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Paços de Ferreira

Jorge Simão: "É utópico pensar replicar o quinto lugar da época passada"

13 out, 2021 - 10:20 • Eduardo Soares da Silva

O treinador voltou à casa de partida depois de experiências na Arábia Saudita e Bélgica. Em entrevista à Renascença, Jorge Simão explica o regresso à Mata Real, recorda a vitória histórica frente ao Tottenham e aborda a "pancada" no Sporting de Braga. "Tive pouca flexibilidade nas relações humanas para gerir um clube daquela dimensão", reconhece.

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Jorge Simão voltou esta temporada a Portugal para treinar o Paços de Ferreira, um dos pontos de partida da sua carreira na I Liga.

O treinador de 45 anos recebeu a Renascença na Mata Real, casa da equipa sensação da temporada passada. Jorge Simão sucedeu a Pepa no comando técnico, que ficou em quinto lugar. Repetir a prestação é "utópico" e o objetivo passa por fazer um campeonato tranquilo. O Paços está no 11º lugar da tabela, com nove pontos somados.

Jorge Simão estreou-se nas provas europeias na Liga Conferência e venceu o Tottenham, em casa, por 1-0, um jogo que considera que ficará marcado para sempre na história do Paços de Ferreira.

Depois de dez anos como adjunto, tendo percorrido praticamente todas as divisões do futebol português, Jorge Simão subiu da terceira divisão até ao Sporting de Braga em menos de dois anos, experiência que não correu bem.

Agora, Jorge Simão reconhece que o passo de Chaves para Braga foi maior do que a perna e ainda não estava preparado para orientar um clube dessa dimensão.

A "pancada" em Braga trouxe mudança de "chip" e de estilo de jogo para Jorge Simão, que ainda orientou ainda o Boavista antes de emigrar.

Passou pelo Al-Fahya, na Arábia Saudita, e pelo Mouscron, da Bélgica, a convite de Luís Campos, que deixou o projeto dias depois de contratar o treinador português.

Voltou ao Paços de Ferreira esta temporada. Como é que surge este convite para regressar à Mata Real?

É uma história curiosa, lembro-me do momento exato em que recebo o telefonema do presidente. Disse-me que fez a chamada dez minutos depois de acertar a saída do Pepa. Eu estava ainda equipado com as roupas do Mouscron no relvado e tivemos essa primeira conversa.

Confesso que foi uma abordagem tão aliciante e capaz de me mobilizar que fiquei logo com o sentimento que seria uma belíssima hipótese de voltar a Portugal e a um clube onde passei bons momentos. Seria uma ideia interessante dar continuidade ao que foi feito na época passada, porque seria muito difícil replicar o feito, mas evitar andar nos altos e baixos. É isso que queremos esta época.

Esteve duas épocas no estrangeiro e admitiu que teve vários convites para voltar nesse período. Era o projeto certo para regressar?

É um clube peculiar pelo facto de ser muito estável e muito organizado. Desde 2015/16, as caras continuam: tem um lote de profissionais reduzido, mas muito competentes nas suas áreas. Dá-nos todas as condições e temos a bancada nova. É um clube que paulatinamente foi crescendo em infraestruturas.

Em clubes da dimensão do Paços de Ferreira, a seguir a uma grande época normalmente sucede-se uma de grandes dificuldades. O desafio lançado foi esse, que não seja uma época em baixo. É utópico pensar replicar o quinto lugar do ano passado. Nada nos impede de lutar para o poder alcançar, mas evitar o baixo. Acho que esse é o grande desafio do Paços neste momento, um clube que marca a diferença para melhor em Portugal.

É um desafio difícil substituir um treinador que alcançou grande sucesso na temporada anterior?

É sempre mais fácil entrar num clube onde não houve grande sucesso, porque as expectativas não são tão altas. Qualquer coisa que se faça de melhor fica no agrado de todos. Tivemos o primeiro grande desafio das competições europeias. Não sendo novo para o Paços, o desafio seria ter a campanha europeia sem que tivesse um impacto negativo no campeonato. Todos se lembram o que aconteceu na última participação europeia do Paços.

