06 dez, 2024 - 16:05 • Inês Braga Sampaio
O Arsenal marcou mais golos a partir de pontapés de canto, 22, que qualquer outra equipa na Premier League, desde o início da temporada passada. Na quarta-feira, a "vítima" foi o Manchester United, de Ruben Amorim, que sofreu dois golos. Mas como se explica esta mestria da equipa de Mikel Arteta a partir da bandeirola de canto? E como se treina? Bola Branca foi à procura de respostas.
Vítor Severino, que integra a equipa técnica de Luís Castro, divide o treino das bolas paradas em duas lógicas: formal e informal.
Na primeira, há uma "simulação clara daquilo que se pretende que possa acontecer, já com as características do adversário presentes". Ou seja, isola-se esse momento do jogo, "em que uma equipa se comporta como a nossa equipa e que outra equipa se comporta como a equipa adversária".
Na segunda, não estão presentes as características do adversário: "O treino pode estar presente numa situação de jogo, em que os treinadores podem aumentar o número de repetições da bola parada. Imagina: numa jogada, há uma situação de canto e o treinador diz que só há transição para jogo após o terceiro canto e, aí, aumentas a repetição naquele momento. O primeiro canto acaba a jogada ou acaba a segunda bola, volta a bater canto acaba a jogada volta a bater canto, e no terceiro canto, a partir daí, a equipa continua a jogar. Portanto, aumenta-se o número de vezes em que isso acontece numa situação mais jogada."
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Para Pedro Malta, adjunto de Pedro Caixinha, é fundamental "criar um padrão, uma identidade, um conjunto de movimentos", que permitam "explorar espaços que se quer explorar, contra qualquer equipa".
"Ter uma identidade bem criada, em que os jogadores saibam exatamente onde têm de estar, para onde têm de ir, determinando a zona de entrada da bola - se é no primeiro, se é no segundo poste, se é no ponto de penálti ou para os jogadores que estão na entrada da área -, tudo de uma forma muito mecanizada. E que seja quase de olhos fechados. Depois de ter bem essa identidade criada, vem a parte estratégica, para que a equipa, em função do adversário, se possa adaptar", explica.
Quando se pensa numa bola parada, em especial num canto, a atenção costuma estar focada no batedor e nos jogadores que atacam a bola, contudo, Vítor Severino salienta que é necessário "pensar em diversas dimensões".
"Na batida da bola e no tipo de trajetória que se quer dar à bola - se é uma trajetória mais curta, mais longa, se é uma batida com uma trajetória fechada, com uma trajetória aberta -, se a zona de ataque é dentro da área, se é fora da área, se existe combinação ou não. Isto leva-nos para o número de jogadores envolvidos numa possível combinação. Uma segunda dimensão tem a ver com o ataque à bola. Quem faz o ataque à bola e que tipo de movimentos é que são feitos? Em que zonas da área? Uma dimensão absolutamente é que estrutura de equilíbrio é que nós temos. Ou seja, existe um jogador ou dois jogadores ou mais, depende, que estão na zona da bola. Existe um grupo de jogadores que irá atacar ou simular que vai atacar determinada zona, mas depois existe uma estrutura de equilíbrio. Ou seja, quantos jogadores ficam posicionados em zonas do campo que, aparentemente, não são para atacar uma primeira bola, mas que servem para, no caso de a equipa adversária ganhar a bola, ganhar uma segunda bola, poder lançar novo ataque à área ou evitar contra-ataque caso o adversário ganhe a bola", explica.
Malta revela o mais ínfimo detalhe a que vai na preparação das bolas paradas: "A altura do jogador e capacidade de impulsão do jogador. Ou até mesmo a colocação dos pés, que é importantíssima para defender uma bola parada. É diferente eu estar colocado com os pés em paralelo em relação à linha da baliza ou estar em diagonal, em que o meu ângulo de visão é completamente diferente. Se eu estiver com a linha dos pés orientada em diagonal, eu consigo ver os jogadores que estão nas minhas costas, que vão aparecer numa 'zona negra'. Eu consigo abranger um maior ângulo de visão, para poder seguir a trajetória do jogador e poder interferir na trajetória do jogador e da bola."
Severino defende que a bola parada "esteja presente quase sempre durante a semana, seja numa lógica mais formal ou mais informal, seja numa lógica de se analisar exatamente aquilo que se pretende em função das características do adversário ou trabalhar nos próprios comportamentos da equipa".
O treino das bolas paradas parte, então, de duas dimensões de análise: a própria equipa e a equipa adversária - neste último caso, divide-se entre as tendências visíveis do opositor e as tendências possíveis.
A análise da própria equipa está relacionado com os comportamentos que devem existir nos momentos defensivo e ofensivo da bola parada: "Mais uma vez, falando da questão da batida, do ataque à bola, dos movimentos e das estruturas de equilíbrio e das segundas bolas, para, de certa forma, pegar nisso e otimizar esse tipo de comportamento, ou seja, o que precisamos de otimizar."
