e ajudam também a trazer as bicicletas no regresso a Norte, receberam a comunicação da GNR.

Uma delas falou com a Renascença, mas por andarem muito na estrada, não quiseram identificar-se.

Assumem que foram contactados pela GNR, tal como várias pessoas e entidades. Este responsável por uma empresa de material de ciclismo disse que “desistiram logo do apoio que davam”. “Não querem problemas até porque são da região e andam de bicicleta regularmente”.

Argumentam que têm algum receio da GNR implicar “por tudo e por nada com eles”. “Não havia negócio nenhum na participação deles nem de ninguém”, diz a mesma fonte, que afirma que não tinham lucro. A participação era “carolice”.

O mesmo responsável diz que as câmaras até cediam autocarros, e que há equipas profissionais a participar.

Sem medo de ir

O Clube de Ciclismo de Paio Pires é um deles. João Polido, diretor da equipa, é um daqueles que, apesar das condicionantes do Tróia-Sagres deste ano, vai marcar presença.

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"Eu vou, só se estiver doente é que não vou. O que interessa é chegar a Sagres com um sorriso", José Polido, diretor da equipa de ciclismo de Paio Pires.

Polido descreve-a como “uma clássica criada pelo senhor António Malvar”. “Geralmente, somos um grupo reduzido e vamos encontrando pessoas ao longo do caminho”, descreve.

O percurso, diz, é muito engraçado, “não há muitos carros pelo caminho”. “O grupo foi crescendo, tornou-se mítico para quem anda nos passeios domingueiros”, adianta.

“Quem anda nas provas, às vezes só vai por treino mesmo, porque é uma distância longa. Foi crescendo assim, através do amigo chama amigo. É muito engraçado”, afiança.

Polido diz que se, por um lado, entende a posição da Guarda, porque o passeio tem cada vez mais pessoas, por outro lado tem dificuldades em aceitá-lo.

“Não saímos todos à mesma hora. As pessoas vão partindo à hora que vão chegando a Tróia. Fazem algum barulho na zona de Tróia à saída”, ilustra.

O diretor da equipa de Paio Pires afirma que entre Tróia e Sagres decorre um convívio, não uma prova. “Faço-o alguns anos, nunca vi nenhum acidente com automobilistas. Já vi quedas por causa de buracos, mas nunca vi acidentes. Agora, passamos por dentro de Santiago do Cacém, é onde vemos o maior tráfego. Raramente vemos um carro no resto do caminho e é tudo muito partido, não são mil pessoas ao molhe”, descreve.

Polido garante que apesar dos avisos, só não irá se estiver doente. “O objetivo é chegar a Sagres com um sorriso, e o convívio entre as pessoas”, enaltece.

Sobre se receia ser alvo da GNR, diz que não. “Muitas vezes, vou para o trabalho de bicicleta, ando ao fim de semana também. Tento cumprir sempre com o código da estrada, não vejo como é que possa ser multado”, declara.

E o futuro?

A possibilidade de transformar esta tradição numa prova organizada é descartada por António Malvar. Não acredita que seja esse o futuro.

Isso, por si só, destruiria o espírito do evento. “No Tróia-Sagres jamais vão pagar algo ou fazer algo de forma organizada. O espírito é este. Talvez se deva a isto o sucesso do evento em termos de números. É diferente, anárquico. Isso cativou muita gente, cada pessoa que vai fica fã e quer voltar. Há pessoas que já fizeram 20 ou muitas vezes”, analisa.

A comunicação da GNR, segundo António, não está a resultar se o objetivo for desmobilizar as pessoas. Aliás, acredita que o efeito será o contrário.

“Não resultou, acho que teve o efeito contrário, pelo menos pelos comentários ao post que fiz. As reações foram esmagadoras, muita gente disse-me: "Eu estava a pensar ir, mas agora é que vou mesmo. Eles que me venham multar se quiserem". A reação parece a contrária, ficaram mais galvanizadas”, remata António Malvar.

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