Nestes dois anos no estrangeiro tive de jogar sequências de jogos muito grandes. No Mouscron fizemos dez jogos num mês. Isso foi exigente para a equipa técnica e preparamo-nos para esta etapa. É diferente do que estamos habituados e dotou-me de alguma confiança para este desafio. Senti-me mais seguro, porque já tinha vivido essa experiência.

Foi desafiante, a campanha europeia foi prestigiante para jogadores, treinadores, clube e para o futebol português, porque conseguimos duas vitórias nas competições nas competições europeias, quando o Paços só tinha uma em toda a sua história.

Tivemos uma vitória que acho que foi marcante frente ao Tottenham, apesar de termos sido eliminados. Não foi desprestigiante, mesmo não sendo o "jackpot". No campeonato fomos somando os nossos pontos, que nos colocam no meio da tabela neste momento. Sem as competições europeias, agora o caminho é o campeonato para somarmos os nossos pontos e fazermos a nossa campanha de forma suave, procurando uma época de sucesso.

Falou da Liga Conferência. Foi a sua estreia nas competições europeias. Foi especial para si aquele primeiro jogo contra o Larne, com uma vitória por 4-0 e com os adeptos de regresso à Mata Real pela primeira vez?

Foi especial, foi o nosso primeiro jogo oficial depois da Taça da Liga. Com público e com o resultado que fizemos, foi especial. Lembro-me que estava ansioso para esse jogo. Poderíamos achar que era um adversário de menor valia, mas tinham eliminado uma equipa de renome na Dinamarca e eu estava um pouco ansioso. Não só o resultado, mas a exibição também foi muito boa. Foi uma vitória por 4-0 que não pode ser desvalorizada.

Qual foi a reação quando saiu o Tottenham no sorteio do "play-off"? Entusiasmo por defrontar um dos maiores clubes europeus ou frustração por ter sido o adversário mais complicado?

A reação foi que não iria ser fácil chegar à fase de grupos. Seria legítimo pensar que com um sorteio mais fácil, poderíamos ter ido à fase de grupos.

Calhando o Tottenham no sorteio, as nossas probabilidades diminuíram muito. No jogo da primeira mão acho que até poderíamos ter feito o 2-0, com um livre direto do Antunes no fim do jogo que teria sido o segundo e não seria injusto. Com 2-0, as coisas poderiam ter sido diferentes fora.

Foi uma noite especial para o clube essa vitória frente ao Tottenham? Mesmo com uma grande rotação nos ingleses?

Todos sentiram isso. Podem pegar no argumento que o Tottenham não veio com as principais figuras, mas tinha outros grandes jogadores. Um jogador que tenha jogado aqui deverá pagar o orçamento do Paços durante vários anos. É incomparável. Por isso, acho que é irresponsável tirarem-nos o mérito dessa vitória. É algo que fica, está marcado na história do Paços e ninguém pode tirar isso a estes jogadores.

No fim desse jogo tinha disse que não existia mais responsabilidade de passar, mas em Londres mudou a tática, com cinco defesas e o Rui Pires ao lado do Eustáquio. A ideia foi tentar segurar a vantagem?

É preciso contextualizar o jogo. O campeonato já decorria e tínhamos jogo em Portimão três dias depois. A questão era ponderar qual era a prioridade: arriscar em não ir com tudo para disputar o jogo em Portimão ou colocar tudo em jogo em Londres.

A decisão de jogar com três centrais foi porque queríamos proteger a largura do campo, que era mais difícil de o fazer contra o Tottenham num estádio daqueles. Depois, teve a ver com a gestão dos jogadores. Tínhamos pequenos toques aqui e ali e teve muito a ver com isso.

O Antunes estava a chegar de um período em que tinha jogado muito pouco no Sporting. Para gestão dele e para não o expor, jogando com linha de cinco, protegíamos mais os laterais. Não descuramos a possibilidade de jogar em Portimão com toda a força e defender melhor em casa do Tottenham.

