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Entrevista Bola Branca

Arrigo Sacchi: “Para mim, o futebol era fantasia, domínio e dar tudo. Que seja vencedor mesmo que não se vença”

06 jan, 2025 - 13:00 • Hugo Tavares da Silva

Entrevista à Renascença acontece na sequência da chegada de Sérgio Conceição ao AC Milan, o tal laboratório onde Sacchi revolucionou o futebol italiano no final dos anos 80.

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Já depois das protocolares despedidas, sem aviso, Arrigo Sacchi soltou da garganta umas ‘paroli’ inesquecíveis. “Para mim, uma vitória sem mérito não é uma vitória.”

A conversa do mítico treinador italiano com Bola Branca aconteceu por causa da chegada de Sérgio Conceição ao Milan, onde Sacchi inventou uma verdadeira revolução, no final dos anos 80. O cidadão de Fusignano em Ravena, de 78 anos, gosta do técnico português, treinou-o até em 2001 no Parma, por breves semanas.

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“Falta-lhe muito provavelmente a coisa mais importante: haver um clube competente”, avisa prontamente, como quem sugere o oposto. “Quando se muda, compram-se jogadores. Compraram uns 16 ou 17 jogadores. Os americanos são estranhos. Não sei se vai dar para o futebol que quer o Conceição.”

E, depois, um elogio: “Eu acompanhei, eu vi-o em Portugal. Ele esteve muito bem. A equipa dele tinha um estilo”. Recordo que o estilo, salvaguardadas as distâncias, tinha algo daquele Milan de Sacchi, num 4-4-2 pressionante e furioso, encurtando espaços e moendo os adversários.

Ele parece deixar escapar um risinho, assim gasto e cansado, o corpo ainda parece muito castigado por uma grave crise de saúde em novembro. “O Milan do Sacchi…”, começa a reflexão. “Tinha um grande presidente. E tinha um público que me adorava, em cada dia, em cada jogo. Levei para lá jogadores que não eram famosos, uma parte deles. Eram todas pessoas de confiança, davam tudo o que podiam, eram todas pessoas que faziam uma equipa”, justifica-se, ainda que o nosso pensamento lembre jogadores importantes como Marco van Basten, Rijkaard e Gullit, que se juntaram a Baresi, Maldini, Donadoni e Evani.

“Eu olhava não para os pés, mas para a cabeça. Eu venho da indústria…”, diz, demonstrando que só ter o cheirinho da relva no dia a dia é curto, dando a entender que quem trabalhou noutro ofício entende melhor a vida.

A jornada do jovem Arrigo, que não foi além do futebol amador como defesa central, era dividida entre os sapatos da fábrica do pai e o desporto. Aos 26 anos, começou como treinador, no Rimini, na terceira divisão, e chamou à atenção. Foi aí, provavelmente, que aprendeu o valor da pessoa no campo de futebol.

“O Berlusconi não queria comprar o Ancelotti porque tinha problema nos joelhos”, continua, sobre a sua chegada ao AC Milan em 1987/88. “Eu disse-lhe ‘se não comprarmos o Ancelotti, não vencemos o campeonato’. E assim foi. Não só vencemos o campeonato, vencemos mais coisas, batemos o Barcelona, batemos o Real Madrid, batemos o Bayern Munique, ganhámos a todos. Eram rapazes verdadeiramente fortes, davam tudo o que podiam dar.”

Os títulos do italiano nascido em 1946 alastraram-se à Serie A, Taça dos Campeões Europeus em dose dupla, uma delas às custas do Benfica, duas Supertaças Europeias e duas Intercontinentais, mais uma Supertaça italiana. Isto sem referir as distinções de importantes publicações que o colocam muitíssimo bem colocado como um dos maiores treinadores da história.

Sacchi, vice-campeão do mundo em 1994 (o famoso penálti de Baggio), detém-se bastante, em cada reflexão, na questão da pessoa. Então, os futebolistas são diferentes hoje em dia?, questiono. “Não conheço os jogadores que eles levaram para o Milan. O meu colaborador, antes de contratarmos um jogador, ia ver como ele treinava, as características, como se comportava, o que comia até!”, aclara a voz.

“Queria pessoas de confiança. Em Itália, é muito difícil isto”, revela. Mas ele queria mais do que isso…

“Para mim, o futebol era fantasia. Para mim, o futebol era domínio. Para mim, o futebol era dar tudo o que podíamos dar. Que seja vencedor mesmo que não se vença”, declara. “A France Football e a FIFA escolheram o Milan de 89 como a melhor equipa de sempre.”

Foi para desabafos destes que a saliva mental foi produzida depois de recebermos no telefone a mensagem: “Sto aspettando la telefonata, Arrigo Sacchi”.

