Natação

Diogo Carvalho. "Dois ou três centésimos fazem a diferença entre ser um deus ou um banana"

14 dez, 2021 - 06:15 • João Carlos Malta

O nadador olímpico terminou a carreira em novembro, depois de mais de 20 anos ao mais alto nível. Duas medalhas em campeonatos da Europa são as joias da coroa de um percurso que ficará para a história.

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Diogo Carvalho, de 33 anos, deixou as piscinas nacionais e internacionais ao final de duas décadas de muitos títulos e recordes.

O atleta do Galitos de Aveiro e capitão da seleção nacional sente que não deixou nada por fazer. Em entrevista à Renascença, o nadador fala da saída (com direito a polémica), dos sacrifícios, e de um desporto que se decide, muitas vezes, pela ínfima parte de um segundo.

Em jeito de balanço, afirma que pensar em medalhas olímpicas nesta modalidade é um patamar para o qual os nadadores portugueses não estavam preparados e acredita que ainda não será a próxima geração a consegui-lo.

Para o futuro tem uma certeza, o cloro das piscinas continuará a fazer parte do dia-a-dia.

Duas medalhas de bronze em Europeus, três presenças em Jogos Olímpicos, 12 campeonatos do mundo (oito finais), 16 campeonatos da Europa (23 finais) e mais de 120 recordes nacionais, fazem de si uma das maiores referências de sempre da natação nacional. Ficou alguma coisa por fazer?

Eu dei tudo o que podia à modalidade, ao desporto nacional, ao meu clube, à minha cidade. Se ficou alguma coisa por fazer? Não sei, quero acreditar que fiz tudo o que estava ao meu alcance.

Como é que poderia ter sido ainda melhor?

Olhando em retrospetiva, se calhar havia muitas coisas que podia alterar. Agora é fácil de falar, mas, na altura, era difícil de concretizar. No entanto, não termos uma piscina de 50 metros na minha cidade, o que fez com que tivesse de me deslocar muitas vezes para fora, estando fora da minha família, do meu habitat natural, isso dificultou muito o percurso.

No entanto, acho que fomos bastante inteligentes a arranjar soluções.

Há ainda falta de infraestruturas para desenvolver a capacidade de alguns atletas?

Penso que não é falta de infraestruturas, a política de gestão das mesmas é que dificulta muito os processos de alto rendimento.

Prova que Diogo Carvalho venceu a medalha de bronze em Israel 2015.
Prova que Diogo Carvalho venceu a medalha de bronze em Israel 2015.

O que é que isso quer dizer?

Que por exemplo, as piscinas do Centro de Alto Rendimento, no [Estádio do] Jamor, que por vezes estão ocupadas com aulas para idosos, para crianças, não deveriam estar em horário "prime'" Deveria ser só para clubes. Isso dificulta muito o alto rendimento.

O ambiente da natação é relativamente diferente de outros desportos. Mesmo atletas de clubes rivais como Benfica, FC Porto e Sporting têm uma boa relação...

Não tem nada a ver com as outras modalidades. Ainda no outro dia estávamos nos campeonatos nacionais e eu estava a referir isso.

Estávamos na piscina de descontração, tínhamos as marquesas da fisioterapia e estava FC Porto, Sporting e o Benfica lado a lado. Eu estou fora desses clubes, mas estava junto deles porque tenho grandes amigos lá.

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"Dois ou três centésimos fazem a diferença entre ser um deus ou um banana"

Uma grande amiga nossa do Benfica estava na marquesa do FC Porto. Estávamos numa dinâmica que nada tem a ver com rivalidades de clubes. Simplesmente somos amigos e atletas.

Porque é que é diferente?

Não sei, não consigo responder. Sei que temos uma camaradagem muito grande na natação.

Quando é que soube que queria ser nadador de alta competição?
Quando era criança, fui para a natação através da minha educadora de infância porque o filho dela era treinador. O nosso grupo de pré-primária foi englobado nessa piscina, com esse treinador, e tive um grande à vontade e uma satisfação enorme de estar na água.