Quanto ao adversário, está relacionado com os pontos fortes, as principais dificuldades e, como referido, as tendências visíveis e possíveis.
"Que tipo de combinações é que fazem? Como é que se posicionam na área? Quem é o jogador que bate mais vezes à esquerda ou à direita ou como é que combinam?", explica Vítor Severino, nestas declarações à Renascença, sobre as tendências visíveis.
Depois, há as tendências possíveis: "Há coisas que ainda não observámos, mas que podemos tentar antecipar, conhecendo o adversário, tendo em conta aquilo que já faz muitas vezes e tendo em conta o conhecimento da nossa equipa. Ou seja, será que vão tentar explorar esta fragilidade que nós temos e que eles conhecem? Porque não existem segredos relativamente àquilo que as equipas fazem."
"É tudo dentro daquilo que a gente analisa do adversário. A questão do posicionamento, se existe algum jogador que não tenha tanta capacidade de impulsão em determinada zona, limitado em termos da agressividade, ou a estatura desse jogador. A gente procura identificar isso e procuramos explorar essa mesma situação, partindo sempre daquilo que é, lá está, a nossa base", acrescenta Pedro Malta.
"Absolutamente decisivo" é sistematizar comportamentos e prioridades, vinca Severino.
"Se, num determinado momento da bola parada, é visível que normalmente a trajetória da bola é sempre fechada, é importante que, ao longo de toda a semana, existam ajustes e comportamentos, para que esse comportamento apareça muitas vezes e para que existam ajustes da própria equipa àquela trajetória da bola. Isto é válido para outros comportamentos. Sistematizar os comportamentos da própria equipa e do adversário, para depois podermos pegar nesses momentos e tê-los presentes durante a semana, seja numa lógica mais global, ou seja, numa lógica mais analítica ou mais técnica", refere.
Também é importante, contudo, dar espaço à criatividade, que "não existe só no momento ofensivo". "Por isso é que é importante que a bola parada esteja presente muitas vezes no treino, independentemente de estarem lá as características do próximo adversário", sustenta Severino.
Isto permite que "existam situações diferentes, ajustes diferentes, e que os jogadores se habituem a lidar com problemas diferentes".
"Os próprios jogadores, por vezes, arranjam soluções criativas para o momento ofensivo e para o momento defensivo da bola parada", vinca.
Pedro Malta dá um caso concreto: "Quando nós detetamos alguma dificuldade muito evidente no adversário, no primeiro canto, normalmente, procuramos explorar essa limitação, com uma variante nova que procurámos treinar durante essa semana, em função daquele adversário, para tentar criar o elemento de surpresa. Só que, se nós fazemos uma vez, duas vezes aquela situação e não sai bem, existe a tal base forte de movimento e de padrão criada ao longo do tempo, que os jogadores usam como recurso e eles próprios tomam a decisão, 'não, isto não está a saber sair bem, vamos fazer o nosso'. Aqui, entra o grau de liberdade que os jogadores têm de poder tomar decisões dentro do jogo."
E que movimentos são ensaiados? "As zonas que são atacadas. Quem ataca uma zona mais próxima do primeiro poste, quem ataca zonas mais próximas da cara do guarda-redes ou do segundo poste ou da entrada da área - e depois, o que existe muitas vezes são situações de distração, ou seja, por vezes, ataques a uma determinada zona para aclarar e libertar espaço noutra zona, e isto está, obviamente, ligado à forma como o adversário defende, para fugir ao padrão visível dessa equipa. Por isso falava das tendências do adversário, de tentarmos observar os comportamentos visíveis e tentarmos antecipar os comportamentos possíveis. O posicionamento estrutural dos nossos jogadores e o ataque a determinadas zonas é decisivo, mas também é decisivo que a riqueza da semana tenha sido tal, em termos de bolas paradas, que o jogador consiga encontrar uma solução diferente, caso aquela possibilidade esteja bloqueada ", assinala Severino.
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A atribuição de papéis tem a ver com as caraterísticas dos atletas e aquilo que o treinador pretende. Por exemplo, se ficam apenas dois jogadores na estrutura de equilíbrio, "convém que sejam rápidos, para poderem proteger a profundidade, em caso de contra-ataque". Vítor Severino dá outros exemplos:
"No canto, termos um pé direito e um pé esquerdo perto da bola. Depois, as características dos jogadores que estão dentro da área. A estatura dos jogadores, mas não só: a capacidade funcional que esses jogadores têm, porque nem sempre a estatura está associada, principalmente no momento ofensivo, a uma boa coordenação, em termos de tempo de salto, para poder atacar a bola."
Daqui, partimos para o caso do Arsenal. O que torna a equipa de Arteta tão letal nos cantos?