O treinador do Tottenham era o Nuno Espírito Santo. Chegou a trocar ideias com ele sobre a eliminatória?

Cruzámo-nos antes do jogo, trocamos palavras rápidas de circunstância, porque estamos os dois naquela ansiedade do jogo, mas não tive essa possibilidade. Espero poder a vir a tê-la para conversarmos sobre a eliminatória.

Acha que o Tottenham subestimou o Paços com a rotação total que fez para o jogo a primeira mão?

Eu não tenho por hábito comentar o que o treinador adversário faz. Acho que na segunda mão estiveram muito mais predispostos para a luta que teriam pela frente. Qualquer deslize que pudessem cometer tornaria tudo mais difícil e até tivemos um canto do Rui Pires que poderia ter dado golo.

E ainda houve o regresso do Harry Kane, que marcou dois golos e foi decisivo. Se tivesse regressado dois ou três dias mais tarde poderia ter tornado mais fácil. Digo isto em tom de brincadeira, mas foi a realidade do jogo. Foi assim que as coisas aconteceram.

O Kane jogar de início acaba por ser um elogio para o trabalho que o Paços fez? É considerado um dos melhores pontas de lança do mundo e teve de ser lançado para decidir a eliminatória.

Acredito que sim. O que estava em causa para ele não jogar foi resolvido nessa altura, era uma questão de tempo até ele poder voltar. Coincidiu com o nosso jogo.

Olhando para o campeonato, o Paços tem oscilado nos resultados. Está satisfeito com o que a equipa tem produzido?

Estou extremamente satisfeito com o potencial que esta equipa tem para jogar um jogo de grande qualidade. Já fizemos exibições consistentes e que me deixam orgulhoso da qualidade do nosso jogo.

Noutros jogos, o resultado não foi positivo, não vencemos, mas com períodos aliciantes. Enquanto treinador, deixa-me agradado. O nosso jogo com o Larne, com o Tottenham, Famalicão, com o Vizela depois da expulsão à custa de outros atributos, e também com o Boavista e Belenenses SAD, até sofrermos o primeiro golo.

É um jogo empolgante, dominador e a criar oportunidades de finalização de forma consecutiva. Sofremos dois golos do Belenenses SAD e a imagem que fica é que não conseguimos ter uma exibição de qualidade. Mas nos primeiros 60 minutos foi de grande capacidade coletiva, ligação entre setores e criação de oportunidades.

Temos potencial e mostramos isso em vários momentos. Também outros jogos em que nos sentimos orgulhosos com a competitividade extrema para ganhar pontos. O campeonato não é só feito de grandes exibições. É preciso capacidade de superação. De uma forma global, temos dois pontos que deixamos fugir com o Belenenses SAD e estaríamos numa situação perfeita, que seria o sétimo lugar. Estamos com nove pontos, no meio de um lote de equipas. Estamos aí para a luta.

Está numa série de jogos sem vencer e nos últimos três começou a ganhar: Boavista, Belenenses SAD e FC Porto. Há alguma explicação, preocupa-o este registo?

É preciso olhar para esse facto e desmontar a situação. O jogo com o Boavista é fantástico, uma primeira parte do melhor que já vi fazermos. A segunda parte sem consistência, mas sofremos dois golos contra a corrente do jogo, o mesmo com a Belenenses SAD. Não é preciso fazer disto um padrão comportamental ou encontrar razões objetivos para que isto tenha acontecido.

Um golo faz com que toda a abordagem e análise feita ao jogo mude. Vivemos numa era do "resultadismo", mas uma das reflexões que tenho feito e mudado o meu rumo tem a ver com o que nos leva a atingir um resultado. Fizemos coisas muito boas, mesmo que nos tenhamos deixado empatar. É nessas coisas que nos agarramos. É preciso ser consistente para associar isto a resultados. Era um jogo que deveríamos ter fechado por 2-0. Ponto.

Seguiu-se a visita ao Dragão, admitiu que não gostou da prestação da equipa. Teve uma estratégia diferente?

Não, mas apanhámos o Porto num momento mau para nós.