Mas os meus pais como desenvolvimento curricular, ou desenvolvimento das capacidades do filho, levaram-me a fazer vários desportos. Pratiquei natação, ténis, basquetebol, ténis de mesa, karaté. Uma diversidade de modalidades, mas a natação sempre foi o pilar fundamental.

Era melhor na natação do que nos outros desportos?

Sempre me senti mais à vontade na água e na natação do que noutros desportos. Obviamente que os desportos de equipa, socialmente até são mais agradáveis, mas a natação era aquele em que me sentia feliz, e os meus pais viram isso.

Para muitos é considerado um desporto muito monótono. Há quem ilustre com a imagem do "ir contar azulejos". Porque é que para si não é assim?

Não, para mim também é assim (risos). A realidade é esta, de um lado para o outro, de um lado para o outro, de um lado para o outro com a cabeça enfiada dentro de água, a contar azulejos. Isso não há volta a dar, porque a natação é efetivamente assim.

Sucessores? "Temos o júnior Diogo Ribeiro que é um fenómeno. É simplesmente um fenómeno."

Nós é que temos de ver coisas diferentes. Neste momento estou há uns dias fora da natação, mas o facto de me sentir feliz torna esta monotonia mais fácil.

Há uns tempos, numa conversa, uma pessoa ligada à natação dizia-me que é cada vez mais difícil ter jovens a entrar na alta competição. Sente isso?

É um facto que a natação é uma modalidade não muito apelativa, mas penso que temos cada vez mais atletas a praticar natação, não só na alta competição, mas também na vertente lúdica.

As grandes dificuldades da natação para atrair jovens são os horários de treino que são difíceis. Um miúdo de 16 anos que já está na natação e que a quer levar a sério tem de fazer bidiários.

Isso implica treinar às 6h00 e depois ir para as aulas, e quando se sai da escola voltar a treinar. Esta dinâmica diária é desgastante e é muito difícil. Tem de se querer muito.

E ter uma família que o permita.

Exatamente. Eu tive a sorte de ter uns pais que me apoiaram. A minha mãe levantava-se às 5h45 para me dar o pequeno almoço e ia-se deitar.

Eu ficava a comer na cama mais um bocadinho e o meu pai levantava-se para me levar à piscina Ficava duas horas no carro à minha espera para me levar à [escola] secundária. Esta dinâmica era fundamental para se obterem bons resultados.

Para chegar ao nível que alcançou, qual o volume de treino de que estamos a falar por semana?

Cheguei a fazer 98 quilómetros por semana na água, mais três sessões de ginásio. Dá 20 e muitas horas de treino semanais.

Isto é como se fosse um trabalho, é efetivamente um trabalho. As horas de descanso, mais as horas de alimentação, mais as horas de treino dá uma semana de trabalho.

A natação era para si um trabalho?

Sempre vi a natação como uma profissão para mim, apesar de não ser altamente lucrativa em termos económicos. A natação é uma modalidade amadora, comparativamente com outras modalidades. Mas a minha profissão sempre foi ser nadador.

Ficou na memória de muita gente na altura dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, a revelação feita por Michael Phelps de que ingeria 10 mil calorias por dia. E o Diogo, qual era a alimentação que fazia?

Eu não sou o melhor exemplo, mas nós não contávamos calorias, nem comida. Simplesmente comíamos.

Íamos gastar tudo o que comíamos. Não me preocupava com a quantidade de comida e o que é que comia. Mas tinha a noção de que não podíamos comer “junk food”.

Mas o que comia a seguir a um treino?

Um prato de sopa, 250 gramas de massa e três bifes de frango.

Durante estes 20 anos em que nadou ao mais alto nível teve de suportar este volume de treino e uma grande dedicação à modalidade. Como é que um jovem compatibiliza o rendimento desportivo de topo e uma vida social equilibrada? Isso é possível?

