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​Mundial 2034

“Falando apenas de futebol na Arábia Saudita, o jornalista fica aquém da sua responsabilidade”, alerta presidente do sindicato

12 dez, 2024 - 06:40 • Hugo Tavares da Silva

Em conversa com Bola Branca, Luís Filipe Simões expressa preocupações sobre o Mundial 2034 e admite uma oportunidade. “Não nos podemos deixar condicionar. Se vamos, temos de aproveitar."

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Como cobrir um evento num território controlado por um regime autoritário? Um jornalista condicionado, no fim do dia, ainda é jornalista? Que tipo de serviço presta à sociedade um jornalista que só relata futebol numa terra onde brotam violações de direitos humanos e das liberdades individuais? Há espaço para problemas de consciência e receio? As questões são muitas.

Por isso, no dia em que a FIFA atribuiu finalmente o Mundial 2034 à Arábia Saudita, pegámos no telefone e questionámos o presidente do Sindicato dos Jornalistas, Luís Filipe Simões, que sublinha a curiosidade de na véspera ter sido celebrado o Dia Internacional dos Direitos Humanos.

“Tivemos o engenheiro António Guterres, o secretário-geral da ONU, a dizer que os direitos humanos têm de ser defendidos. Todos eles. Depois, enuncia a liberdade de imprensa, as condições dignas de trabalho, a não discriminação por orientação sexual ou por género. Na verdade, a Arábia Saudita tem muitos problemas com os direitos humanos…”

Simões considera que as declarações do português podem nem ter sido inocentes, numa altura em que faltam construir ou reformar os estádios e os hotéis, e que poderiam antecipar o anúncio desta quarta-feira. “Pode ser um bom momento para discutir os direitos humanos. Como todos sabemos, o Jamal Khashoggi foi morto por uma única razão: por ser jornalista e por dar informações incómodas.” Khashoggi, um jornalista saudita que assinava textos no "Washington Post", foi estrangulado e desmembrado na embaixada da Arábia Saudita em Istambul, na Turquia, em 2018. O príncipe Mohammed bin Salman e outros altos oficiais do Reino da Arábia Saudita foram apontados como os responsáveis, segundo os serviços secretos norte-americanos.

Este jornalista de “A Bola”, reeleito presidente do sindicato em maio, lembra que este país do Médio Oriente está no lugar 166 do ranking mundial da liberdade de imprensa dos Repórteres Sem Fronteiras. “O Mundial reúne milhares de jornalistas. Será que todos eles têm liberdade para exercer a sua profissão num país como a Arábia Saudita? Vamos todos acreditar que sim…”

Então, como se cobre um evento num território com um regime autoritário? “Essa é a minha dúvida”, confessa Luís Filipe Simões. Não podendo cobrir convenientemente, os jornalistas devem ir?, insistimos. “Nós, jornalistas, vamos sempre. O Khashoggi morreu, um cidadão da Arábia Saudita, porque achou que devia cumprir a sua missão, que é informar. Nós vamos também. Vamos correr riscos, tenho a certeza.”

E se o jornalista optar por fechar os olhos ao que sabe, ao que dizem os relatórios das Nações Unidas e da Human Rights Watch, e falar apenas de futebol? “Falando apenas de futebol, ficamos aquém da nossa responsabilidade. Não acredito que a grande maioria dos que lá estarão fiquem aquém das suas responsabilidades”, garante.

E acrescenta: “Ao futebol usamo-lo para informar as nossas comunidades sobre a situação de um país, sobre a forma como se vive. O futebol, com toda a importância que tem, é apenas um meio para fazermos jornalismo e informarmos. Portanto, ninguém vai falar apenas sobre futebol. Vou repetir aquela frase: quem sabe só de futebol nem de futebol sabe”.

Certo, mas pode dar-se também aquele terrível bichinho da autocensura por receios legítimos mas que, inevitavelmente, ferem o ofício. “Não nos podemos deixar condicionar”, diz Luís Filipe Simões taxativamente.

Talvez existam problemas de consciência, atiramos. “Todos temos. Quando deixarmos de ter…”.

Fala-se também no tal “sportswashing", a tal prática através do desporto que os regimes autoritários e ditaduras levam avante para limpar a imagem do país. Se o jornalista não fizer um trabalho completo e fiel à realidade, não será um peão nessa maquinaria?

“Claro, claro. É o que sinto. Essa é a nossa missão também, não é? Diariamente, morrem jornalistas por fazerem jornalismo. Se calhar essa é uma boa discussão para o momento em que se atribui um Mundial à Arábia Saudita, depois de a FIFA ter escolhido o Qatar e a Rússia”, reflete.

E continua: “A FIFA, reiteradamente, cede ao poder do dinheiro e da finança e esquece outros valores como os direitos humanos. Vai acontecer pela terceira vez. Vamos utilizar isso a nosso favor”.

É curiosa a forma como o presidente do Sindicato dos Jornalistas coloca o futebol à bulha com os dramas da sociedade. “Com o momento em que vivemos, com as guerras, as situações muito complicadas em todo o mundo, o futebol tem essa responsabilidade de estar na primeira linha da defesa dos direitos humanos”, defende.

Simões lembra ainda que a FIJ, a Federação Internacional de Jornalistas, aproveitou o último Campeonato do Mundo no Qatar, outro país carregado de camadas problemáticas no que toca aos direitos humanos e das liberdades, para dizer à FIFA que aquele era uma nação onde não havia liberdade para as mulheres praticarem desporto, por exemplo.

“É isso que teremos de recordar à FIFA, é um momento de igualdade, ninguém pode ser discriminado pelo género ou orientação sexual. O desporto é união e integração e não é outra coisa, não se compadece com a falta aos direitos humanos”, esclarece.

Resumindo, “não sei se é uma boa ideia a organização do Mundial ser atribuída à Arábia Saudita, mas já que tem de ser vamos aproveitar esse momento…”

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