De orgulho ferido depois da derrota com o Liverpool?

Como é óbvio. Fizeram-me essa pergunta na antevisão e eu não conseguia responder porque não sabia, não iria adivinhar. Mas tomou esse lado. Percebi isso, porque mesmo a vencer 1-0 que estava a ser muito difícil conseguir jogar o que sabemos. Não só por demérito nosso, mas pelo mérito que o Porto teve. Sentia que estavam com uma abordagem de extrema competitividade.

Mesmo que tivesse ido para o intervalo a vencer por 1-0, não estaria contente. Não conseguimos ter a bola e consistência no jogo ofensivo. Foi um momento difícil para nós para apanhar o Porto. Quando sofremos o 2-1, o jogo volta a mudar passou para a tendência que achei que poderíamos ter desde o início. Chegamos à baliza mais vezes, com mais perigo. Ainda metemos uma bola no poste e mais um lance nos descontos com o Baixinho.

O Paços tem surpreendido com as bolas paradas esta época. Marcou um golo ao Belenenses SAD num livre combinado. Contra o Porto, num canto curto com três homens junto à bandeirola enviou uma bola ao poste. É um aspeto que tem trabalhado em particular?

Podia pôr-me aqui em bicos de pés, mas não é nada disso. É a qualidade dos jogadores e a crença que aquilo pode resultar. Inventar números e desenhos de bolas paradas qualquer treinador, até o aspirante a treinador, consegue. A questão é mobilizar os jogadores para acreditarem que isto resulta e que podemos ferir os adversários assim. É mérito dos jogadores.

Acredita que o campeonato está equilibrado esta época?

Acho que a situação do "play-off" e de haver a possibilidade de serem três equipas a descer não é leviana. Há muitos clubes que começam a pensar nessa questão muito cedo. Podem ser três equipas a descer, como no ano passado. Com tantos empates que têm acontecido, faz-nos pensar que está muito difícil ganhar um jogo.

Nenhuma equipa desiste. Estamos numa fase em que nenhuma equipa quebrou ainda, estão todas as equipas muito vivas, toda a gente muito aguerrida na luta pelos pontos. Isso faz com que a qualidade do jogo possa descer, mas a competitividade aumente. As duas não estão necessariamente ligadas e acho que podemos aumentar as duas.

Outra questão é que é preciso as estruturas sentirem-se estáveis. Se o resultado não for positivo, é preciso estabilidade para perceber o que temos em mãos, o que estamos a fazer e não começar logo a sentir em brasas e pressão de todos os lados e a fazer o jogo que é influenciado por fatores externos. Acho que é este o segredo do campeonato para as equipas que não lutam pelo título: sermos estáveis e não sentir logo a abanar e hesitar perante as nossas decisões.

A verdade é que este ano ainda não houve qualquer despedimento, apenas a saída de Daniel Ramos por opção própria do Santa Clara. É um bom sinal?

É uma realidade e acho que é positivo. Mas é preciso perceber porquê que ainda não aconteceu e se a razão é porque as estruturas estão a perceber a importância da estabilidade. Se for esse o motivo, é meritório.

Há uma reflexão interessante que tenho feito, que tem a ver com os clubes que mais tempo seguram o treinador são as que normalmente lutam pelo título. O Sérgio Conceição está na quinta época, que outro treinador conseguiria estar cinco anos à frente de uma equipa? Tivemos o Rui Vitória no Benfica, o Jesus também tinha estado antes. No Sporting, o Rúben Amorim está no segundo ano.

Nesses clubes, a pressão mediática e dos adeptos é maior. Ainda assim, são os clubes que conseguem ter maior capacidade de segurar os treinadores. Resigno-me a esse facto, é esse o futebol, mas é preciso encontrar um contexto diferente.

Acho que estou nesse contexto, preciso de dar uma palavra de apreço ao presidente do Paços. Aqui posso ter estabilidade nos momentos mais difíceis para seguir o caminho que quero traçar. As direções também têm de estar fortes, porque se as pessoas que gerem os clubes não estiverem numa posição forte, não dão força às equipas técnicas.

