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Futebol internacional

​“Bebíamos canecas de café preto e ficávamos horas a falar da vida”: ligámos ao último treinador de Amorim no Qatar

21 nov, 2024 - 12:15 • Hugo Tavares da Silva

A dias da estreia de Ruben Amorim como novo treinador do United, falámos com o uruguaio Mauricio Larriera, que lembra alguém "fenomenal" e que já metia o dedo no treino.

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Nos primeiros 10 minutos, ainda com o gravador desmaiado, falou-se sobre Rosário e a tal mitologia à volta do futebol rosarino, que outrora exigia ser ético, estético e digno. Bem jogado e honesto, no fundo. Isso era obrigatório ao falar com Mauricio Larriera, que até junho era o treinador do Newell's Old Boys. Mas o tema é Ruben Amorim.

Este uruguaio, o último a levar o Penãrol ao título nacional, foi o derradeiro treinador da carreira do homem do momento em Manchester. Cruzaram-se no Qatar, no Al-Wakrah, em 2015/16, e as conversas sucediam-se, sobre futebol, a vida e também Pablo Aimar (“Estás louco, nunca vi nada igual”). A chegada de ambos àquele país foi inusitada e sinuosa.

Em conversa com Bola Branca, a partir de Montevidéu, Larriera, um menottista assumido, lembra um “tipo fenomenal” e alguém que, com a sua chegada a Doha, permitiu-lhe subir a complexidade e a qualidade dos treinos. “Entendia tudo. (...) Chegou a dizer-me: “Mauricio, não achas que este exercício podia ser assim e não assim?”. Aí está, senhoras e senhores, o quase ex-futebolista e projeto de treinador.

Mauricio, ligo por causa daquela aventura no Qatar e porque foi o último treinador de Ruben Amorim. Como chegou ao Al-Wakrah?
A minha chegada lá foi pouco ortodoxa. Foi estranha. Eu estive em duas equipas no Uruguai, no Racing e no Defensor Sporting, e chegou-me uma mensagem por Facebook, por Facebook!, isto em 2015, de um empresário a partir das Bahamas.

OK…
Parecia tudo uma tanga. Ele nunca me disse o clube do Qatar que me queria. Para chegar lá há que fazer algo diferente, ou chegam treinadores de elite ou que têm um contacto especial. Achava estranho que me quisessem, sendo relativamente novato, por ter começado recentemente como treinador principal depois de ter andado pelo mundo com Gerardo Pelusso, que é o meu mentor e que ganhou muitíssimo cá. Contactam-me e enviaram um documento, já a identificar o clube, o Al-Wakrah, e tive de decidir. E cometi um erro de principiante: recebi o pré-contrato e rescindi o meu contrato com o Defensor Sporting, que é um dos clubes importantes no Uruguai. E viajei, sem o contrato assinado, para o Qatar. Não me acompanhou o tal empresário. Assinei o contrato sozinho, estive lá uma semana. Foi uma loucura.

Lembra-se da chegada de Ruben? Que lhe disseram dele?
A chegada do Ruben foi um pouco estranha. Os latinos estão habituados a fazer o plantel com a área desportiva, o diretor desportivo, etc, mas nos países árabes é mais impulso.

Hm, hm.
Pedi um par de futebolistas e não veio nenhum. Podíamos ter quatro estrangeiros, e um tinha de ser asiático. Tinha dois argentinos, um marroquino e um iraquiano. Na pré-temporada fomos para Itália e lá liga-me o xeque, que era muito futeboleiro e muito boa gente, e disse-me: “Acabámos de contratar um futebolista, chama-se Ruben Amorim”. Quando me ponho a averiguar, ele tinha estado no Mundial anterior. “Mas não o podemos incorporar, temos as vagas ocupadas”, disse-lhe, mas ele disse que era possível. Ele ia chegar depois de muitas lesões, não estava preparado, não vinha bem fisicamente.