Lançamos a corda para o senhor Sacchi falar sobre a revolução que meteu em marcha no final dos anos 80, quando chegou ao Milan, um clube que tinha apenas um scudetto em 20 anos. Ele ganhou logo o título nacional no ano de estreia, contra o Napoli de Diego Maradona, o melhor marcador da Serie A, o melhor e mais belo futebolista do planeta. Ele preferiu ir por outro lado…

“Eu queria jogadores e gente de confiança, pessoas generosas, inteligentes!”, quase grita a última palavra como um general. Este é um homem que foi muitíssimo questionado quando chegou ao San Siro. Afinal, apenas treinara o Rimini na terceira divisão, os juniores da Fiorentina e o Parma, que pressionava com a fome de cães raivosos e que eliminou os de Milão na Taça de Itália. Berlusconi apreciou o feito e a postura daquela gente de branco e decidiu arriscar.

Depois de ser muitíssimo questionado, principalmente por não ter sido um grande futebolista e pelo currículo ser humilde, lançou a tal famosa pérola: “Não sabia que para ser jóquei era preciso ter sido cavalo…”

Como ele dispensou falar em causa própria, pegámos no telefone e pedimos ao escritor e historiador Miguel Lourenço Pereira para contextualizar o lugar de Sacchi no futebol. “O Arrigo Sacchi é o alquimista perfeito porque, sem ter inventado absolutamente nada, foi aquele mago que soube reunir as doses certas das diferentes escolas que o futebol tinha desenvolvido até meados dos anos 80”, explica.

“Misturava a qualidade defensiva organizativa que dava segurança do futebol italiano aos conceitos da escola danubiana, derivando no ‘futebol total’ holandês, misturados com uma dimensão física de pressing num modelo em 4-4-2, muito próximo do modelo britânico dos anos 70 e 80, sem o futebol direto. Retirou ainda ao 4-3-3 a permeabilidade posicional do futebol holandês e retirou a figura do líbero ao futebol italiano, mas potenciou as coisas boas que viu em cada um desses sistemas, e encontrou intérpretes perfeitos.”

Tentámos puxar por aí com Sacchi, sobre a sua inspiração como treinador. Ele, claro, foi novamente por outra via e dispensou falar nas linhas subidas, da zona, do encurtamento dos espaços e do pressing delirante. “Em Itália, está a mudar”, tira o chapéu ao presente para criticar o passado. “Os pais fundadores deste desporto foram os ingleses, pensavam isto como uma modalidade ofensiva e de equipa”, reflete. “Em Itália, tornaram-na numa modalidade individual e defensiva. Mas como é que pode ser individual se estão 11 em campo!?”.

E ri-se, como se fosse um tema que o irritou durante anos a fio. “Em Itália somos estranhos. Um grande poeta italiano diria: ignorantes. Para quê ser defensivo? Se não fazemos golo, acabamos atrás.”

Já enquanto treinador falava muito numa das funções sociais do futebol. “Se queres ficar na história, não podes só ganhar. Tens de entreter”, chegou a dizer.

À Renascença, encheu-se de orgulho e declarou: “Quando cheguei ao Milan, havia 30 mil cativos no estádio, no fim do ano eram 75 mil. Porquê? Porque se divertiam. Ganhámos a todos com superioridade.”

Haverá alguma revolução em vista? “O jogo é praticado por 11 jogadores, por 11 pessoas, por isso o objetivo será sempre a posse de bola”, diz, desapaixonadamente, este homem que gosta de quase todas as equipas inglesas e que garantiu que o seu “querido amigo” Pep Guardiola vai recuperar desta fase complicada e inédita.

De vez em quando, Arrigo Sacchi volta ao treinador português e ao propósito da conversa. “Espero que o Conceição encontre as pessoas certas. Espero que haja inteligência. Espero que lhe corra bem.”

Os projetos depois de Milan e seleção italiana nunca se aproximaram daquelas obras, sobretudo a primeira, irrepetível. No Atlético Madrid não foi feliz, nem nos regressos a Parma e Milan. A carreira de treinador terminou precocemente devido a uma doença relacionada com stress, por isso experimentou ser dirigente no Real Madrid, por exemplo, e até comentador na televisão.

Mas mudar o futebol não é pouco, certo?

Já depois do aperto de mão através da palavra e sem qualquer pergunta atirada para o vazio, Sacchi, talvez ciente da finitude das coisas, declarou: “Devo muitíssimo ao futebol. Espero sempre que o futebol seja bom. Tenho um monte de amigos, como Ancelotti, Guardiola e Tedesco, que amam o futebol e que promovem um futebol bem jogado.”

E concretizou: “Para mim, uma vitória sem mérito não é uma vitória. Obrigado por tudo. Sorte, que tudo corra bem”.

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