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Desporto

"É muito mais difícil do que pensava": o VAR foi à escola humanizar o árbitro

02 out, 2024 - 10:20 • Hugo Tavares da Silva

Era penálti? E a cor do cartão? Era falta? A APAF, com o mote de aproximar o árbitro da comunidade e cutucar algum bichinho interior, foi à Escola Secundária Seomara da Costa Primo, na Amadora, desafiar os alunos.

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Alheada de conversas e de esperas e de silêncios que podiam esmurrar a manhã cinzenta, uma rapariga exibia mansamente alguns gestos de dança. De olhos fechados e com os auscultadores nos ouvidos, a música rasga a película invisível que lhe permite a entrada noutra dimensão.

Enquanto os elementos da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF) montavam o estaminé que visava tornar mais humanos os humanos, duas turmas de desporto da Escola Secundária Seomara da Costa Primo, na Amadora, aguardavam com a paciência que se mistura com desinteresse. Falava-se de tudo, menos de futebol. Uma aluna contava como perdeu uma unha, depois de questionada por alguns rapazes. É sonâmbula, explicou. “Aquele ‘tá a comer batatas a esta hora”, disse outra, homenageando as mães.

A rapariga que ouvia música já estava camuflada. Ou esfumara-se.

A carrinha “Arbitragem na escola”, um projeto apresentado em meados de setembro na sede do Sindicato dos Jogadores, vai visitar escolas pelo país fora (continente e ilhas) com o objetivo de humanizar o árbitro e também de atiçar o bichinho que algum rapaz ou alguma rapariga tenha adormecido. Esta ação na Amadora, em Lisboa, no primeiro dia de outubro, é a primeira de todas.

Dentro da carrinha, há dois ecrãs com várias imagens de jogos de futebol e futsal e cabe aos alunos, normalmente em par, tentar resolver o problema, fazendo de VAR portanto, mexendo na fita do tempo e escolhendo o momento idóneo. Noutra área, os alunos podem colocar uns óculos 3D que lhes oferecem cinco áreas: apito inicial, receção de delegados, saída para jogo, inspeção de terreno e ‘escape the room’. Ou seja, são jogos mais lúdicos para um primeiro contacto com a atividade. Depois, sim, até na formação dos árbitros, há e estão em desenvolvimento outros módulos, com situações reais e mais complexas.

“Pode ser vermelho!”, “eu acho que é falta”, “para onde vai a bola?”, “estava isolado?”, estas são frases que se vão repetir ao longo da manhã nesta escola, naqueles metros quadrados. Também se ouviu um “esse árbitro ‘tá a viajar na maionese”, é certo. Ao mesmo tempo, vão decorrendo aulas de Educação Física no campo ali ao lado.

“O que faz a diferença no VAR é irmos buscar o frame certo. Estão a ver?”, pergunta o pedagógico e paciente Joel Amado, ex-árbitro, observador, formador da UEFA e coordenador da Academia APAF. A certa altura, para criar um rebuliço nas entranhas dos miúdos, chegou a perguntar a um de que clube era, pois pareceu-lhe estar sugestionado. No fundo, a ideia era esfarelar as críticas do dia a dia, demonstrando que nos entregamos às cores dos amores.

“Pareceu-me bastante interessante”, diz o mui adulto Rúben Jacinto, profundamente enamorado pelo que faz Nani num relvado a menos de três quilómetros daqui. “É uma coisa que não tem nada a ver visto de fora. Nota-se que há estudo, tem de se ter bom olho. É muito mais difícil do que pensava”, confessa, admitindo depois que ganhou mais respeito pelos árbitros.

Este rapaz vestido de negro, de 18 anos, explica que não pode jogar a sério porque é explosivo. Mas quer ser treinador (já o é, nas escolinhas do Estrela) ou árbitro. Mas porquê ser árbitro? Rúben gosta do respeito que se impõe, mas há uma reflexão que pertence a um lugar mais alto: “Quero a parte do jogador sem estar na pele do jogador, quero a sensação mas de forma externa”.

Durante a conversa ouve-se um berro vigoroso: “Vermelho por simulação!”. Tanto Joel Amado como José Borges, vice-presidente da APAF, já começaram a distribuir cartões, não da forma tradicional. A rapaziada entra em modo galhofa e começa a espetar no rosto dos outros os cartões vermelhos. "Nós tambem fomos árbitros", desabafa Borges. "O árbitro pode ser uma pessoa qualquer, o condutor do autocarro que traz estes alunos para a escola, pode ser o padeiro onde vão buscar o pão, pode ser a professora, pode ser o policia à entrada da escola...", enumera, num tom quase paternal.