Olhando já para janeiro, está satisfeito com o plantel que tem? Dá-lhes as garantias para jogar o futebol que quer?

Que treinador seria se dissesse que não estou satisfeito com os jogadores que trabalham comigo? Teria de renunciar ao cargo [risos].

Estou satisfeito, se acho que podemos melhorar? Podemos seguramente e tenho espaço para isso. Tenho jogadores em que deposito uma expectativa muito grande e espero ter um contributo nas suas carreiras que os possa ajudar a dar um salto para um patamar superior.

Aqui ou ali, eu próprio tenho de me adaptar aos jogadores que tenho. Há um lote de jogadores estável que continua do ano passado e que me dão estabilidade que não há abanões e inseguranças. Ainda assim, é importante estarmos atentos ao mercado, porque podemos perder jogadores e outros bons jogadores podem surgir disponíveis.

Falou das saídas e o nome mais falado no verão foi o de Eustáquio. Ficou satisfeito com a sua continuidade e qual é a sua importância neste grupo?

Fiquei muito satisfeito, houve essa situação e a do Douglas Tanque. Esteve sempre em cima da mesa. Quando estamos no recrutamento do plantel, a situação do Tanque estaria quase fechada que seria para sair. Foi ficando, pensei que podia ficar connosco. Acabou por acontecer já depois do mercado europeu fechar.

O Stephen acabou por não acontecer e fico feliz porque é um bom jogador e tem a sua posição marcada no futebol português. Pode chegar a um patamar diferente, também acho que temos outros que podem ser alvo desse salto na carreira.

Está a passar pela situação que é normal dos internacionais, com o fator acrescido de horas de voos e mudanças nos fusos horários. Joga de madrugada. Quase ainda não parou e só teve dez dias de paragem entre uma época e a outra. Tem sido heróico, mas isto acarreta consequências para ele.

Outra contratação importante no clube foi a de Antunes, um campeão nacional que regressou para uma terceira passagem pelo clube. O que veio acrescentar?

Não conhecia o Antunes, apenas o trajeto dele. Vou contar esta história. Quando o presidente me apresentou o Antunes, disse que era o único jogador da história do Paços que já tinha sido vendido duas vezes, mas que ainda esperava vender uma terceira [risos].

Liguei ao Antunes num domingo e ele estava em estágio com o Sporting no Algarve. As coisas poderiam ser todas tratadas na segunda-feira e ele poderia viajar nesse dia para cima, mas só veio quarta porque o Sporting quis fazer com ele uma homenagem dentro do grupo de trabalho, que foi pública.

O simples facto de o Sporting querer fazer esta homenagem a um jogador que não teve muitos minutos, o facto de merecer este reconhecimento antes de o deixar sair revela o que é o Antunes. Como jogador já o conhecemos. Podia haver a questão se ainda tinha capacidade para jogar 90 minutos de forma consecutiva, mas a resposta já está evidente.

O Sporting podia ter mandado o Antunes à sua vida e pede três dias para fazer uma homenagem. É ilustrativo daquilo que ele representou para um grupo que foi campeão e para o jogador que trouxemos e integramos. Não só pelo que joga, mas por tudo o que acrescenta à nossa equipa. Ainda por cima mora aqui ao lado do estádio.

Voltando atrás no tempo. Foi adjunto durante muitos anos, passou pelo distrital e por quase todas as divisões. Foi um período mais difícil da carreira, em que não era profissional?

Tive um percurso como adjunto de dez anos, fui do distrital à I Liga. É um período que os neurocientistas descrevem como o tempo necessário para chegar ao patamar de excelência.

Tive sorte, há um momento chave na minha carreira que é o telefonema do Rui Pedro Soares, na altura presidente da SAD do Belenenses. Eu estava em primeiro lugar no Mafra [terceira divisão], que acabou por subir à II Liga. Foi a chamada que me fez sair para a I Liga.

