12 dez, 2024 - 06:40 • Hugo Tavares da Silva
A partir de Nova Iorque e numa troca de mensagens e áudios pelo WhatsApp, pois a diferença horária e as agendas teimavam em não permitir um puzzle comunicacional mais favorável, o diretor adjunto para o Médio Oriente da Human Rights Watch, Michael Page, traça o perfil do regime saudita, censurando a FIFA e sinalizando algumas das preocupações relativamente ao país escolhido para organizar o Campeonato do Mundo em 2034, a Arábia Saudita.
Como é que a HRW vê a decisão da FIFA de atribuir o Campeonato do Mundo à Arábia Saudita?
Consideramos um completo abandono da política de direitos humanos da FIFA e de qualquer tipo de compromisso com os princípios dos direitos humanos, essencialmente as políticas que a FIFA abraçou depois dos escândalos de corrupção em 2017, julgo. Atiraram-nas, no fundo, para o lixo com este processo.
Para resumir os principais problemas: houve uma avaliação independente que foi feita que falhou em ser independente ou realista relativamente ao histórico de direitos humanos da Arábia Saudita. Ignorou acordos críticos de direitos humanos, não consultou os stakeholders [partes interessadas], como os trabalhadores migrantes, os cidadãos sauditas ou ONG locais ou internacionais. Mesmo no relatório que fez, ignorou ou evitou comentários críticos de entidades das Nações Unidas que eles citaram sobre o histórico de direitos humanos. Isso é um indicador de que a Arábia Saudita meteu dinheiro, lucro e poder acima de quaisquer princípios de direitos humanos.
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Sabendo que existem vários relatórios, elaborados pela HRW e por outros, posso pedir-lhe um resumo dos factos e das violações que mais o preocupam nesse país?
Há vários relatórios que foram publicados recentemente, de organizações de direitos humanos sauditas e internacionais e de organizações de direitos dos trabalhadores migrantes. E também da Human Rights Watch, na semana passada, com uma investigação de dois anos e entrevistas a mais de 150 trabalhadores migrantes, assim como a famílias de trabalhadores que morreram. Descobrimos que estão generalizados os abusos laborais a trabalhadores migrantes em todos os sectores de emprego e regiões geográficas da Arábia Saudita. Esses abusos sérios ocorrem até em projetos de alto perfil, como aqueles fundados pelo PIF [Fundo de Investimento Público].
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A HRW descobriu que as autoridades sauditas falham sistematicamente na proteção destes trabalhadores migrantes e na remediação destes abusos. Alguns dos abusos que ocorrem podem chegar a trabalho forçado. Estes abusos são essencialmente a base do “migration cycle”: um trabalhador chega à Arábia Saudita e sofre com as quantias exorbitantes que paga para obter o seu trabalho. Há baixo salários, ou não pagamento de salários de todo, ou salários em atraso. Há uma inadequada proteção do extremo calor, especialmente dos trabalhadores migrantes que trabalham no exterior.
Há severas restrições na mudança de empregos, incluindo se essa pessoa tiver um empregador abusador, que tem um poder incrível. E, claro, as mortes por investigar de trabalhadores migrantes. A HRW entrevistou 14 famílias de trabalhadores migrantes que morreram e nenhuma recebeu compensação ou recebeu informações detalhadas sobre as causas da morte. Dada essa realidade, apenas relativa a trabalhadores migrantes, é muito preocupante e uma quase certeza que o Mundial 2034 será marcado por sérios abusos diretamente ligados à construção e serviços.
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Parece que estamos num ciclo. Não foi esta a história do Qatar? Existem semelhanças entre os dois processos e os tipos de violações e problemas que identificou em ambos os países?
Sim. Muitos dos abusos contra trabalhadores migrantes que documentámos no Qatar também documentámos na Arábia Saudita. O sistema kafala está muitíssimo vivo na Arábia Saudita também, é o esquema de emprego que dá um poder desproporcional ao empregador. Na Arábia Saudita é provável que os abusos sejam ainda maiores e piores. Há 13.4 milhões de trabalhadores migrantes no país, no Qatar são mais de dois milhões. Muitos destes projetos vão por todo o país, localizados longe dos centros urbanos, de acesso a jornalistas e de redes de apoio.