“O primeiro impacto é muito positivo”, diz Joel Amado, que vê na arbitragem uma escola para a vida. “Os miúdos são muito ávidos de informação rápida, de novas tecnologias. Esta experiência na carrinha serve para recriar o que se passa na Cidade do Futebol, na sala VAR. (...) É importante perceberem que aqui, sentados, sem stress, sem 30 ou 40 mil pessoas a gritar, sem a pressão dos bancos, não conseguem ter a perceção do lance.” Depois dos vídeos, surge um slide com a resposta e a explicação.

A canalha vai vendo isto como um desafio, não fosse esta gente muitíssimo competitiva. Um rapaz de 12 anos surge ali a dizer que tinha o sonho de ser árbitro mas que já não é assim. Não se ficou a perceber bem o que mudou, chega a ser invejável imaginar o mundo de possibilidades que aloja no pensamento. Intrigava-o naquele momento como é que os árbitros escreviam nos cartões os nomes dos jogadores sancionados.

Ivo gosta de futebol, mas não joga. Xavier é defesa numa equipa de Santarém. Os dois amigos visitaram a carrinha da APAF e saíram de lá com a noção de que a vida é bem mais complicada do que parece para aqueles senhores do apito. Ivo identifica que o clubismo atenta contra análises. Xavier enche-se de empatia e explica que, dependendo do ângulo, se veem coisas diferentes. O VAR melhorou o futebol, garante. É questionado se nos seus jogos se porta bem. O sorriso torce-lhe a alma.

“Como sou defesa, não me porto muito bem”, assume. E riem-se os dois. “Às vezes bato um pouco [no avançado]”, concede. E com os árbitros, que tal? “Não sou muito de me queixar. Só me queixo quando sei que não fiz nada, quando sei que fiz não faço nada.” Apetecia dizer-lhe “olha, obrigado”. A certa altura um deles comenta algo interessante: “As pessoas preferem culpar o árbitro das decisões do que aceitar o jogo. É impossível mudar o ambiente, só depende dos adeptos, de quem vê o jogo, e ser-se menos agressivo.”

A agressividade é um tema importante. Em 2022/23, por exemplo, foram registadas 37 agressões a árbitros. Na época seguinte foram 18. E isto sem falar do insulto e do incitamento ao ódio, formas de estar que pululam nas redes sociais. Segundo dados da APAF, 700 árbitros abandonam a atividade por ano, por razões várias. O outro lado, permitindo um saldo positivo, também existe: entram 800 por ano. Os distritais de futebol vão arrancar com 4.500 árbitros disponíveis.

“O objetivo desta ação não é apenas o recrutamento. Não é onde temos a maior dificuldade, o problema é a retenção”, explica Luciano Gonçalves, presidente da APAF. Depois, há a outra camada desta história: “Queríamos sair da bolha em que vivemos e abrirmo-nos à comunidade, aos adeptos, às pessoas, para que a arbitragem seja vista como parte integrante do jogo. Nada como começar na escola. É o passo principal na humanização da figura do árbitro, para perceberem que o erro faz parte, para perceberem a dificuldade, até para irem depois conversar uns com os outros e terem opiniões distintas”.

Os fregueses vêm e vão. “Isto é de mestres, só errámos uma”, lá saíram da carrinha mais uns com a barriga cheia. Outro aluno pergunta a Joel Amado se há formação exclusiva para VAR. A resposta é negativa, os convites podem surgir quando o árbitro alcança o nível da Liga 3.

Um professor, com os calções do Sporting e uma oratória que não afasta ninguém, explicava a uma turma o valor da arbitragem, tocou na ética e até mencionou remunerações, pois para alguns já pode ser olhado como uma carreira, ainda que a profissionalização esteja por acontecer. Nota-se perfeitamente quando um professor é respeitado. Ou um treinador. Já dizia Julio Velasco, o mago do voleibol: não interessa o que se sabe, mas o que chega aos outros.

O segundo capítulo desta campanha da ‘Carrinha Arbitragem na Escola” vai acontecer na quinta-feira, a 3 de outubro, na Escola Secundária Viriato, na Estrada Velha de Abraveses, em Viseu, das 10h30 às 16h00.

A chuva miudinha executou, em momentos diferentes, o que planeara há muito o céu cinzento. Quantos terão saído daqui com a vontade de serem árbitros? Mais importante, a quantos amoleceu a carapaça e o verbo na hora de ver um jogo e criticar uma decisão? Quantos se deram conta de que não sabem assim tão bem as regras? Nunca saberemos, mas qualquer pequena vitória é uma vitória.

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