Certo.
Acabou a pré-época, regresso a Doha e conheço pessoalmente o Ruben, já tinha muitas referências dele. Tinha de tirar outro para o meter a ele no plantel, mas ele não estava preparado. Então, foi para a Academia Aspire fazer um trabalho físico especial e depois começou a treinar paulatinamente connosco. Quando o conheci vi que era um tipo fenomenal. Somos latinos, temos muito em comum, vemos o futebol de outra maneira.


Ele meteu-se em forma. A equipa não começou bem. Ele entrou nos treinos, aumentou muitíssimo a qualidade dos mesmos. Comecei a planificar os treinos para uma equipa profissional de verdade. Com Ruben e a colaboração de três ou quatro cataris e os outros estrangeiros conseguimos fazer treinos de complexidade alta, com muitas regras, entendes? Ele começou a treinar e dava gosto. Obviamente, era um jogador de nível mundial, entendia tudo. No quarto jogo decidi trocar o argentino Gastón Sangoy pelo Ruben Amorim, não foi fácil, havia uma questão afetiva, mas tratava-se de uma decisão de futebol. Tive sorte: quando se estreia o Ruben, ganhamos 1-0 e o golo é dele, fez um jogaço. A decisão legitimou-se pela exibição dele.

Jogava como centrocampista? Número 8... 6?
Metia-o como médio centro, como interior, com três médios. Chegou a acontecer ele jogar de ‘enganche’, mas vinha buscar a bola cá atrás. Eu tinha de ser muito criativo para essa equipa funcionar [risos]. Tinha um catari que entendia muito bem o jogo, Ruben era o 8, como interior esquerdo jogava o capitão, canhoto. O Ruben era quem tinha mais liberdade. Jogou sempre muito bem, lamentavelmente expulsaram-no num jogo...

Em dois.
Em dois, sim. E pedia-me desculpa por isso. São coisas do jogo, mas ele chateava-se até mais do que eu quando as coisas não saíam. A impotência que sentia superava-o.

Levou os vermelhos por cacetadas?
Sim, sim. As duas. Foram por carrinhos, que eu proibia, porque normalmente é cartão e hoje com o VAR ainda mais. Num jogo levou dois amarelos, acabámos por perder. No outro foi por uma patada, um pouco por cansaço e outro por impotência. Sentia-se muito impotente. Nos treinos chateava-se e dizíamos-lhe: “Ruben, não te chateies, por favor”. Às vezes era ele: “Mauricio, não te irrites por favor”, agarrando a cabeça. Ele não entendia certas coisas, o Qatar estava num processo de crescimento.

Ele vinha de um nível muito alto.
Muito alto!, mas muito alto. Permitiu-me elevar o nível e a qualidade dos treinos. Ajudou-me a executar alguns exercícios de alta complexidade. Vivíamos no mesmo sítio, bebíamos umas canecas de café preto e ficávamos horas a falar, a partilhar muitas coisas. Permitiu-me conhecer um ser humano excecional e um futebolista de nível de classe A.

Ele queria entender o que se fazia no treino? Bom, ele entendia, mas queria falar nisso? Percebia-se que queria ser treinador ou que tinha treino pelo treino?
Eu via que ele tinha muito interesse nos nossos planos todos, de jogo, de tudo, mas não imaginava que estava a pensar ser treinador. Ele retirou-se lá e creio que tinha 32 anos, era muito jovem. Eu queria que ele ficasse lá e não ficou. Eu não estava com a família, era duro, quando ele se foi embora... pá, como dizem os uruguaios... ele disse-me para eu ficar, que eu estava bem, que me conheciam.

Hm, hm.
Intrigou-me que ele tivesse ido embora para não jogar. Começou a formar-se como treinador, depois vi que a coisa lhe correu bem no Sporting. Ele tinha muito interesse nos temas táticos, ajudava-me nas explicações, porque era o meu treinador dentro do campo, nos treinos também. Ele chegava a dizer-me: “Mauricio, não achas que este exercício podia ser assim e não assim?”.

