01 abr, 2022 - 07:00 • Eduardo Soares da Silva
Em outubro de 2012, a seleção de futebol do Canadá foi humilhada nas Honduras com uma derrota por 8-1, resultado que colocou por terra os sonhos de apuramento da seleção canadiana para o Mundial 2014, no Brasil.
Dez anos depois, o Canadá domina a qualificação para o Mundial 2022 e vence o grupo com Estados Unidos e México, que tiveram de esperar até à última jornada para confirmar presença no Qatar.
Em janeiro, o Canadá venceu confortavelmente em casa das Honduras, por 0-2, derrotando um fantasma antigo e cavando ainda mais o fosso entre as duas seleções. A seleção das Honduras não vai viajar para o Qatar no fim do ano.
Orientados pelo inglês John Herdman e com figuras como Alphonso Davies, do Bayern Munique, Jonathan David, do Lille, e Atiba Hutchinson, do Besiktas, o Canadá também tem a agradecer a uma "costela" portuguesa: Stephen Eustáquio, do FC Porto, é um dos motores do meio-campo, e Steven Vitória, central do Moreirense, é um dos capitães de equipa.
Em entrevista à Renascença, Steven Vitória diz que a qualificação para o Mundial, a primeira desde 1986, muda o "país para sempre".
"A qualificação para o Mundial é, sem dúvida, um momento histórico para o país. Não só por irmos ao Mundial, mas porque sentimos que estamos a mudar o país para sempre, sermos uma inspiração para os jovens. Agora sim, podem sonhar perto de casa. Agora é uma realidade e, qualificando para este, serão dois Mundiais seguidos, porque o próximo é em casa. É uma fase que pode e vai, porque estamos já a sentir isso, mudar o país para sempre. Estamos muito felizes com este momento único", disse ao telefone com a Renascença, ainda no Canadá.
Para além do Qatar, o Canadá tem ainda presença assegurada no próximo Mundial, em 2026, que será organizado pelos Estados Unidos da América, México e Canadá.
Para Mauro Eustaquio, atual treinador-adjunto do York United FC, do Canadá, e irmão do internacional Stephen, longos vão os dias em que o Canadá sofria para vencer na sua região.
"O Canadá tem passado um mau bocado, ainda hoje se fala bastante da derrota contra as Honduras. Vive-se como um pesadelo. Hoje em dia conseguimos ganhar e ter jogos confortáveis contra essas seleções e conseguimos competir olhos nos olhos com os Estados Unidos e México. Nunca tinha acontecido e não acontece só num jogo. Todos os jogos contra essas seleções são competitivos e não se sabe quem vai ganhar. É muito bom para o país", analisa.
Os dados comprovam a teoria de Mauro. Não só o Canadá venceu a qualificação para o Mundial da CONCACAF (Confederação de Futebol da América do Norte, Centro e Caraíbas), como bateu o México e Estados Unidos em solo canadiano e empatou fora de portas.
A qualificação foi selada a 27 de março, no último domingo, com uma goleada por 4-0, em Toronto, frente à Jamaica. Eustáquio assistiu um dos golos, Steven Vitória ficou no banco, a ser poupado de uma lesão que não está totalmente recuperada.
"Foi um momento único, parece que tudo se alinhou para as coisas acontecerem daquela maneira. Foi uma tarde fria, com neve. Tudo foi bem planeado, já estávamos à espera da qualificação, não aconteceu com a Costa Rica, mas parecia que estava tudo planeado para que acontecesse em casa, com a Jamaica e com o público canadiano. Vi o jogo com o irmão do Steven Vitória. O Canadá deu bastante a esses jogadores e a muitas famílias portuguesas. É muito bonito de se ver", recorda Mauro.
O hóquei no gelo continua a ser o "desporto-rei" no Canadá, mas o futebol tem, atualmente, mais praticantes a nível jovem, segundo Mauro.
"As coisas estão a mudar, o desporto mais praticado até é o futebol. Vê-se muitas crianças a jogar à bola e a ir aos jogos. Em 2018, um Canadá-Jamaica teve 12 mil pessoas e agora esteve cheio, 30 mil pessoas na casa da seleção nacional", destaca.
Mas como se explica a rápida ascensão do futebol canadiano? Mauro fala em "investimento em estruturas e ter as pessoas certas no lugar certo". "Muitos podem não saber, mas o futebol no Canadá sempre foi algo 'part-time'. O selecionador John Herdman e todo o 'staff' estão a tempo inteiro. É algo normal na Europa, mas aqui não era. Isso mudou tudo, há muito trabalho por trás e fora das quatro linhas", diz.
Em 2019, a Federação criou a CPL - Canadian Premier League -, onde Mauro Eustaquio trabalha como adjunto de uma das equipas. Com um campeonato profissional, há mais condições para que talentos "não se percam"
"Antigamente, ou eras muito bom e ias para a Europa, ou a carreira dos jogadores acabava aos 15, 16, 17 anos. Os jogadores continuam a ir para a Europa, mas se algo não correr bem, há uma oportunidade de jogar a nível profissional no Canadá. Temos uma casa para eles, o campeonato ajuda-nos bastante a nível de dar oportunidade aos jogadores e até treinadores para termos uma base para o sucesso", explica, à Renascença.
Steven Vitória nasceu em Toronto e mudou-se para Portugal em 2005, para a formação do FC Porto. Apesar da afirmação em clubes como Olhanense, Covilhã e Estoril Praia, Steven Vitória só se estreou em convocatórias da seleção em 2016.