Costuma-se dizer que quem corre por gosto não cansa. É difícil, olhando para trás deixei muitas coisas de lado. Nunca fui a uma viagem de finalistas, nunca estive numa Queima das Fitas, ou numa Latada, mas são as opções que eu tomei.

Não vejo como abdicar, mas como tomar outras opções que me deram muita felicidade. Não perdi, só tomei outras opções.

Alguma vez pensou em desistir?

(risos) Quase todos os dias. (risos) Estou a brincar, mas quando as coisas não correm bem, obviamente que nos questionamos se vale a pena continuar, ou o que aquilo nos trará de bom ou de melhor.

Mas são questões momentâneas. Nunca pensei em desistir. Agora, quando chegamos exaustos a casa, vamos estar a pensar: "Para que é que suporto isto?" "Para que é que estou a fazer isto?"

Isto é o desporto e todos os atletas passam pelo mesmo, na exaustão e nos momentos muito difíceis questionarem-se se vale a pena.

É um desporto ingrato, porque a luta é por décimas ou centésimas.

Centésimos. Dois ou três centésimos fazem a diferença entre seres um deus ou seres um banana. As medalhas trazem mediatismo, trazem um valor que é motivador, e se calhar um quarto lugar já não.

A diferença entre um terceiro e um quarto lugar é, às vezes, meros centésimos. Isso treina-se? Treina-se. Mas se se chega e se consegue controlar? Não consegue.

Um atleta de alto rendimento está muito focado naquilo que é o resultado, no ganhar, mas a dimensão psicológica nem sempre é acautelada. Porque é que acha que alguns ícones da natação mundial, como o Ian Thorpe e o Michael Phelps, se debateram com problemas ligados à depressão e a tentativas de suicídio. O Ryan Lotche, outro exemplo, reconheceu ter problemas de abuso de álcool. Isto tem a ver com estes indivíduos em concreto ou a forma como o desporto de alta competição cria estes superatletas?

Penso que é um pouco dos dois. Primeiro, tem de se ter uma predisposição, não diria que genética, mas pessoal para que ocorra esse tipo de comportamentos.

A natação é uma modalidade individual, onde nós nos pomos e expomos de uma maneira que é muito pressionada.

"Nunca fui a uma viagem de finalistas, nunca estive numa Queima das Fitas, ou numa Latada, mas são as opções que eu tomei. Não vejo como abdicar, mas como tomar outras opções que me deram muita felicidade. Não perdi, só tomei outras opções."

Treinamos para um resultado e as expetativas que nos colocam para obter um resultado... O Phelps conquistou as oito medalhas de ouro, que é simplesmente absurdo no panorama atual da modalidade. E o que se questionou foi: o que é que há mais? Se conquistou medalhas de ouro, é recordista. Acho que foi por aí que teve mais dificuldade em conciliar as duas coisas.

No nosso caso, é mais a pressão do treino/resultado. É nessa vertente que a natação é bastante ingrata. Por vezes, centésimos fazem a diferença de ser uma pessoa muito bem-sucedida e outra não bem-sucedida. E essa pressão é que pode levar a comportamentos de desvio.

Alguma vez teve uma depressão relacionada com o desporto?

(pausa) Que eu me lembre não. As coisas não são branco e preto, às vezes são meio cinzentas.

Por vezes, as coisas não estão sempre bem. Mas isso faz parte da vida. E superar essas dificuldades também faz parte da vida. Felizmente, tenho uma estrutura familiar e de clube que permite estar mais à vontade.

Sentiu alguma vez que foi essa dimensão a ser determinante para ganhar uma prova, ou acha que é sempre o treino a definir quem está melhor e pior?

Claro que há atletas que são muito bons a treinar e não são bons a competir. Mas isso já faz parte de cada um.

No meu caso, sempre fui muito bom a treinar e relativamente bom a competir. Se podia ser melhor se fosse acompanhado? Eu nunca senti uma fragilidade.