Se esse telefonema não acontecesse, provavelmente ficaria no Mafra e estaria na II Liga. O salto para a I Liga era algo que aspirava, mas que não sabia se iria acontecer. É muito difícil, muitos trabalham durante muitos anos para chegar à I Liga e eu tive este telefonema.

Lembro-me que estava a almoçar na Ericeira com os meus pais. Foi um momento mágico, uma chamada de um minuto e meio em que me pergunta se estou disponível para ir treinar o Belenenses. Foi o momento de viragem, deu-me a possibilidade de aparecer rapidamente na I Liga como treinador principal. Fiz nove jogos para fechar a época, mas qualificamo-nos para a Liga Europa. Este feito permitiu-me ter o convite do Paços no ano seguinte. Há treinadores que conseguem chegar à I Liga em situações semelhantes à minha, mas num ápice a coisa não corre bem e quase se ofuscam.

Antes desse momento, tive outro que recordo muitas vezes. Quando era adjunto não era remunerado o suficiente para viver do futebol, portanto fiz curso de Ciências do Desporto e dei aulas de Educação Física durante alguns anos.

Há um momento em que decido deixar a escola. Já pertencia ao quadro, estava efetivo, tinha a minha vida estável e abdico disso para ser treinador do Mafra. Já não seria possível voltar caso corresse mal. Abdiquei de forma definitiva praticamente. Saí para ganhar quase o mesmo, com a instabilidade dos resultados de um treinador da terceira divisão.

Conheço outros treinadores que não tiveram a coragem ou a loucura de tomar esta decisão e ainda hoje são professores. Tenho outros que o fizeram, mas não conseguiram singrar e passaram por momentos difíceis. Olho para isto com alguma sorte. Tive o apoio da minha mulher, que me deu o empurrão, e a paixão necessária para ter a loucura de tomar estas decisões.

Eu tenho um mentor na minha carreira que é o Jorge Araújo, que foi um treinador que ganhou tudo no basquetebol. Hoje em dia trabalha no desenvolvimento de liderança e gestão de equipas. Dizia-me muitas vezes que aquele que entra numa luta de vida e morte, o que ganha é o que está disposto a morrer. Só quando estamos completamente dedicados é que ganhamos a luta. Este é o meu percurso, não é melhor ou pior. O que sou hoje é o resultado destas vivências que fui passando.

E esse período no Belenenses acabou por lançar a carreira. Em pouco mais de uma época, passou pelo Paços de Ferreira, Chaves e chegou ao Braga...

Pouco tempo depois de ter estado no Braga tive a perfeita noção de que a ascensão foi, se calhar, demasiado rápido. Há treinadores como o Villas-Boas que a primeira experiência é logo altíssima, mas é preciso perceber o que o suportou.

Tenho de perceber o que me faltou para quando cheguei ao Braga as coisas terem acontecido como aconteceram. Se calhar, precisava de mais tempo para chegar a um clube de um nível do Braga para estar ao nível do que esperavam de mim. Hoje não é nada difícil reconhecer isso, fiz o meu caminho.

Não tenho nada a ideia de querer treinar este ou aquele clube. Tenho um sonho de objetivo de carreira, que nunca partilhei. Mais do que isso, quero desenvolver-me para tornar-me muito melhor. O resultado de um jogo é a consequência do que vamos fazendo, o meu caminho está claro.

Quando diz que não estava preparado para o Braga refere-se a quê?

É um pouco de tudo, cheguei ao Braga com muitos sucessos seguidos e numa onda extremamente positiva. Sentia que as coisas tinham de ser como eu queria, porque eu é que sabia e tinha tido sucesso. Quem está, está, quem não está, não está. Foi um pouco isto e tive pouca flexibilidade nas relações humanas para gerir um clube da dimensão do Braga com excelentes profissionais em todas as áreas.

E também no jogo em si. Jogava um futebol com rigidez tática, com base numa fase defensiva muito forte e contra-ataque de curta duração e muito objetivo. O Braga estava habituado a outro tipo de coisas. Acho que poderia ter pegado, se aqui ou ali a coisa tivesse corrido melhor e podíamos ter evoluído em conjunto. Depois do Braga, precisei de refletir as ideias de jogo e desenvolver coisas rapidamente. Quis dotar-me de outro tipo de ferramentas no jogo.