Desde então, o central do Moreirense tornou-se num dos capitães de equipa e cumpre um sonho aos 35 anos de idade.
"Certos sonhos, quando era mais jovem, eram apenas imaginação. Algumas coisas estavam muito distantes de sequer serem sonhos. Com trabalho e ajuda de muitas pessoas fui-me aproximando e hoje, com 35 anos, é uma realidade e é um feito que me deixa a mim e à minha família muito felizes de tudo o que está a acontecer. Sinto-me grato", reconhece.
O central fez praticamente toda a carreira em Portugal, exceto uma época nos Philadelphia Union, dos Estados Unidos, e três na Polónia, no Légia Gdansk. Foi campeão nacional em 2013/14, com o Benfica.
Também com nacionalidade lusa, Steven Vitória reconhece a "costela portuguesa" na seleção canadiana: "É mais do que uma costela portuguesa, porque sou eu e o Stephen Eustáquio. Dois portugueses que também vibrámos um pouco quando Portugal passou o 'play-off'. Ficámos felizes que as duas seleções vão estar no Mundial", reconhece.
Steven Vitória foi à seleção apesar de estar na fase final da recuperação de uma lesão. A importância no balneário foi o fatorchave para a sua chamada.
"Não estava à espera, mas com a ajuda de muitas pessoas no Moreirense e na seleção foi possível eu estar presente. Não é grave [a lesão], mas decidimos que estar aqui seria possível. É maior do que eu. Estar aqui e poder ajudar, de uma forma ou de outra, deixa-me feliz. Houve um esforço meu, do clube e da seleção", assume.
Entre Portugal e Canadá, Stephen fez a "escolha certa"
Ainda muito jovem, Stephen Eustáquio mudou-se de Leamington, cidade onde nasceu, para a Nazaré, onde começou a dar os primeiros toques num campo de futebol.
O médio escapou à formação dos maiores clubes portugueses e começouno futebol sénior no Torreense, do Campeonato de Portugal. Passou pelo Leixões e estreou-se na I Liga no Chaves, em janeiro de 2018.
Nessa altura, representou a seleção portuguesa sub-21, que falhou a qualificação para o Campeonato do Mundo do escalão, que chegou a considerar "a pior derrota da carreira". Pouco depois, Eustaquio decidiu representar a seleção do país onde nasceu. A estreia aconteceu apenas em 2019, frente aos Estados Unidos, depois de debelada uma grave lesão no joelho, sofrida no México, ao serviço do Cruz Azul.
Desde então, o médio afirmou-se no Paços de Ferreira, deu o salto para o FC Porto e tornou-se figura no meio-campo da seleção canadiana, já com 22 internacionalizações.
Depois da qualificação, Stephen afirmou a uma televisão do país que escolher o Canadá foi "a melhor decisão da sua vida". Mauro desenvolve a afirmação do irmão.
"O Canadá deu-lhe a possibilidade de ir ao Mundial, aos meus pais de ter uma boa vida e a mim de continuar no futebol profissional. Ele, como canadiano, nasceu cá e sente-se muito orgulhoso de poder ajudar a seleção nesse sentido", diz.
Presença garantida no Campeonato do Mundo levou S(...)
Cumprido o sonho de chegar ao Mundial, o primeiro para todos os jogadores presentes no plantel canadiano, resta disputá-lo. Steven Vitória vê no Mundial um novo desafio para a seleção superar a expetativas.
"Um sonho foi cumprido, agora outros estão no horizonte para nós. Sei que o Canadá está muito feliz de participar no Mundial, mas sinto que não vamos só participar. Vamos ter uma palavra a dizer. Temos o direito de acreditar em algo mais, mas nada vai ser fácil num nível destes, porque são as melhores equipas e jogadores do mundo. Vamos fazer crescer a nossa história", disse, a Bola Branca.
Stephen Eustáquio partilha da opinião: "Nem sei o que esperar do Mundial. Vamos tentar sentir esta presença da melhor forma possível. Não podemos ficar deslumbrados, mas vamos lá para ganhar. Não vamos participar, estaremos lá para ganhar", disse aos meios canadianos após a qualificação.
Mauro Eustáquio diz que o atual plantel da seleção "já ficou para a história", mas reconhece a inexperiência dos jogadores num palco da dimensão do Mundial.
"Há a criação de novas lendas, novos jogadores que estão a levar o nome do Canadá a nível internacional e nos clubes a outro patamar. Estes jogadores ficam para a história e o objetivo é competir no Mundial. Têm qualidade e condições para o fazerem. Nenhum jogador está habituado a um palco tão grande, mas se queres estar entre os melhores, tens de te preparar e estar habituado. O feito é histórico, todos estão contentes, mas o grupo é ambicioso", diz.
Eustáquio e Steven Vitória gostariam de defrontar Portugal e o confronto é possível logo na fase de grupos, uma vez que o Canadá está no quarto pote e Portugal é cabeça-de-série.
"Sendo contra Portugal, seria especial, mas todos os jogos vão ser especiais, seja contra quem for. Sendo português, fiquei feliz que Portugal vai estar presente. Se nos pudéssemos cruzar, seria especial", afirma Steven Vitória.
O Canadá desafiou o "status quo" norte-americano e agora quer fazer o mesmo à escala global. Eustáquio e Steven Vitória conhecem os adversários na fase de grupos esta tarde, fazendo figas para defrontar Portugal, onde vivem e brilham ao serviço dos seus clubes.