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"Cheguei a fazer 98 quilómetros por semana na água, mais três sessões de ginásio. Dá 20 e muitas horas de treino semanais. Isto é como se fosse um trabalho, é efetivamente um trabalho"

Trabalhei com o doutor Jorge Silvério um ano e tal e foi bastante positivo, mas eu senti que não estava de acordo com o que pensava. Não senti que fosse uma mais-valia, mas sei, neste momento, que é uma mais-valia. Foi útil, mas não foi determinante.

O desporto nacional, ao nível de modalidades individuais, já produziu campeões olímpicos e medalhados olímpicos. O que falta a natação nacional para chegar a esse patamar?

(risos) Toda a gente questiona isso, mas não existe um fator. Não existe uma coisa, existem muitas.

Primeiro, a natação é uma modalidade extremamente desenvolvida a nível internacional. É uma das modalidades fundadoras dos Jogos Olímpicos, não é uma modalidade recente.

Segundo, a natação não é profissional em Portugal. Ninguém pode deixar o resto para se dedicar só à natação, porque futuramente não chega.

Terceiro, a compatibilização da natação com a escola não é a melhor. Ao contrário dos EUA em que a faculdade se molda em torno do treino e não o contrário.

A natação tem menos atletas do que o atletismo e futebol.

Mas quando olhamos para o judo, para o triplo salto, a canoagem, são tão diferentes as condições que estes atletas têm com as que os nadadores usufruem?

(pausa) Não sei responder. Mas a quantidade de pessoas que compete na canoagem e no judo será um pouco diferente da quantidade de pessoas que compete na natação.

Nós disputamos centésimos. Ficar em terceiro ou em quarto são centésimos. Não estou a dizer que é uma modalidade mais difícil do que as outras, estou a dizer que é mais competitiva.

Vai continuar a nadar ou vai tirar umas férias do cloro das piscinas?

Ainda tenho os campeonatos nacionais universitários. Estou retirado do alto rendimento a título individual e de seleção, mas continuo a nadar porque tenho provas.

Depois logo se vê. Mas vou continuar ligado à modalidade. Se estive 30 anos ligado, não fazia sentido…

Como treinador?

Não sei bem, tenho curso de treinador, estou a licenciar-me me Ciências do Desporto. Vou continuar a ser nadador, nem que seja como master mais tarde.

Mas como treinador, elemento de uma direção, queria ficar ligado à modalidade, porque com a experiência que tive ao longo dos anos queria contribuir para melhorar a modalidade.

Apesar de ser reconhecido como uma das figuras maiores da natação nacional, a despedida ficou envolta em polémica. Não foi ao Campeonato da Europa e não aceitou as justificações do presidente da Federação para não participar, e ele respondeu que não ira alimentar polémicas nas redes sociais. Saiu magoado?

Não, não ia sair magoado só porque sinto que fui injustiçado em apenas uma prova. No entanto, é de questionar…

Queria fechar a carreira de outra forma?

Eu ia encerrar aqui em Portugal, nos campeonatos nacionais porque queria que os meus pais estivessem presentes, mas tinha condições de representar a seleção mais uma vez e num Campeonato da Europa em que fui muito feliz. Não percebi, nem ninguém percebeu essa questão.

A natação nacional tem sucessores à altura do Diogo? Quem é que vê com maior potencial?

Temos muitos, bastantes. Temos o Gabriel Lopes com menos 10 anos do que eu, que é um excelente atleta. Temos o José Paulo Lopes do Braga, que é um miúdo cheio de potencial. E temos o júnior Diogo Ribeiro que é um fenómeno. É simplesmente um fenómeno.

Temos também o Miguel Nascimento, o Alexis Santos. A natação está muito bem entregue a nível masculino e até feminino.

Algum deles com potencial para chegar à medalha olímpica?

Penso que a medalha olímpica é aspirar um bocadinho alto para a nossa realidade. Mas finalista olímpico estará ao alcance de qualquer um deles.

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