É nesse momento que surge a oportunidade de ir para Nápoles aprender com Sarri?

Sim. Fui ao Nápoles fazer o estágio e acompanhar essa equipa do Sarri. É um momento marcante na minha carreira. Estudei e a acompanhar muitos jogos passados do Sarri, sou um grande admirador daquele Nápoles, talvez o maior. Deslumbrou-me, acho que é uma obra prima.

Inspirou-me para desenvolver um jogo posicional dominante e extremamente pressionante. Foi esse o caminho que tentei seguir. A passagem pelo Boavista foi por aí, ainda hoje sou reconhecido pelos adeptos deles. Ainda hoje têm um carinho enorme quando falam comigo pela qualidade de jogo. Sabe muito bem ouvir, sinto reconhecimento muito grande das pessoas daquele clube pelo jogo em si.

Já muito diferente do estilo de contra-ataque que lhe deu sucesso no início da carreira?

Muito diferente. Ainda hoje me dou muito bem com o Rochinha, Fábio Espinho e David Simão e partilhamos. Quando se dá esta simbiose é quando as coisas florescem. Aconteceu no Boavista esse desenvolvimento. Quem acompanha hoje o Paços percebe que, em alguns jogos, temos um futebol de grande qualidade. Aqui e ali com alguma inconsistência.

É nesses momentos de insucesso que os treinadores mais evoluem e repensam as suas ideias?

Sem dúvida. Nos momentos de sucesso, pensamos muito no eu. Os jogadores pensam: "eu é que fiz o golo, eu é que fiz a defesa, eu é que brilhei". O treinador pensa: "eu é que sou o maior e tenho razão em tudo".

Nos momentos difíceis, todos temos necessidade de falar em nós, de reagrupar. Os momentos duros, as grandes pancadas, como costumo dizer, fazem-nos refletir e ponderar o que temos vindo a fazer e dizer, como nos comportamos e apresentamos. Isso muda-nos, não necessariamente para melhor.

Quero acreditar que melhorei depois da minha passagem pelo Braga, mas lembro de outros momentos onde pancadas que vamos levando mudam-nos para pior. Criam marcas e cicatrizes que alteram a maneira como nos relacionamos com as pessoas e os jogadores.

É uma profissão que nos coloca muito à prova. Não é só o tempo dentro de campo. Nos momentos de dificuldade e nas pancadas, se nos fizerem dotar de maior consciência é um bom caminho. Se nos aumentam a resistência no relacionamento com as pessoas, são mudanças que não são positivas. É toda a cabeça a funcionar fora do jogo, não são só os 90 minutos ao domingo e os 90 minutos do treino.

Já foi apontado como um treinador distante. Tendo em conta aquilo que acaba de dizer, como tem evoluído a sua maneira de lidar com os jogadores?

Consigo perceber que não sou o típico treinador de andar aos "beijinhos" e abraços, mas quero achar que isso não faz de mim um treinador distante.

Tenho a tendência de ser mais próximo quando acho que tenho de ser assim e mais distante quando acho que é o melhor. Gostava de ter uma relação extremamente forte com os meus jogadores, de confiança. Para isso, acho que não preciso de abraços e dizer que eles são os melhores do mundo. O fundamental é respeito e confiança, mas isto não acontece num estalar de dedos, nem em 15 dias.

A relação começa numa confiança profissional, que tem a ver com a coerência como atuamos. Temos de ser coerentes com o que fazemos, os jogadores são inteligentes e percebem injustiças. São muito rápidos a perceber isso. Se o entendem, dificilmente volta a dar nessa relação com o treinador. Não temos de ter comportamento igual para todos, mas ser próximo ou distante depende do contexto e do que o jogador precisa de mim.

Voltando ao percurso da sua carreira. Depois de duas épocas no Boavista, teve a primeira experiência lá fora no Al-Fayha da Arábia Saudita. Estava nos planos emigrar?