Ah, sim?
Eu sou muito recetivo, aberto com os futebolistas, tenho a onda Ancelotti, gosto da harmonia, de discutir, saber como estão. Por termos tido essa proximidade, ele animava-se e conversava comigo. Num jogo, quando nos salvámos da descida de divisão, que era o nosso objetivo, foi um ano duríssimo, o Ruben veio ter comigo: “Mister, parabéns!” e ria-se. Era um sorriso cúmplice, isso intrigou-me.


Perguntei-lhe porque se ria. “Estou a rir-me porque sei que jogaste como não gostas”, respondeu. Jogámos com cinco médios, em 4-5-1. O Ruben disse “fica tranquilo, se não fizesses isso não havia forma de ganhar” [risos]. Foram muitas noites na piscina do hotel, vivíamos no Four Seasons, conheci a sua senhora, estava grávida. Fomos almoçar e jantar um par de vezes, mais um argentino e a esposa, falámos de muita coisa, de futebol também, mas sobretudo da vida. Estávamos reunidos num lugar do mundo que nos era muito estranho para todos nós. Não suspeitava que se ia converter no que se converteu, um treinador de elite na Europa e no mundo.

Parece um bom tipo. Ele falava com abertura, dava-se completamente ou havia alguma resistência?
Nunca mais falámos. Ele teve alguns jogadores que foram meus jogadores, como Sebastián Coates, joguei contra o Ugarte, mas tive Maxi Pereira, que jogou com ele, era divino. Sabes do que falava muito com o Ruben?


Falávamos muito de um futebolista que me encantou sempre, era uma debilidade minha. El ‘payasito’ Aimar, top, top. O Ruben dizia-me: “Mauricio, estás louco, nunca vi nada igual. Ele recebia orientado e arrancava...”. Encantavam-me esses jogadores que encaram os rivais, que tiram da frente dois ou três, que definem, que têm passe de golo, sempre com alegria. Falávamos muito de Aimar. O Ruben foi sempre muito aberto connosco, abriu-me o seu coração e a sua sabedoria. Gosto da horizontalidade nas relações. Não sei se tivemos alguma discussão futebolística, podia ter acontecido, mas havia sempre um sorriso cúmplice.

Certo.
Percebíamo-nos quando nos chateávamos com algo. Quando ele estava irritado, abraçava-o e dizia-lhe “traaaaaanquilo, o Qatar é assim”. Ele dizia-me o mesmo [risos]. Vi algumas conferências de imprensa recentes, vejo-o igual, certamente deverá ter alguma distância dos médios de comunicação. Eu também sou assim, não sabemos quem está a operar do outro lado.

Para acabar, deve ser estranho ver um ex-futebolista seu a treinar o Manchester United…
Por um lado, penso que ele deixou o futebol muito jovem. Por outro, espero que lhe tenha ficado algo, sobretudo do lado humano, deste modesto treinador. Chamou-me muitíssimo à atenção o que fez como treinador, tratei de ver as suas equipas. Fiquei muito contente por ver que é possível. Não tenho o objetivo de chegar à Europa, pode acontecer, gosto de alguns países, como Espanha, Portugal e Grécia. Ver o Ruben, que fomos companheiros e vejo-o como companheiro de trabalho, a chegar a esse nível, depois do que fez com o Sporting, fez o mesmo com outras equipas, foi uma escalada… fico muito orgulhoso de o ter conhecido, mais ainda de ter trabalho com ele, e de como me ajudou como pessoa e futebolista.

Muito bem.
Emociona-me vê-lo agora, imagino que fosse um objetivo. Acontecer isto tão jovem e com tantos treinadores a querer chegar a esse lugar de privilégio... fico muito contente. É um grandíssimo ser humano, foi um grandíssimo futebolista e transformou-se num grandíssimo treinador. Deixo uma frase de um cantor uruguaio: “É lindo ter vivido isso para poder contá-lo”, que um rapaz que está à frente do Manchester United trabalhou comigo e que foi um gosto conhecê-lo.

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