Na Arábia Saudita descobrimos também que dependem muito de empresas que são subcontratadas por grandes empregadores para adicionar mais pessoas para trabalhar. Estas empresas são particularmente abusadores e têm trabalhadores “armazenados” sem emprego, e por isso simplesmente não lhes pagam. Há muitos abusos sérios a decorrer agora, mesmo antes do Mundial ser atribuído oficialmente. E tudo isso também acontece em contextos de liberdade de expressão, liberdade de assembleia, nos abusos que levaram a cabo fora do país, como o assassinato de Jamal Khashoggi por agentes sauditas, as mortes massivas na fronteira com o Iémen de trabalhadores migrantes da Etiópia e de refugiados que pedem asilo. Há preocupação quanto a violações, ainda assim a FIFA atirou a política de direitos humanos para o lixo ignorou isso.
Que tipo de atitude ou reação gostaria de ver da parte da HRW por parte da comunidade desportiva, quer se trate de clubes, atletas ou adeptos?
O que é claro é que a FIFA não teve em conta os feedbacks de grupos de adeptos, de indivíduos que gostam de futebol, de futebolistas, certamente não teve de trabalhadores migrantes, de federações de futebol. A FIFA tomou esta decisão sem envolver as partes interessadas que deveriam estar envolvidas. Penso que o que os adeptos podem fazer é falar publicamente, devem dizer que a FIFA não pode atribuir o Mundial à Arábia Saudita, visto que há este risco muito sério de abusos generalizados. Que pressionem as entidades que têm influência na FIFA, ou seja, patrocinadores e federações de futebol.
Os adeptos que se desloquem a esse país para assistir aos jogos terão de ter cuidados redobrados? Que tipo de precauções?
Penso que é muito cedo para dizer o que vai mudar. Há dois pontos: a Arábia Saudita não é um sítio que permite distúrbios sem penalização. Os cidadãos sauditas enfrentam repressão severa por fazerem coisas como exigir direito de liberdade para as mulheres, por exigirem o fim da abusiva tutela masculina. Só por criticarem os planos para a economia do governo, houve pessoas que foram para a prisão, houve abusos na prisão.
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A Arábia Saudita recorre a ferramentas de espionagem para cidadãos sauditas que estão no estrangeiro. É muito preocupante a Arábia Saudita organizar o mundial. Aconteça o que acontecer com os adeptos, o que não queremos é que seja uma bolha, que os adeptos estejam protegidos enquanto os cidadãos sauditas não estão, é hipócrita. Cria esse valor diferencial de que os adeptos têm esse espaço privilegiado e os cidadãos sauditas não têm acesso, é absolutamente antiético.
Acha que os jornalistas vão poder fazer o seu trabalho em segurança? Como é que foi no Qatar?
No Qatar, seguramente, os jornalistas enfrentaram desafios. Houve jornalistas que foram deportados, que foram expulsos ou com limitações. Houve restrições na liberdade de expressão no Qatar. Na Arábia Saudita não é um lugar para liberdade de expressão, há sérias restrições quanto a distúrbios, ou aglomerados de pessoas. Não é claro que tipo de liberdade os jornalistas vão ter, mas, baseando no atual contexto, haverá restrições sérias.
Fala-se muito do dinheiro investido pela Arábia Saudita e pelo fundo saudita no desporto. Considera que se trata de um caso de lavagem desportiva?
É um claro exemplo de sportswashing. Está no seu plano Vision 2030, eles veem o investimento no desporto, em celebridades, em grandes eventos, como uma forma útil de mudar a sua imagem pública. O sportwashing acontece quando os estados investem em eventos públicos, incluindo desporto, para distrair da sua imagem quanto a direitos humanos. Isso está no seio, certamente, da candidatura da Arábia Saudita para o Mundial. Há outra coisa de que não falei: o número de execuções, este ano, já superou as 300. A Arábia Saudita está claramente a investir numa estratégia de sportswasing, é claro que a FIFA está muito satisfeita, abandonou a sua política de direitos humanos e permite àquele país fazê-lo, porque tem uma quantidade enorme de fundos para gastar.