Tomei a decisão de sair. Tinha mais convites em Portugal do que alguma vez tinha recebido, mas quis sair. Quis internacionalizar a minha carreira, é uma vantagem de ser treinador. Posso correr o mundo. Mais do que por questões financeiras, queria abrir a possibilidade de treinar no mundo inteiro e não me cingir só a 18 clubes da I Liga.

Se estava à espera de ir para a Arábia Saudita? Não. O que me fez ir foi a vontade que senti das pessoas do Al-Fayha de contarem comigo. Já tinha tido a abordagem muito tempo antes, talvez dois anos antes. Fui sempre rejeitando e tudo coincidiu naquela altura. Senti-me desejado. Na altura tive a possibilidade de ir para o Middlesbrough, esteve em cima da mesa, mas acabou por ser a Arábia Saudita.

Agora olho para trás e sinto que foi uma experiência fantástica, não só na possibilidade de conhecer outro jogo, que muda muito por causa do calor, mas conhecer aquela cultura. Foi apaixonante, recordo com saudade o tempo na Arábia Saudita, enquanto pessoa e também como treinador.

E depois surge o Mouscron, já num campeonato com algum crédito europeu...

Foi nesta ideia de continuar a internacionalizar a minha carreira, o Mouscron surge pelo Luís Campos, do grupo do Gérard Lopez, que tinha também o Lille, o Boavista e o Mouscron. Era um clube que tinha três pontos à nona jornada. Fizemos uma média pontual de 1,11, que daria a manutenção em condições normais.

O principal fator foi o convite do Luís Campos, que saiu do grupo 15 dias depois. Percebe-se a dificuldade que foi estar envolvido naquele projeto quando a mente que o concebeu saiu. Foi uma experiência incrível também. A Bélgica é um país fantástico e um campeonato bom e extremamente competitivo.

Os clubes são detidos por donos que têm uma perspetiva de lucro e apostam em jovens para valorizar. O Anderlecht jogava com um onze inicial com média de 21 anos. O futebol lá é um pouco a porta de entrada de muitos africanos, que se valorizam e saem para outros países.

A dificuldade do Mouscron foi a saída de Luís Campos. Lembro-me que conversei com ele, disse-lhe que iria por causa dele, porque acreditava nele e o que ele fez na carreira é um selo de garantia de qualidade. 15 dias depois de assinar, ele saiu. Fomos mantendo contacto, nunca mais presencialmente porque deixou de ter razão para ir à Bélgica. Falamos aqui e ali, mas deixou de tomar decisões. Não foi a mesma coisa.

Já referiu que não tem muitos objetivos de carreira. Não tem a ambição de chegar a uma Liga dos Campeões ou treinar um grande?

Tenho o meu objetivo assumido, que as pessoas iriam achar engraçado e que tem a ver com trabalhar em determinado clube com determinada pessoa, mas não vou partilhar aqui.

Tirando isso, o que me faz seguir um caminho é o desenvolvimento pessoal, dotar-me de ferramentas para conseguir fazer aquela obra prima, tal como eu vi com o Sarri. Quem era aquele indivíduo com 60 e tal anos, como é que ele tinha conseguido aquilo? Não acontecem por acaso, são anos e anos de estudo, trabalhos, erros e despedimentos.

Já mencionou o Sarri, mas tem outras inspirações no treino?

Acho que o Mourinho foi o que marcou os treinadores da minha geração e acredito que continue a ser para quem dá os primeiros passos. Foi o que nos fez olhar para a profissão de uma forma tão sofisticada e evoluída que motivou centenas de jovens a seguir a carreira. Também pelas capacidades de liderança, que é o que mais admiro e continuo a admirar nele.

Há outro treinador com quem partilhei almoços, que é o Ancelotti, pelo motivo oposto do Sarri: é um treinador com uma capacidade de relacionamento com os jogadores ímpar. O Guardiola também pela forma como consegue fazer e a sua versatilidade e o Klopp por ter ido mudando o seu jogo, mantendo a particularidade na liderança.

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