Pedro Malta começa por destacar "um movimento padrão da equipa do Arsenal" nos cantos ofensivos: "Todos os jogadores que entram na área agrupam-se na zona da segunda trave, para, depois, dali saírem, para efetuarem alguns bloqueios na zona da primeira trave e a bola poder entrar mesmo ali na primeira trave, ou até mesmo na segunda. Isso é um movimento padrão característico."
"Tratando-se de uma bola parada em que todos os jogadores sabem o ponto de onde têm de partir e o ponto onde têm de chegar, quanto mais mecanizado eu tiver esse movimento e mais mecanizado eu tiver a zona da entrada da bola, a entrada da bola e a qualidade com que ela entra, maior probabilidade existe de eu ter sucesso. Eu sei exatamente que saio daqui, vou atacar a zona A e que a bola vai entrar lá e com que velocidade é que o meu colega coloca a bola e o tipo de efeito que ele coloca na bola. Então, quanto mais mecanizado e quanto maior conhecimento eu tiver disso, mais efetividade eu vou ter", assinala.
A isso, junta-se "alguma nuance estratégica", explica o adjunto de Pedro Caixinha, ouvido pela Renascença: "Por exemplo, se eu saio da zona da segunda trave e vou chegar à zona da primeira trave, como acontece na questão do Arsenal, e se algum colega meu bloquear um jogador que está a defender essa zona e abrir ligeiramente o espaço para eu poder atacar esse mesmo espaço, ainda que a bola entre sempre ali, eu vou conseguir ser ainda mais efetivo, com base na estratégia e no conhecimento que tenho do adversário."
"Creio que esse é um ponto importante na equipa do Arsenal e que nós, em concreto, nas nossas equipas, procuramos fazer: é mecanizar, mas nunca esquecer aquilo que podemos utilizar da parte do adversário para feri-lo. E isso o Arsenal consegue ajustar muito bem", vinca.
A qualidade individual é outro fator decisivo. A entrada da bola um metro mais atrás ou à frente "faz toda a diferença", por exemplo, assim como a qualidade dos jogadores que atacam essas zonas.
Ou seja, mecanizar no treino os movimentos característicos e introduzir nuances que permitam surpreender o adversário, apoiado na qualidade dos jogadores: "Uma movimentação muito característica e automatizada que permite essa mesma eficiência, em que o adversário sabe que a bola vai entrar naquela zona, mas, pela qualidade que eu consigo colocar naquela zona e o automatismo que eu tenho criado, eu consigo ter vantagem."
O caso do Arsenal e das bolas paradas será, então, um pouco como o do Sporting de Ruben Amorim? Como dizia Sérgio Conceição, era "fácil perceber" a forma de jogar desse Sporting, mas difícil de parar. "É isso mesmo", anui Pedro Malta.
Vítor Severino introduz outro fator sobre esta equipa "um pouco fora da caixa, que tem determinados comportamentos, principalmente no momento ofensivo, que fogem um pouco à regra".
"É aqui que se criam tendências. É aqui que se criam determinadas culturas, porque existe também a questão mental, ou seja, as equipas quando jogam contra o Arsenal, à partida, já sabem, e os jogadores não conseguem fugir a esse pensamento, que o Arsenal é forte no momento da bola parada ofensiva. E o contrário também é válido: os próprios jogadores do Arsenal, quando têm o momento de canto, de livre ou um momento de bola parada ofensiva, têm esse convencimento. Sabem que aquilo pode ser o momento que vai resultar em golo e isto é uma cultura que vai sendo criada e torna-se quase inconsciente", diz.
O próprio estádio sente isso: "Quando há momento de canto ofensivo, aumenta o barulho nas bancadas. Toda a gente está à espera que possa resultar em golo e com isto, associado à competência dos jogadores e à forma como aquilo é treinado, vai-se criando uma cultura. E isto acontece também do ponto de vista mental."
Frente ao Manchester United, o Arsenal fez mais remates a partir de pontapés de canto (sete) do que de jogadas de bola corrida (seis). Os "gunners" têm um elemento da equipa técnica especializado para as bolas paradas ofensivas. Vítor Severino acredita que "caminhamos claramente para aí", para que exista uma pessoa, nas equipas técnicas, especializada "apenas e só" no momento da bola parada.
"Alguém responsável, nos momentos de treino, por criar situações que possam servir para todos os momentos da semana, desde situações mais técnicas, mais analíticas. Em que se possa isolar só o momento da batida na bola, só o momento do ataque à bola, determinados movimentos, a estrutura de equilíbrio, comportamentos de segunda bola, comportamentos de transição defensiva. E essa riqueza é decisiva", refere.
Isto porque, salienta, "como qualquer outro momento do jogo, é importante que haja, durante o treino, o impacto emocional, que os jogadores sintam que há riqueza naquilo que se está a fazer e que não é uma situação apenas e só parada, com muita repetição e com muita informação".